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Fotografia: André Delayhe
Publicado a: 26/07/2023

Ritual performático.

100 Cymbals em Serralves: o desprendimento da certeza

Fotografia: André Delayhe
Publicado a: 26/07/2023

Único. A utilização excessiva de um termo torna-o vulgar. A apropriação em demasia empalidece as suas características. Urge cuidar e nalguns casos encontrar sinónimo. Como tal arriscamos – abesbílico. Jamais no sentido da exteriorização de uma grandeza, antes encantamentos de desequilíbrios e reposicionamentos internos. Ryoji Ikeda é caso singular na música contemporânea. A matéria que trabalha, independentemente dos recursos utlizados, é intemporal e de magnitude variável – a natureza humana. Cada apresentação a que assistimos do compositor e músico nipónico é colocarmo-nos no limite, na fronteira entre o “eu” interior, o “eu” exterior, naturalmente, e um “eu” transcendente. A voragem das vertigens e permanecer nesse ponto. O abismo é dojo aconchegante e libertador.

23.07.23. Uma marcação temporal, como norte desenhado em mapa. Somente guia, muito seguramente recordação para momento posterior. Associar-lhe raízes de lótus, folha flutuante em lago da Fundação de Serralves num imaginativo jogo da petanca. O auditório, as cadeiras (semi-poltronas) alinhadas. Duas claraboias e a geometrização das linhas. A tranquilidade do lugar e Siza Vieira no seu desenho. As escadas laterais, a frente do palco e a ocupação gradual e subtil pelos instrumentistas da Percussions de Strasbourg e do Drumming – Grupo de Percussão. Instrumentos de madeira. Micro-objectos. A escala ínfima. A cultura japonesa – hyōshigi, tradicionalmente usados durante rituais ou cerimónias diárias no Japão. Cuidar. Friccionados, percutidos. Um movimento mínimo para compenetração máxima. O silêncio como orientador. As gotas de água, a chuva detrás de uma cúpula. Os sons sobrepostos sobre finas camadas de ar. A respectiva espacialização de origem muito diversa. A peça de John Cage – “But what about the noise of crumpling paper” (1985) a criar sobressalto. Em época de gritaria e caras de mau, de afirmação, mais do que questionamentos – o silêncio como opção. Um bater vigoroso das duas peças de madeira. Um transe hipnótico interrompido. Uma chamada à realidade.

Os movimentos como fluxos energéticos. Pensados. Um ritual plenamente assumido. Ritos que se interligam. Hipnotização consciente e tudo o que de contraditório encerra esta imagem. Os 100 címbalos numa geometrização desenhada ao pormenor. A existência de cada instrumento só se materializa no conjunto dos 100. Nenhum é preponderante. Ninguém arroga o protagonismo. O desígnio é colectivo. Abordá-los requer destreza, firmeza, um convencimento com origem numa serenidade interior que se conquista num tempo longo. O caminho. Etapas graduais, sem precipitações e movimentos contidos. É performance e instalação. Cosmogonia em palco. Movimentos em par. Dois a dois. Um desenho que se compõe e se define numa harmonia única. “100 cymbals” (2019) numa aproximação musical ao detalhe. A indiferença é conceito que não existe. Tudo tem o seu ponto exacto na corporalização de uma sonoridade, mesmo que a mesma corresponda à sua desmaterialização. Um cântico polifónico, ínfimos murmúrios. Um transe. Estados momentaneamente relaxados. Estado de incomodidade quase permanente do qual jamais desejaremos sair. A repetição. O mantra absorvido. Físico. Um contínuo. Forças convergentes para um desenho final – o triângulo. A forma geométrica perfeita. Um crescendo na labuta do artesão. Rajadas finais. Três, quatro não mais. Afinal somos humanos. Cada um à procura do seu Ikigai.


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