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Publicado a: 29/12/2016

Os reis regressam ao lugar de onde nunca saíram

Publicado a: 29/12/2016

[TEXTO] Francisco Noronha

Republica-se aqui a entrevista que, em 2012, Francisco Noronha fez aos MDG para o sítio Rua de Baixo, sem quaisquer alterações ao texto senão de ordem formal (razão pela qual ficam desde já ressalvadas quaisquer desactualizações).

 



Há um dado prévio a esta entrevista que não podemos deixar de assinalar. O nosso primeiro contacto, feérico e chocante, com o hip-hop, aí com uns 12 ou 13 anos, coincide com o primeiro contacto com os Mind Da Gap (MDG), mais precisamente com um concerto seu. Ou seja, no momento da criação do mundo, foram os beats austeros (hoje, muito mais melífluos) de Serial e as rimas lúcidas e destemidas de Ace e Presto que nos mergulharam num género musical (numa cultura ou movimento, para os mais militantes) pelo qual nos apaixonámos, por mais que Portugal fosse, à data, um país perfeitamente ignorante em relação a uma cultura que, nos EUA, já tinha ganho o respeito da comunidade artística, circunstância que, muitas das vezes, nos fez sentir um alien entre semelhantes. Vê-los chegar à entrevista exactamente com o mesmo aparato (as roupas largas, entretanto trocadas pela moda hipsterindie e não sei o que mais) com que os vimos nesse remoto concerto é motivo para acreditar que, afinal, essa coisa da “integridade artística” talvez exista mesmo.

 


[Os MDG e o hip-hop português: um percurso paralelo]

O trajecto dos MDG confunde-se com o próprio trajecto do hip-hop em Portugal (que começa, discograficamente falando, em 1994, com a compilação “Rapública”), e a verosimilhança é a tal ponto grande que podemos dizer que os MDG, tal qual o hip-hop, já conheceram vários estados de alma: foram underground, estiveram na moda, tornaram-se mais discretos após a ressaca do primeiro impacto mediático e agora voltam, com serenidade, a assumir o seu trono.

Depois dos três primeiros álbuns, a nossa relação com os MDG foi conhecendo, tal como com a maioria dos seus primeiros ouvintes, fases atribuladas, próprias de uma relação de amor. De facto, a relação dos MDG com o seu público tem conhecido períodos de altos e baixos, de enamoramento e de rejeição. O grupo mostra-se lúcido na hora de falar sobre o assunto, não fugindo à velha questão do “estatuto perdido” (?) por força de uma suposta (e demoníaca, ó-ó) “comercialização”. O que não significa – e este foi um dos momentos mais interessantes em hora e meia de entrevista – que não divirjam entre si na forma como vêm as coisas (“É por isso que nos damos bem!”, atira Serial, bem disposto). Ace, com uma honestidade desarmante (e acreditem que não é gabarolice, é honestidade), declara: “Eu continuo a achar que os MDG são os maiores e que toda a gente sabe disso”. Serial, bastante mais céptico, não podia estar mais em desacordo quando diz, com a mesma honestidade, que “Não há maiores nem menores, isso não existe. Há músicas boas e músicas más”.

Sobre a existência ou não de um “público MDG”, Serial mostra as suas reservas e lembra que o “factor idade” tem, aqui, um papel fundamental: “Começámos novos, apanhámos uma geração e essa era militante. Mas, hoje, já não são militantes, estão em casa com as famílias, ouvem outras coisas… a mulher e os filhos não ouvem hip-hop!”. Ace contrapõe que, com o tempo, recuperaram “muitos dos militantes que tínhamos perdido com alguns discos que, para eles, foram um passo em falso, porque, entretanto, eles também cresceram e têm menos preconceitos a julgar o «Sapatilhas» ou o «Bazamos ou Ficamos»”. [É, permitam-me confidenciar-vos, precisamente, o meu caso] Por outro lado, atira Serial, “vivemos numa cultura em que, cada vez mais, se tem sempre que destacar alguém, dizer «este é o melhor»! Hoje, os MDG já não são essa «grande cena»”. Presto, não desempatando a contenda, reforça a lucidez com que os MDG se olham ao espelho quando reconhece que os MDG são uma banda “que fez um certo crossover para o mainstream. Andámos sempre na corda bamba entre o underground e o mainstream. E, por isso, o nosso público também foi rodando!”. Touché!: zero complexos, zero embaraços.

Mas, acima de tudo, interessa a relação sólida construída com várias gerações, por mais atribulações que ela tenha conhecido: “Na faixa «Há dias», eu digo que temos essa geração que nos acompanhou, que cresceu connosco e que os ajudámos a ser melhores humanos… isso, para nós, é um motivo de orgulho gigante”, afirma Ace, para logo de seguida completar: “E não foi só essa geração! Felizmente, as outras que vieram a seguir foram-nos apanhando”.

Dinossauros do hip-hop português, os MDG foram uns dos cabeças de cartaz da festa Vicious Hip-Hop, no Coliseu, promovida pela nova promotora Vicious Events com o objectivo de cimentar o hip-hop como género musical de igual dignidade entre os demais. Como é que os MDG olham para esta pretensão? Ace coloca a questão num outro plano, argumentando que “a fase actual do hip-hop português não está up. Já não é aquela coisa estranha, mas acredito que já teve estatuto para encher o Coliseu. Neste momento, acho que vive muito do público que não é público de hip-hop, é público generalista. Mas, em relação a isso, nada contra!”. Enfim, continua, “foi uma pena, porque teria sido uma demonstração de força e de valor que iria fazer bem a toda a gente”. Presto relembra que o consumo e divulgação do hip-hop também vive das conjunturas: “Na altura do “Suspeitos do costume” [2002], o rap batia muito, até porque começou a aparecer o Eminem. Comercialmente, foi uma altura boa para nós”.

Há uma pergunta que guardávamos com curiosidade. Os Da Weasel tiveram, a sul, o mesmo papel pioneiro dos MDG, e participaram mesmo no seu primeiro álbum («Nortesul», faixa dissuasora de uma espécie de rivalidade west/east à americana). “Os Da Weasel sempre foram uma banda que esteve no topo, à nossa frente em termos de aceitação. Fizeram um crossover ainda maior que nós”, analisa Presto, razão pela qual, em termos de vendas, havia uma espécie de saudável corrida do gato e do rato entre as duas bandas. O fim dos Da Weasel não foi sentido de forma dramática, até porque, diz Ace em tom de brincadeira, “no fundinho, foi fixe, já não temos ninguém à nossa frente, vamos ganhar a corrida!” (risos).

Uma outra pergunta que sempre quisemos fazer a Ace prende-se com o facto de «Representin’ Lovely» (Sem Cerimónias, 1997) ser, até hoje, uma das raríssimas faixas de rap português cantada em Inglês (outras podem ser encontradas, por exemplo, no EP dos Mind Da Gap com os Blind Zero, Flexogravity”, 1996, ou no primeiro EP dos Da Weasel, More Than 30 Motherfuckers, 1994). O que queremos saber é o que os MDG pensam da possibilidade de alguém português rappar em Inglês, coisa muito frequente lá fora. Ace toma a palavra para dizer que não, “não acho nada descabido, mas iriam ter o mesmo problema que acontece na pop-rock: percebe-se que aquele inglês foi escrito por um português… é português traduzido!”, o que, afirma, se reflecte, nomeadamente, nas expressões utilizadas ou mesmo na construção frásica.

 


[Regresso ao… futuro?]

MDG são sinónimo de uma carreira construída a pulso, cuja estabilidade foi alcançada através de uma constância assinalável na produção discográfica (desde 1997, os MDG já lançaram 7 álbuns, com um best of pelo meio), o que, no meio hip-hop português, é raro (com a mesma ou semelhante assiduidade, só os extintos Da Weasel, Dealema, Xeg ou Sam The Kid).

O título do seu mais recente álbum, Regresso ao Futuro (2012, Meifumado Fonogramas), coincide com o da saga cinematográfica iniciada, em 1993, por Robert Zemeckis, na qual Michael J. Fox pôs tantos miúdos a sonhar com “máquinas do tempo”. No primeiro filme dessa saga, a personagem de Fox volta ao passado para impedir que o futuro (o seu presente) não se altere. A minha pergunta para Serial é se, ao contrário do trajecto percorrido por J. Fox, a produção deste álbum não tem um forte balanço futurista, por força da componente electrónica (os synths em grande plano e as sonoridades cósmicas e industriais audíveis, por exemplo, em «Este Beat») que o produtor empresta à composição. Ironia ou contradição? Serial sublinha que o que mais lhe interessa é, acima de tudo, fazer coisas novas. “Não gosto de estar sempre a repetir a mesma fórmula. O que aconteceu neste disco foi que eu quis deixar as coisas cruas… quis evitar uma overproduction, sem muitos arranjos e sem mexer muito com o Pro Tools e afins”. Less is more, portanto (interessará, neste ponto, escutar o que diz Sam the Kid em «O Beat matou-te»), o que poderá explicar que este tenha sido o disco que os MSF tenham demorado menos tempo a concluir. No entanto, essa aparente “simplicidade” (“o objectivo foi manter tudo o mais simples possível”, reitera Serial) poderá soar estranha quando se ouve um álbum em que todas as faixas, do princípio ao fim, deixam latente uma composição elaborada, de mestre. A sensação de “passado”, essa, vem das condições em que o álbum foi produzido, explica Serial: “Chegámos ao estúdio da nossa editora e tínhamos uma grande mesa analógica antiga… Sentimos isso: voltámos ao passado!”.

Regresso ao Futuro trouxe, também, um novo formato em palco para os MDG: além dos pratos e dos dois rappers, juntaram-se-lhes um teclado e uma bateria. A explicação vem de Serial: “[este formato] permite-nos explorar outras coisas em palco e no estúdio. Permite-nos mudar a roupagem das músicas e torná-las mais poderosas. Também somos mais em palco e isso, visualmente, é atractivo”. E, de facto, para quem assistiu ao concerto dos MDG na passada Vicious Hip-Hop, sentiu a potência que os drums acrescentam à estrutura musical, nomeadamente, na grande malha que é «Vozes na Cabeça». Ace acrescenta outro dado, mais prático: “Andamos na estrada há quase 20 anos e há músicas que tocamos sempre, o que às vezes satura. Tocá-las com instrumentistas transformou-as e quase que se tornam músicas novas em concerto”. Slimcutz, um portento do turntablism, com títulos uns atrás dos outros – “Na festa da Vicious, ele só não tocou porque estava a ser campeão nacional pela décima quinta vez”, brincam – é, por sua vez, o DJ que, a partir de agora, acompanhará os MDG em palco, sem que estejam fechadas as portas à sua colaboração em estúdio, como já aconteceu neste álbum em «Vozes na Cabeça» – podem vê-lo em acção no programa “Planeta Música”).

Outro dos aspectos mais interessantes no álbum está no capítulo das participações. Os MDG souberam não só convidar nomes obrigatórios (Dealema, Mundo), como resgatar outros mais underground (Berna e, sobretudo, Rey). Mas há um deles que se destaca incontornavelmente: Sam The Kid assina um dos momentos mais brilhantes do álbum na dulcíssima «És onde quero estar», acompanhado pelo refrão viciante de Ace (“Não percebes que eu nãaao…”). Porquê tão tarde este convite ao maior nome do hip-hop português? Presto desfaz as dúvidas: “Já desde o «Suspeitos do Costume» que queríamos ter uma música com o Sam, mas ou ele não podia, ou nós não podíamos, e fomos adiando… Finalmente, conseguimos conjugar os calendários e estamos muito contentes com o resultado”. Questionado sobre se é um admirador da produção de Sam, Serial é lacónico: “claro!”.

 


[O hip-hop, hoje]

Olhando para os percursos de cada um dos elementos da “Tríade Nuclear” (como gostam de chamar a si próprios), nota-se um grande espírito de unidade, no sentido em que o trabalho é, quase sempre, em equipa. Isto é, ao contrário de outros grupos portugueses, em que os seus elementos vão lançando trabalhos a solo (exemplo paradigmático: Dealema), o mesmo não acontece com os MDG (apenas se conta o álbum Brilhantes Diamantes, 2005, de Serial e o álbum Intensamente, 2003, de Ace). A pergunta vai direitinha para Serial, um dos melhores produtores do país a par de Sam The Kid. “Eu sou tão fundamentalista do rap que não consigo fazer um álbum de instrumentais, nunca tive vontade. Eu gosto de ter os raps… Primeiro, faço as bases e depois os arranjos sobre os raps. Para mim, só faz sentido assim. Uma música em que só há instrumental, sem vocal, não está completa!”.

O rumo da conversa altera-se e falo-lhes naquele som histórico do Common, «I Used to Love Her» como pretexto para lhes perguntar se, hoje, ainda estão apaixonados pelo hip-hop. O hip-hop do século XXI esboroou-se, como se sabe, em géneros (gangstersocial counsciousnessindie, etc.), estéticas difusas (o grime, o dubstep, o crank,) e personas sinistras (Lil Wayne, Soulja Boy e bonecada afim), e a busca incessante pela next big thing (é o Kanye, é o Curren$y, é o Kendric Lamar, é o Joaquim) atrapalha aqueles que ainda tentam apreciar, com tempo e gosto, o que vale, de facto, a pena. Neste caos propiciado pela capacidade de divulgação world wide que a Internet ergueu (“muito noise”, anota Serial), o hip-hop ainda lhes causa “borboletas”?

À excepção de Serial, os outros dois confessam que, em casa, pouco ou nada ouvem de rap. Tanto Presto como Ace reconhecem ser uns golden age addicts (como os compreendemos!) e isso porque, dizem, há emoções que só com nomes como os Black Moon ou Pete Rock conseguem sentir (ainda assim, Ace diz que não está totalmente offline, e atira com os nomes de Kendrick Lamar e Jay Rock). Por isso mesmo é que, quando lhes pergunto que grupo escolheriam, se pudessem, para gravar um tema, o nome dos A Tribe Called Quest vem à baila. Os dois mc’s fizeram o percurso arqueológico e melómano de todos os aficionados dos nineties, que desemboca sempre no mesmo lugar: a melhor soul e jazz dos anos 50, 60 e 70. Por isso é que, hoje, essas são as suas bandas sonoras em grande parte do tempo. Num notável exercício de nostalgia, Presto revela que a última “novidade” que o apaixonou verdadeiramente foram os Slum Village – “Bom, isso já foi há uns anos!”, respondo-lhe, e o grupo ri-se. Enquanto produtor, Serial é, naturalmente, aquele que está mais a par das últimas novidades, distinguindo entre o ouvinte-produtor e o ouvinte-ouvinte que coexistem em si: “Quando estou a produzir, oiço de tudo, desde música brasileira a jazz e soul, mas, quando estou a relaxar no carro ou em casa, sem pensar em samples, só oiço hip-hop”. Daquilo que tem ouvido nos últimos tempos, destaca a crew Black Hippy (Lamar, Jay Rock, Schoolboy Q, Ab-Soul), ligada à Top Dawg Entertainment, bem como os nomes de A$AP Rocky, Danny Brown ou Domo Genesis.

Do novo rap português, confessam que o desconhecimento ainda é maior. Todavia, relativamente à chamada “nova escola” do Porto (Virtus, Enigma, Minus, Deau), o grupo reconhece que o ADN é o mesmo. Segundo Ace, “O Porto tem uma escola de rap desde o princípio e, sem querer estar puxar a brasa à nossa sardinha, os MDG marcaram muito o princípio de carreira dessas novas gerações. Eu acho que se percebe perfeitamente a árvore genealógica do rap do Porto. Quando nós nos reformarmos, o rap do Porto ficará bem entregue”.

Enquanto palcos maiores não chegam, os MDG estarão dias 13 e 14 de Novembro na Guarda e Estarreja, respectivamente, oportunidade não só para escutar ao vivo aquele que é um dos melhores discos portugueses do ano (e não estamos só a falar do espectro hip-hop), como, já agora, para dar os parabéns a Presto, que acaba de ter o seu segundo filho. Os MDG já têm, portanto, não só filhos “musicais” como também biológicos… Como diria o KRS-One, “hip-hop lives”!

 


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