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Publicado a: 21/11/2017

Micro: “É a altura de a gente voltar, fazer as nossas cenas de uma forma descomprometida e ver o que o público diz”

Publicado a: 21/11/2017

[TEXTO] Ricardo Farinha [ILUSTRAÇÃO] Dialogue [FOTOS] Direitos Reservados

“96 ergueu-se o underground e eu despertei/Era na assembleia da Microlândia que se fazia a lei/Ninguém cuspia com a auto-estima de Sagas, o sensei/D-Mars tinha rimas mais assassinas que o DJ”. As rimas são de Valete, da icónica faixa “Hall of Fame”, em que o rapper conta de forma muito resumida a história do nascimento discográfico do hip hop em Portugal e da vaga independente e underground que se ergueu na segunda metade da década de 90. Na vanguarda desse movimento, entre outros, estavam os Micro de D-Mars, Sagas e Nel’Assassin, que agora se reúnem para um concerto especial no Vodafone Mexefest, a 24 de Novembro, no Palácio da Independência, na curadoria Ciência Rítmica Avançada, de Rui Miguel Abreu, director do Rimas e Batidas. Esta é a sua história.

 


[DESPERTAR PARA O HIP HOP – A SEMENTE]

Muito antes de Marko Roca, Nelson Duarte e Tomé Vaz partilharem uma vida artística, nascia-lhes uma paixão por uma cultura hip hop que se tornava global no final dos anos 80 e início dos 90 – precisamente na altura em que o breakdance se tornou uma moda e se espalhou pela Europa fora. Para D-Mars, foi na Croácia, país onde nasceu, que tudo começou, num dos bairros da capital Zagreb. “Se bem me lembro, foi através do meu vizinho de baixo que tinha uma cassete das Salt-N-Pepa ou dos Run DMC. Vivíamos num prédio que tinha um sistema de aquecimento central e nós putos berrávamos uns com os outros através dos radiadores. Quando alguém tinha a música mais alta dava para ouvir.” Não demorou muito até se deixar encantar pelo diamante em bruto que tinha descoberto naquela mina improvável: o hip hop. Apesar de viver na Croácia – onde o hip hop e o rap estavam num estado mais avançado – foi em Portugal, numas férias no longínquo verão de 1989, que D-Mars comprou a primeira cassete de rap, com faixas para dançar breakdance. Na Croácia já tinham acesso e consumiam aquilo que chegava dos Estados Unidos.

“Tínhamos um receptor enorme de satélite e pirateámos uma network de cable TV, então todos tínhamos em casa a MTV da altura, no início dos anos 90. Naquela altura, o Yo! MTV Raps era o programa que passava todos os dias na televisão. Então para mim foi super fácil entrar em contacto directo com o hip hop.” Além disso, em Zagreb ouvia um programa de rádio que passava rap e já existiam alguns grupos croatas do género. As primeiras rimas foram escritas pouco tempo depois.

Quando a guerra dos Balcãs explodiu em 1991, a família Roca mudou-se para Roma, em Itália, por um ano, onde aquele que já se tinha auto-baptizado como D-Mars comprava discos de vinil e tinha amigos na escola que também gostavam de hip hop. Nessa época começou a escrever letras em inglês e a gravar demos “sem qualidade nenhuma” em casa. No ano seguinte, mudou-se para Portugal – para Paço de Arcos -, o país da mãe, onde não conhecia ninguém, e que estava atrasado em relação à cultura hip hop (e em tantas outras coisas). “Em Portugal, a primeira ligação que tive com o rap foi com o programa do [José] Mariño na altura, na Rádio Energia: chamava-se Novo Rap Jovem. E na altura escrevíamos cartas para o Mariño: ‘sou um gajo que gosta de rap e gostava de conhecer outras pessoas que gostam’. Porque não havia maneira de comunicar que não fosse essa. E foi assim que conheci as primeiras pessoas: o Melo D, a Ângela e a X-Sista, que depois foram das Jamal, o Boss AC, e, mais tarde, o pessoal dos Zona Dread.”

Enquanto D-Mars saltava de país em país e aprofundava uma paixão por uma cultura hip hop que percebia que era global, Nelson Duarte, em Carcavelos, ouvia uma música que lhe mudaria a vida para sempre. “Uma vez ouvi o ‘Jazz Thing’, dos Gangstarr, era mesmo uma criança e o scratch do Preemo, que aquilo tem uma introdução com um scratch, que é um trompete… fiquei crazy. Era um shorty mesmo, tinha 10 ou 11 anos.” Foi assim que aquele que viria a ser o DJ Nel’Assassin descobria a arte do scratch, sem sequer saber como é que se fazia.

“Sabia que era um gira-discos e que era aquele som que o disco reproduzia quando tu mexias. Mas depois não havia informação visual, só áudio. Como criança, aquilo ficou-me na cabeça. Fiquei a pensar naquilo sempre. Sempre que ouvia, na rádio, ficava bué contente. E, anos depois, não sei qual era o programa, deu o videoclipe na televisão. Chegou à televisão tuga, meu! Acho que foi mesmo sorte, vi umas duas vezes ou assim. Vi o Preemo lá, fiquei ‘yooo, what the fuck! Era mesmo isto, era mesmo isto que eu estava a pensar’. A partir daí, esquece. Olhei logo para a aparelhagem [risos]. Os vinis dos cotas. Comecei a esfregar as mãos [risos].”

O terceiro elemento dos Micro, Sagas, também vivia na mesma zona da Linha de Cascais. E nem por acaso: é primo direito de Nel’Assassin. “O Sagas é praticamente o quinto irmão, dormia lá em casa, é mais do que um primo direito.” Tomé Vaz navegou a onda do breakdance que invadia a Europa e começou no hip hop pelos movimentos de bboying no chão. “Eu comecei muito novo, mesmo no bairro [das Marianas] e na escola. Nós tínhamos um grupo conhecido aqui na zona de Cascais que eram os Faraó Breakers. Foi o meu primeiro contacto com o hip hop, um bocado inocente, porque estamos a falar em 87/88, muito cedo, eu ainda era muito miúdo.” Na escola, começou também a fazer graffiti, quando conheceu Mystic, Kazar e Razak, ou Youth e Nomen, que viriam a ser companheiros de crew e amigos para a vida. “Depois descobri que se calhar até tinha jeito para a escrita e para fazer umas rimas. Comecei no bairro, com o King [aquele que, anos mais tarde, iria cantar o refrão de ‘Respeito’, uma das faixas mais emblemáticas de sempre dos Micro].”

 


[OS PRIMEIROS PASSOS]

Foi D-Mars que iniciou antes de todos uma carreira mais séria, por volta de 1993, quando se juntou aos Zona Dread. “Eram três irmãos e eles já tinham músicas e as ideias, basicamente fazia a minha parte. Só que eu tinha uma caixa de ritmos, então eu é que fazia os beats. As nossas músicas eram diferentes do resto do pessoal: as rimas eram quase só sociais.” E são esses versos interventivos que podemos ouvir em Rapública, compilação editada pela Sony em 1994 que marca praticamente o início discográfico do rap nacional (juntamente com Portukkkal, EP de General D). Os Zona Dread – grupo que também tinha Tony McDread, Dani, Jazzy J Zone e DJ Tony – participaram em Rapública com as faixas “Só Queremos Ser Iguais” e “Putos da Rua”. O grupo terminou pouco tempo depois, em 1995. “Acabou de uma maneira quase natural, deixámos de fazer música, basicamente. Eu não me identificava mais com a onda deles.”

Mas não sem antes se plantar a semente que iria resultar nos Micro. O DJ dos Zona Dread era Tony Moca, mais conhecido por ter sido um dos rappers dos Mundo Complexo – e que hoje é percussionista de Rocky Marsiano, o projecto instrumental de D-Mars – , mas que, além disso, é o irmão mais velho de Nel’Assassin. Tony abandonou os Zona Dread pouco antes da dissolução do grupo – foi o irmão mais novo, Nelson, que o substituiu, e fez os últimos dois concertos da banda. “Chegou a fazer parte dos Zona Dread e fui eu que o baptizei: ‘tu vais ser o DJ Assassino’. Porque ele era só o Nelson. Tinha bué talento, tal como o irmão ele”, conta D-Mars.

Enquanto acompanhavam de perto o percurso dos Zona Dread, até porque tinham um familiar na banda, Nel’Assassin e Sagas também iam dando os seus primeiros passos. “Tinha uma banda com o Assassin, os Move Out, e com outro pessoal da nossa zona. Entretanto aquilo diminui para uma formação mais pequena [os Negritude] e fomo-nos dissolvendo”, revela Sagas. “Cheguei a ir a alguns ensaios dos Zona Dread. Eu não conhecia o D-Mars mas conhecia os Tonys e o Jorge. E foi aí o meu primeiro contacto com ele: na garagem dele, onde eles ensaiavam. Eu e o Assassin íamos só ver, porque curtíamos dos Zona Dread, acompanhámos o início. Eles já estavam num patamar acima. Foi para aí em 93. Lembro-me de eles ensaiarem para um dos grandes concertos de hip hop de sempre, que foi o Oeiras Rap, em que vieram quase rappers do país inteiro.”

Nel’Assassin confirma a história. “Fizemos uma brincadeira, com pessoal de Oeiras, que eram os Move Out, aquelas bandas que são o início do início. Vai ser sempre uma brincadeira só que na altura não sabes que é uma brincadeira e tu levas a sério. Até muito perto da situação, de nos aplicarmos profissionalmente na música, o Sagas não se definia como MC. Rimava, sim, mas um bocado às escondidas [risos].” Brincadeira ou não, foi um desses temas gravados com os Move Out, intitulado “Agarra o Som”, que fez algum burburinho na Linha de Cascais, como explica Sagas – que também já tinha gravado uma maquete com o material dos Zona Dread -, e acabou por chegar ao sítio certo. “A música ficou boa e esteve a bater aqui na zona. E acho que isso também deve ter chegado aos ouvidos do D-Mars.”

 


[MICRO: A FORMAÇÃO]

O fim dos Zona Dread abriu caminho para a criação de Micro, que começou com D-Mars e Sagas, apesar de Nel’Assassin se ter juntado logo de seguida. “O D-Mars já tinha a visão de fazer Micro e ele sabia quem é que queria”, explica Nel’Assassin. Sagas acrescenta: “Nessa altura, em que a gente já se conhecia, foi quando ele me chamou. Praticamente começou a testar-me: a perceber se eu tinha capacidade para abraçar um projecto com ele.”

Era o início de 1996 e D-Mars estava completamente influenciado por grupos como Wu-Tang Clan, Group Home, Gangstarr, Dilated Peoples, Das EFX ou os franceses IAM. Era uma fase em que o hip hop vivia muito de colectivos e crews e o luso-croata bebeu directamente dessa fonte. “Quase que tive a ideia de Micro na minha cabeça e telefonei para o Sagas e para o Nelson e disse: olhem, nós vamos fazer um grupo, vamo-nos chamar Micro [de microfone] e vamos ser a cena mais fodida aqui em Portugal. Com as rimas mais diferentes de tudo o que o pessoal anda a fazer.”

 


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[O INÍCIO DA CAMINHADA E O ÁLBUM FANTASMA]

Os Micro tinham nascido. Nunca tinham feito qualquer música juntos nem definido um processo criativo conjunto, mas a harmonia entre três pessoas muito distintas inevitavelmente apareceu. “No início de Micro há uma coisa muito curiosa”, conta Sagas. “Quem escrevia as letras era o D-Mars. Todas. Porque ele já tinha coisas dele e eu disse: ‘epá, se tens coisas tuas, porque não?’ Para dar seguimento àquilo.” Os dois rappers procuravam um “meio-termo”, um equilíbrio onde se pudessem encaixar. Sagas era angolano, filho de cabo-verdeanos, D-Mars tinha chegado há poucos anos de Itália e era luso-croata. Os dois rappers dos Micro eram muito diferentes e escreviam versos de forma muito distinta. “Eu escrevia muitas vezes em crioulo, houve músicas que até fizemos de eu a escrever em crioulo e ele em croata.” D-Mars concorda, além de achar que a diferença era uma vantagem. “O Sagas e eu tínhamos vozes e flows muito diferentes um do outro, e isso é uma cena que sempre curtimos e quisemos manter.”

O quarto de D-Mars tornou-se uma sala de ensaios para os Micro, onde o trio passava horas e horas dos seus dias. Felizmente os seus pais eram compreensivos e apoiavam os projectos musicais do filho. “O quarto do D-Mars era uma sala de ensaios nossa e nós ficámos por lá, atrevo-me a dizer, anos, até termos uns 70 sons gravados. A partir daí é que começámos a pensar em alguma cena séria, não foi instantâneo”, conta Nel’Assassin. Depois das primeiras faixas fechadas, surgiram as primeiras atuações. “O primeiro concerto de sempre que demos foi em Cascais, num sítio que tinha festas de hip hop, numa cave”, conta D-Mars, que tem memória como poucos. “Os DJs eram o Tony e o Nelson, e o Cheeks [das lojas Godzilla, Kingsize e do colectivo Raska] esteve nesse concerto. Foi em ’97. O segundo foi no Johnny Guitar: todos os meses havia festas lá e eram curadas pelo Pacman e o KJB, porque eles também tinham o programa de rádio. E isso foi a 6 de Março de 1997. Sei bem porque tinha feito 20 anos. Foi o nosso primeiro concerto mesmo a sério e foi do caralho. Nós ensaiávamos bué, estávamos sharp. Até hoje, para mim, modéstia à parte, continuamos a ser das melhores bandas ao vivo. Sempre nos entregámos ao público, nunca olhámos para o chão, nunca fazíamos aquelas cenas que bué concertos de rap tinham na altura. Comunicávamos com o público desde o início. Falávamos entre as músicas, da cultura hip hop, porque estávamos sempre rodeados pelos bboys e writers da nossa crew.”

Em simultâneo, as maquetes com o material de estreia dos Micro foram parar ao Repto, o mítico programa da Antena 3 de José Mariño, que tão importante foi para formar a cultura hip hop em Portugal e através do qual muitos MCs, produtores e DJs foram apresentados aos trabalhos dos seus pares. “Já na altura estava muito atento ao que fazia o D-Mars, cujo percurso já seguia desde o programa que eu fazia na Rádio Energia, ou seja, em 92/93”, explica José Mariño ao Rimas e Batidas. “Acompanhei o trabalho dos Micro desde o início, com destaques, entrevistas, e a passagem no Repto, e em primeira mão, de muitas das novidades que iam apresentando, quer em maquete quer, posteriormente, em disco.”

Com a passagem na rádio a ser cada vez mais frequente – e o programa era seguido religiosamente por muitos -, os Micro foram-se tornando conhecidos no pequeno circuito underground que ainda era o rap português. Mas não deixaram de ter um impacto forte e começaram a ganhar público, o que resultou em cada vez mais actuações. “Porque soávamos de forma completamente diferente, fazíamos beats com sampling, tínhamos sempre scratch nos sons e tínhamos rimas e flows bué diferentes”, explica D-Mars. Sagas não tem dúvidas de que foi um dos momentos mais importantes do percurso. “Foi das melhores fases da minha vida. Era quase um sonho concretizado. Crescemos numa era em que o rap era conotado como negativo, como música de pretos, como estando ligado à violência. E os Micro sempre foram aquela banda que trouxe uma mensagem positiva, diferente, de esperança e com outros valores. E fazer com que essa escrita começasse a ser ouvida por mais gente, começar a passar na rádio, a dar concertos com alguma dimensão, para mim foi a cereja no topo do bolo. E foi também ver que o trabalho de meses e meses dentro do quarto do D-Mars a melhorar as rimas, a alterar os beats, estava a chegar ao público e estava a ser aceite.”

Tão aceite que chegou a muito ansiada a nível nacional Expo 98 e os Micro foram chamados para darem não um, mas três concertos. Um deles foi inserido numa jam session organizada por Exas, icónico e pioneiro writer que entretanto se tinha tornado manager dos Micro; outro na Praça Sony, numa festa com outras bandas; e outro com os Mind da Gap, que um ano antes tinham lançado Sem Cerimónias. “A sala era para aí para duas mil pessoas, estavam umas três mil. Saíam de fora”, conta Nel’Assassin, com entusiasmo enquanto se recorda. “Sem álbum, estávamos a tocar como se já tivéssemos. Porque ficámos muito tempo fechados no quarto e tínhamos muitas faixas feitas. E quando tens reportório podes tocar ao vivo, mesmo não tendo álbum. E isso é um bocado o brain do D-Mars a funcionar.”

A pouco e pouco, os três acumulam dinheiro e começam a pensar em gravar um álbum. Tinham instrumentais novos, temas novos para abordar, e em 1998 já havia música suficiente para se fazer um disco. Foi nesse verão, que também coincide com a Expo, que os Micro começaram a gravar aquele que seria o seu primeiro álbum: Estratégia. “Todo o dinheiro que a gente fazia era para esse tal Estratégia, gravado num estúdio ao pé da Expo, em bobines”, conta Nel’Assassin. Tratava-se do segundo estúdio da Discossete, uma editora de música pimba que tinha boas condições para gravar. Em 1998, o grupo apanhou a passagem do analógico para o digital e gravou o álbum em bobines, o que era bastante caro. “Nós estávamos a alugar o estúdio e o técnico de som: era muito fixe, nosso amigo também, e percebia mais ou menos o que estávamos a tentar fazer, era muito importante”, diz D-Mars. “O pessoal não percebe que, na altura, tirando os álbuns de Mind da Gap e do AC, que foram produzidos pelo [americano] Troy Hightower, poucos técnicos de som percebiam de produção de hip hop e do que é que a gente queria. Isso ouve-se no Rapública. Foi misturado de uma forma horrível.”

O álbum, porém, nunca chegou a ser lançado. “Porque a pessoa que também financiou e ia editar o disco e era nosso manager, quase um quarto elemento dos Micro, o Exas, na altura fodeu-nos, desapareceu”, explica D-Mars. “E nós ficámos sem um disco que, se tivesse saído logo, a história dos Micro teria sido ainda mais diferente.” Nel’Assassin acrescenta que, apesar de tudo, isso também os motivou a seguirem em frente. “Deu-nos aquele drive para fazermos outro álbum. ‘Não, não queremos este mais. Vamos fazer um novo!’”

Sagas diz que, apesar de “o Microestática [aquele que, de facto, viria a ser o primeiro álbum dos Micro] ser “um clássico”, o álbum “brutal”, com que mais se identificavam, “na pura essência”, era Estratégia. “Lembro-me de scratchar Amália no Estratégia, por exemplo, e cenas de ópera. São tudo sonoridades novas para a altura, que ninguém tinha usado”, conta Nel’Assassin. Mas não se perdeu totalmente. Chegámos a ouvir algumas das faixas feitas para esse disco. “Tinha beats bué fortes e alguns desses sons [cerca de quatro ou cinco] acabaram por entrar no Microestática. Se souberes disso e eu te disser os temas, tu ouves o Microestática e apercebes-te de que o som é muito melhor nesses temas. Porque tínhamos gravado em fita, com bué tempo, e com os outros temas do Microestática foi tudo a correr. Queríamos editar um disco o mais rápido possível”, afirma D-Mars. Apesar das várias actuações, os cachets eram baratos e demorou bastante tempo até os Micro conseguirem recuperar o dinheiro que tinham investido.

 


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[A ASSEMBLEIA DA MICROLÂNDIA]

Enquanto Estratégia se tornava um álbum fantasma e um percalço interno, por fora os Micro continuavam a ganhar força – mesmo sem terem qualquer disco. Mais do que Micro, a crew Microlândia Connection era uma instituição do hip hop português. Além de Sagas, D-Mars e Nel’Assassin, faziam parte gente como Nomen, Youth, os bboys Miguel e Xuxu, os artistas que viriam a formar os grupos de rap Mundo Complexo e Ofício, alguns familiares e outros amigos, além do writer alemão Babak. Sem fazerem de propósito, a crew reunia todas as vertentes da cultura hip hop – muitos dos membros praticavam várias delas – e representavam essa união ao mais alto nível no panorama nacional.

“O pessoal do graffiti, da dança, são nossos amigos de sempre. E resolvemos criar a Microlândia, porque sentimos que tínhamos quase uma aldeia só nossa. Nós tínhamos as vertentes todas dentro da crew, mas foi natural, não foi nada imposto ou que nós tivéssemos uma ideia pré-concebida de que íamos criar uma crew com todas as vertentes. As influências externas [do hip hop americano] claro que fizeram com que as coisas andassem mais rápido, mas aquilo era tão genuíno porque era amizade pura. Eles acompanhavam-nos para os concertos todos, estávamos sempre juntos, parávamos muitas vezes ao fim de semana à noite para fazer improvisos”, diz Sagas, sobre as noites passadas no Extra, em Carcavelos, ou no Cais do Sodré de então.

Entretanto, o nome Micro – e dos seus três elementos – começava a ser literalmente espalhado por essa Linha de Cascais e Lisboa fora. “Era importante naquela altura dar props e os Micro não foram excepção”, diz Youth, um dos pioneiros do graffiti em Portugal, que assina como Ridículo na música, ao Rimas e Batidas. “No grupo havia a cultura a valer: rap, graffiti, bboying, turntablism. Na altura estávamos tão focados que havia outros amigos e conhecidos de outras zonas também amantes de hip hop que se ligavam a nós com esse nome. A Microlândia era o nosso pequeno mundo onde o hip hop era o nosso Deus. O nosso elo, o nosso lema.” D-Mars diz com humor: “Hoje somos um grupo no Whatsapp [risos].”

Foram estes writers que, entre outros, fundaram o famoso hall of fame das Amoreiras. “Nós somos o grupo com mais props nos graffs. Não há hipótese”, atira Nel’Assassin. “Eu sou o DJ com mais assinaturas em graffs. Muitos deles já bazaram, mas se eu tivesse de contar… Toda a gente assinava Microlândia, MLC, Nel’Assassin, Sagas, D-Mars, sempre. Micro é muito espiritual. Não é só música, não é só um lifestyle. É um mindset: como meditação”, defende. Nomen, outro dos pioneiros do graffiti em Portugal, fala dessa época. “Eram muito unidos e empenhados em serem os porta vozes do rap nacional e a levá-lo de norte a sul de Portugal, não só na área local, isso é que os distinguia”, diz o writer. “Para muitos, como eu, foram o pilar da estrutura do hip hop nacional e mad respect por isso.”

O quarto de D-Mars, que há vários anos servia como sala de ensaios e estúdio para os Micro, tinha crescido em importância e alargado a um espaço que recebia muito mais gente. Em paralelo com a rádio, surgia nesse momento outra forma de divulgar o trabalho de rappers, e tudo sem sair da própria arte e cultura: as mixtapes e compilações. Além dos cortes, Nel’Assassin começou a preparar as suas mixtapes, que foram do 1.º ao 5.º Assassinato, entre 1998 e o início dos anos 2000. D-Mars também organizou as suas compilações, sendo uma das mais importantes Subterrânea. No futuro iriam sair outras, como Hip hoportuga 2000 – um termo que se iria encurtar para a expressão hip hop tuga, usada por milhares e milhares de pessoas em 2017. Curiosamente, D-Mars também foi o primeiro a usar a expressão Rimas e Batidas. “Eu como DJ tinha a necessidade de fazer uma mixtape e aí é o início do turntablism. Porque até então era só mesmo cuts – a Yen Sung, o Jaws-T, o meu irmão e outros DJs – era só scratch e eram DJs que passavam outras cenas, não só hip hop”, diz Nel’Assassin. “Vendi numa manhã 30 exemplares da primeira mixtape na [loja] Big Punch. Para mim foi tipo disco de platina, fiquei bué contente. Em duas horas já não havia mais nada, o pessoal viajou para comprar a cena.”

 



Um dos vários rappers de renome que se estreou a gravar naquela casa, e em Subterrânea – com os temas “Ciclo Infernal” e “Resistência” – foi Chullage, que se tinha tornado amigo de D-Mars através de DJ Sas, apesar de antes já conhecer os Micro dos concertos. “Ias lá buscar o beat, acabavas por encontrar outro MC qualquer que também tinha ido lá. Conheci muitas pessoas na casa dele. Era o nosso estar, o nosso viver. Não só eram espaços onde os MCs conviviam mas eram espaços que forjaram a cultura hip-hop e o nascimento de toda aquela vaga underground que vem a seguir ao Rapública”, conta Chullage.

A dificuldade foi maior em levantar o movimento hip hop nos anos a seguir à compilação da Sony. “Antes do Rapública, e eu era uma das pessoas que assistia aos concertos, via que os grupos eram como uma família”, diz Sagas. “Estavam em cima do palco, os outros que estavam cá fora estavam a apoiar. E o Rapública parece que veio partir um bocadinho os links que eles tinham uns com os outros e isso foi mau. E nós surgimos depois dessa quebra: eu costumo dizer muitas vezes nas rimas que ‘eu trouxe uma nova vida em 95, tu sabes’. Repito em várias rimas a mesma expressão. Porquê? Porque sei que bandas como a nossa, que surgiram nessa altura, vieram trazer outra vida ao hip hop, outra forma de estar, outro tipo de rimas, e viemos numa era de partir pedra, de começar a luta que foi até aos anos 2000 – 2002, 2003. Tivemos que carregar tudo novamente sozinhos.”

O rapper da Arrentela não tem dúvidas de que essa fase foi determinante para a evolução do rap português. “Foi super importante. A gente começa a ouvir bué MCs daqui e dali que não conhecíamos de nenhum lado. E as outras pessoas começam a ouvir quem são os MCs que estão aí. Nessa altura, as mixtapes eram uma espécie de filtro. Tinhas que ter uma rima fodida para entrares numa mix que fosse do Assassino ou nas cenas do Mars. Não havia como seres conhecido ao fazeres um som no teu quarto e pores na rua. Isso é bom por um lado, não tens de depender de outros gajos, mas por outro ias passando por um processo: rimavas no teu bairro, depois lá ganhavas coragem para ires a uma cypher, por acaso naquele dia estava o D-Mars ou o Assassino, ou o Bomberjack, e punha-te na cassete. Esse processo faz falta a quem o viveu, quem não o viveu nem sequer sabe da sua existência. Essas mixtapes todas que vêm a seguir são também um bocado inspiradas pelo trabalho que os Micro começam a fazer aí.”

 


[MICROESTÁTICA E O MERCADO INDEPENDENTE]

As primeiras mixtapes e compilações cozinhadas em Paço de Arcos são o prenúncio para o que vinha aí: agora sim, o primeiro álbum dos Micro, a que resolveram chamar Microestática. Para darem o passo seguinte ao nível da produção, Sagas – aquele que tinha mais dinheiro dos três, porque era futebolista profissional – comprou uma MPC, uma das primeiras a aparecer no rap português. “’Manos, vou comprar uma MPC para nós.’ E a gente não acreditou [risos]”, conta Nel’Assassin, quando Sagas lhes contou do seu plano. “E ele apareceu lá com a MPC. Que foi directamente para as mãos do D-Mars, porque era ele que tinha experiência em beats. Ele já tinha um sampler Akai em casa, já lidava com a QY10, aquela caixinha de ritmos. Já tinha uma colecção de discos do caraças, e um knowledge incrível de samplar e mesmo de hip hop. Eu é que era o DJ, mas ele tinha mais discos do que qualquer um de nós. A MPC também foi um grande incentivo para fazer o Microestática. Até então só conseguias disparar samples, e não podíamos choppar e tocar as notas, era impossível. Quando aquilo surgiu, mudou o mundo.”

D-Mars, como produtor natural do grupo, por ser mais experiente na área, apoderou-se da MPC – mas nos créditos de Microestática encontramos beats assinados por todos os elementos. “Eu pegava nela mais para me ir habituando à máquina, ir tentando fazer alguns beats. Foi passando de mão em mão, o Assassin também começou a fazer uns beats, começámos todos a experimentar”, explica Sagas. Nel’Assassin conta que estava no estúdio para “dar a vibe” e incendiar criativamente o espaço. “Convergíamos em temas, mas sempre com pontos de vista diferentes”, conta Sagas sobre o processo para escreverem as rimas. “A minha visão das coisas muitas vezes era diferente da do D-Mars. E nós escolhíamos um tema e daí partíamos para começar a escrever. As nossas mensagens nunca foram muito leves.”

Não era difícil de identificar a sonoridade dos Micro. “Os beats distinguiam-se logo e isso era bué importante porque conseguiram criar um universo sónico próprio”, diz Chullage. “E quem diz beats diz o facto de terem tido logo aquela composição de hip hop, com bué scratch. Estavas a ouvir os Micro e tinham aquilo que era suposto uma banda de hip hop ter. A MPC, aqueles samplings… todo esse universo de quem gostava, por exemplo, do hip hop de Nova Iorque. Já não estávamos a ouvir uma caixa de ritmos. E isso também marcou sonicamente a cena. Depois vinham com aquelas rimas e um discurso à volta do hip hop, como é que o hip hop devia ser, mas também com uma visão social que eles tinham. Eram uma referência, até em palco.” Para Chullage, também foi importante a marca do grupo que representava toda a cultura hip hop. “Nunca tiveram uma visão do hip hop como é agora, que é o MC e o produtor. Nunca houve isso. Sempre promoveram e incluíram o breakdance, o graffiti, o DJ. Quando digo DJ não é um gajo a lançar beats, é um gajo a scratchar. É uma coisa que se ganhou com os Micro e hoje em dia se perdeu. Nós vivíamos na Arrentela e falávamos muito das nossas vivências na rua, os Micro falavam dessa vivência do hip hop, de hall of fames.”

Com um pequeno apoio financeiro da marca Carhartt, os Micro arranjaram um estúdio barato para gravarem o álbum e as misturas foram feitas muito rapidamente. Foi Nomen quem desenhou a capa do disco e outro elemento vital foi o writer alemão Babak, que já vestia a camisola da Microlândia. Desde meados dos anos 90 que tinha ficado amigo de muitos dos writers da Linha de Cascais e vinha a Portugal regularmente. Na Alemanha, pertencia à crew de rap político de esquerda Anarchist Academy, onde rimava e fazia beats, mas acima de tudo geria a carreira internacional do colectivo. Ao mesmo tempo, era o responsável por lojas de graffiti. Em 2004 abriu a Dedicated Store em Colónia. O nome é familiar? Talvez porque também tenha existido uma em Lisboa – que foi gerida pelo irmão de D-Mars, Ivan Roca, e que agora é propriedade do writer Eko – e outra no Porto. Na altura, Babak passou largos meses em Portugal e começou a trabalhar na lendária Godzilla, loja de discos que vendia os primeiros álbuns de hip hop em Portugal, e que depois viria a resultar na Kingsize. Nessa altura, foi uma peça chave para o arranque do álbum.

“Ajudei-os na parte técnica, como a produção dos CD em si e a distribuição na rua”, explica Babak ao Rimas e Batidas. “A minha ex-mulher era fotógrafa amadora na altura e tirou as fotos que foram para o artwork do álbum. Lembro-me de celebrarmos o lançamento no Extra com uma data de litrosas.” Babak não entendia completamente as letras difíceis de decifrar, sobretudo para quem não falava bem português, mas diz que “tinham o feeling certo”. “Eu perguntava ao D-Mars, sentávamo-nos na altura e ele às vezes traduzia-me as letras todas. Tocou-me muito.” D-Mars diz que Babak foi “quase um quarto elemento dos Micro”. “Ele tinha muita experiência a fazer discos na Alemanha, tinha lá uma fábrica, não precisávamos dos papéis da SPA e essas merdas todas, e basicamente mandámos fazer lá. Acho que até foi ele que adiantou a guita, não me lembro bem.”

Microestática tornou-se o primeiro álbum em que Chullage participou, na faixa “Kaos Total”, que também tinha a participação de Ridículo e Clay, dos históricos Nexo. “É um momento que me abre para o resto do underground, foi bué importante para mim, e também foi uma honra. [O álbum] influenciou-nos a todos. É importante porque vimos daquela era pós-Rapública, tinha havido uma editora que tinha pegado nos rappers e feito o que quis… o que os Micro vêm dizer é: ‘não, mano, a gente pode’. Já estava a acontecer com as mixtapes, mas ‘a gente pode fazer esta merda do it yourself’, como o hip hop é, e distribuir, podemos pôr isto na nossa mão. Esse disco é que também vai influenciar essa época que sucede a isso dos lançamentos independentes todos que forjam o hip hop português.” Em 1999, o álbum de estreia dos Micro foi o primeiro lançamento independente profissional do rap português [se não contarmos com a excepção God Bless Johnny, o EP de rap rock dos Da Weasel de 1994]. Sam The Kid tinha lançado uns meses antes Entretanto, mas de forma artesanal, em CD-R. “O primeiro álbum do Sam é genial, mas o nosso foi o mais pró, fomos os primeiros gajos a fazer um disco pró e independente. A história é essa, mas ele está sempre em battle comigo [risos]”, provoca, a brincar, Nel’Assassin. Chullage, Regula, Filhos de um Deus Menor (de NBC e Black Mastah), Xeg, Nigga Poison ou Valete, entre tantos outros, foram alguns dos que lançaram álbuns independentes nos meses e anos que se seguiram.

 


https://youtu.be/taRFji5j7jA


Microestática, que teve ainda rimas de Sanryse, foi um sucesso de vendas. “O único sítio onde podíamos vender na altura era uma loja chamada Godzilla, onde trabalhava o Cheeks. Ficava no andar de cima de uma loja de roupa”, conta D-Mars. “E só na Godzilla vendemos, se não me engano, entre 700 a 800 cópias. Foi incrível. Recuperámos a guita e conseguimos investir noutras cenas. À pala disso, a Fnac, que na altura estava a começar, também nos pediu directamente, e na altura era sempre através de distribuição. Também vendemos bastante. Demorou algum tempo até a Fnac perceber: ‘estes gajos, é melhor termos aqui o disco deles’. Porque nós estávamos completamente à margem do que os outros artistas estavam a fazer, que era a indústria mais tradicional.” O impacto fez-se sentir e o grupo começou a dar mais concertos e a ser convidado para festivais. Sagas diz que a música estava “mais aberta” do que em Estratégia. “O som do Estratégia era fechado, obscuro, com metáforas inerentes e uma mensagem muito subvertida. No Microestática, apesar de ser quase uma continuação, criámos temas que se abriram mais e se tornaram mais óbvios para as camadas que não entendiam, porque usávamos sempre um palavreado muito rico e erudito. Tentámos criar um equilíbrio diferente.”

Ridículo, ou Youth, diz que foi muito importante trabalhar com eles em estúdio. “Eram uma banda mítica de respeito, com qualidade sonora e letras bem apuradas. Tenho a sensação de que eles estariam à frente para aquela época, sempre os vi com uma postura muito profissional e eram mente aberta.” José Mariño concorda que o lançamento se tornou essencial para a cultura do rap nacional. “Marcaram de forma indelével os tempos em que o hip hop não era moda em Portugal e ajudaram a construir os alicerces de uma cultura que entretanto se foi dissolvendo ao crescer exponencialmente no universo nacional, passando a fazer parte do mainstream. Souberam ser Micro sem se preocupar com o macro e ajudar a construir as fundações mais sólidas do verdadeiro hip hop português.”

 


[O NASCER DA LOOP RECORDINGS E DEMOSTYLE]

A par das mixtapes e compilações, D-Mars tinha iniciado um percurso na rádio, quando foi um dos convidados por José Mariño para agarrarem no programa Submarino, da Antena 3. “O D-Mars tinha a seu cargo a divulgação dos novos projectos made in Portugal que iam surgindo”, explica o antigo radialista. Além da 3, D-Mars, tal como outros músicos, fazia algumas participações em Hip Hop Don’t Stop, programa da Rádio Marginal conduzido por DJ Jaws-T (que vinha dos Líderes da Nova Mensagem) e por Rui Miguel Abreu, que trabalhava na editora Valentim de Carvalho e que hoje é, entre várias outras coisas, director do Rimas e Batidas. “Eu hei-de ter ouvido os Micro pela primeira vez no próprio programa de rádio. Eles tinham acabado de lançar o primeiro álbum”, conta Rui Miguel Abreu. “Gostei muito do facto de os Micro terem construído um universo próprio: a ideia da Microlândia, o facto de eles passarem a vida a rimar sobre o próprio hip hop, havia muito a ideia de que eles pensavam a própria cultura e rimavam sobre a própria cultura. A cultura inspirava-os e eles devolviam essa inspiração com música que abordava os diferentes aspectos da própria cultura. E achei que isso era muito diferente neles.” Houve negociações para os Micro se juntarem ao roster do selo NorteSul, que tinha editado, entre outros, álbuns de Mind da Gap, Boss AC ou Cool Hipnoise.

Apesar de não ter chegado a avançar, a relação estava criada. A Valentim de Carvalho fica em Paço de Arcos e a rádio Marginal ficava relativamente perto, em São Domingos de Rana. D-Mars e Rui Miguel Abreu também não viviam longe. “Nós encontrávamo-nos com frequência no comboio: havia sempre idas ao final do dia a Lisboa por causa da Godzilla. E essas viagens eram sempre passadas a falar. Em 2001 começo a ter vontade de sair [da Valentim de Carvalho], e numa das conversas com o D-Mars no comboio digo-lhe: ‘vou sair da Valentim e vou abrir a minha própria editora’. E diz ele: ‘eu também ando com ideias de abrir uma’. E eu expliquei-lhe que queria abrir uma editora especificamente virada para o hip hop, ele disse que também era essa a sua ideia, e a coisa aconteceu naturalmente. ‘Porque não juntamos esforços os dois?’” Nascia assim, em 2001, a label independente Loop:Recordings, que viria a ser a casa dos Micro por vários anos. “Houve sempre a ideia de, por um lado, o D-Mars quase se assumir como um house producer da editora. E isso aconteceu de uma forma muito natural. E, por outro, materializar a tal ideia utópica da Microlândia. Falava-se nos Ofício, nos Mundo Complexo [amigos dos Micro e grupos de rap da zona que editaram na Loop], e todos os três membros dos Micro eram artistas completíssimos. Todos eles poderiam fazer coisas a solo e aquilo assumiu-se imediatamente como casa natural dos Micro, mas sem nunca estar fechada.”

Para estrearem a editora, pensaram em fazer um novo disco de Micro, mas um trabalho mais curto, antes de um novo álbum. O EP Demostyle, com beats a evocar os anos 80 e artwork gráfico inspirado no clássico filme Beat Street, foi a edição número 1 da Loop Recordings. “Para mim era um privilégio estar em estúdio”, conta Rui Miguel Abreu. “Para aí em cinco minutos ensinei ao D-Mars o pouco que eu sabia, a parte técnica que eu trazia de ter passado muitas horas em Paço de Arcos, no estúdio, com MInd da Gap, com Ithaka, com Boss AC ou Cool Hipnoise. E o equipamento base que estava no estúdio era meu. A mesa de mistura que gravou os Micro, e que hoje é a mesa do estúdio do Armando Teixeira, tem uma história curiosa: tinha vindo do José Cid. Uma mesa analógica linda que eu não tardei a descobrir na capa de dois discos de hip hop [de Jazzy Jay e do francês Akhenaton], que tinham fotos que mostravam que a mesa que usavam em estúdio era exactamente igual à nossa, uma Yamaha analógica, com chassis em madeira. Estava lá o meu sampler, a minha MPC era a do estúdio – que hoje é a do D-Mars -, portanto fui orientando a disciplina de mistura, que era uma coisa que ele nunca tinha experimentado. Demorei aí uns cinco minutos a ensinar tudo o que sabia e o D-Mars depois levou isso para outra dimensão porque o que ele não sabia já compensava com um instinto apuradíssimo e uma educação de ouvido que poucos possuiam. Ele entendia a identidade sónica do hip hop como poucos.”

Os outros dois elementos dos Micro também adoraram a ideia de o seu parceiro ter fundado uma editora de hip hop que agora era a sua casa, com mais condições profissionais do que alguma vez tinham tido. “A Loop veio trazer aquilo que sempre tínhamos preconizado: termos uma editora nossa”, explica Sagas. “Obviamente que foram o D-Mars e o Rui que a criaram, mas nós também víamos a Loop como nossa. Foi a mudança que fez com que tivéssemos um estúdio próprio para gravar, uma organização e agenda diferente.” Nel’Assassin concorda. “Juntou-se uma peça: o Rui Miguel Abreu juntou-se à cena de Microlândia e criaram uma label que foi das mais importantes e sérias no hip hop”, diz o DJ, acrescentando que a partir daí se abriram ainda mais musicalmente. “Não eram pessoas mentalmente fechadas, dentro do hip hop há people fechado que só ouve rap. E a Loop era uma editora de bué cenas, principalmente de projectos instrumentais, uma cena mais alternativa. Eu vejo a Loop como a Ninja Tune tuga. O Demostyle foi uma altura funky. Era um rap consciente, mas a nossa mentalidade era mesmo: ‘nós somos gajos da música. Sempre fomos gajos da música. Ok, o hip hop é a nossa cena, mas curtimos mesmo das cenas maradas da Ninja Tune, e Company Flow, etc.’”

O próprio Rui Miguel Abreu, que tinha o projecto Arkham Hi-Fi com Jaws-T, dos Líderes da Nova Mensagens, produziu a faixa-título de Demostyle. “Eu tinha a ideia do beat, tinha os Arkham Hi-Fi, mas até achei que a sonoridade nada tinha a ver com isso, e nós inventámos um nome qualquer para assinar a produção do tema.” Seria Beat Scientists. “Tinha a ideia de usar um scratch no refrão. Então tínhamos um loop, que eu tinha o disco em causa, dos Indeep, os mesmos de ‘Last Night a DJ Saved My Life’, e pedi ao Nelson para o scratchar.” Rui Miguel Abreu tornou-se também parte da rotina dos Micro no estúdio. “Lembro-me de sugerir vários samples: ‘olha este que descobri ontem a ouvir este disco de soul, o que é que acham?’”. E descreve como foi trabalhar com o trio. “Eles evoluíram todos uns com os outros. Tenho a certeza de que as carreiras do D-Mars, do Tomé e do Nelson em separado teriam direcções muito diferentes das que acabaram por ter. Eles literalmente picavam-se uns aos outros. Se um sentia que o outro estava a evoluir como produtor, um deles ia querer evoluir como DJ e o outro iria querer trazer flows ainda mais malucos. E essa provocação mútua era incrível.”

 



Muito do trabalho feito tinha a ver com a disciplina e o empenho incansável do luso-croata. “O D-Mars tem um bocado esse lado nerd cientista, adorava estar em estúdio, vivia para aquilo, e era uma coisa com uma disciplina de quase emprego. Apesar de estarmos a trabalhar para nós próprios, o D-Mars estava todos os dias no estúdio. Não era 9 to 5, era mais 9 to whatever hours it needs to be. Normalmente passava as manhãs a produzir, e depois tardes e noites a gravar. E o que gravava depois estava a misturar na manhã seguinte. Ele era muito metódico, e o Nelson e o Tomé seguiam-no. Depois, cada um deles muito rapidamente aprendeu como funcionar dentro do estúdio: os cortes do Nelson eram sempre muito precisos, nunca havia aquela coisa de estar a fazer incontáveis takes, e a mesma coisa com as rimas.” Nem sempre os MCs escreviam juntos, apesar de muitas vezes ter acontecido em sessões que se prolongavam durante horas e que depois incluíam a gravação. Demostyle contou com a voz da radialista Isilda Sanches na intro, e participações de vários rappers – incluindo Babak ou o MC alemão Majubiese, da sua crew germânica.

A Loop Recordings começava aqui uma história que os levaria a editar vários projectos de rap português ligados ao universo da Microlândia, como o álbum Irmandade, que juntava Ridículo, Sagas, D-Mars e Fuse, em 2002. Youth não tem dúvidas de que os Mundo Complexo também se fundaram a partir dos Micro. “Acho que, em certa parte, Mundo Complexo são raiz dos Micro, que foram a causa. A relação e a paixão levou ao resto.” Microestática viria também a ser reeditado mais tarde, em 2004.

 


[MICROLANDESES NOS COLISEUS]

Depois de um trabalho mais curto e até experimental, os Micro apostam num novo álbum em 2002. Feito sem pressa, Microlandeses foi gravado e misturado durante meio ano. Um dos maiores temas de sempre da banda, “Respeito”, é deste disco, com um instrumental produzido por Sagas. “No início fazia eu sempre tudo”, explica D-Mars, sobre a produção de beats. “Este é um disco onde já existe mais esse equilíbrio na produção, e existe o tema do Nel’Assassin que é só de scratch – que na altura ainda ninguém tinha feito isso em Portugal – , ‘Sr. Alfaiate’, que depois até ficou como um dos akas do Assassin. O disco correu bem: tivemos exposição mediática, vendeu bastante fixe para o que era o mercado na altura, e continuámos sempre a dar concertos.”

Os três elementos dizem que foi a fase mais madura e com a fasquia mais elevada da banda. “O Microlandeses foi a elevação dos Micro.”, diz Sagas. “Tinhas feito o Microestática e o Demostyle, não digo que eram álbuns amadores, mas… a sonoridade era mais restrita e reduzida. Criámos uma diversidade musical completamente diferente daquilo que os Micro tinham feito no passado. No Microlandeses acho que encontras a verdadeira essência dos Micro: ouves o disco do início ao fim e percebes que cada tema tem uma história e é diferente um do outro. E isso fez com que abríssemos o leque da nossa música a toda a gente.”

Outra questão relevante para a história deste disco é a associação da Loop Recordings à britânica Low Life Records, fundada no início dos anos 90, que tinha uma presença forte no meio underground do rap inglês. Daí a possibilidade de nomes como Rodney P e Braintax participarem em Microlandeses. “Nós estávamos paralelamente a fazer festas na ZdB, e a contratar artistas internacionais para virem cá: o Rodney P, etc”, explica Rui Miguel Abreu. “E sempre que vinham: estúdio. Era obrigatório. Já havia quase uma visão integrada da coisa: eles vêm, a gente não vai ganhar dinheiro nenhum com isto porque os bilhetes de entrada serviam para pagar os bilhetes de avião – que não havia lowcosts na altura -, e então o lucro para nós era sempre artístico. Vamos trazer o Rodney P porque ele vai fazer um bom concerto, vai passar lá no estúdio… ‘querem conhecer, ouvir uns beats?’ E era tudo gente com a mesma mentalidade hip hop e acabavam por perceber e fazer sempre qualquer coisa.” Nel’Assassin sente que foi uma ligação “importante” e “pioneira.” “Para teres o Rodney P é porque estás a fazer alguma coisa de certo, não é? The next level.”

Foi este disco, que no ano seguinte os catapultou para o Super Bock Super Rock, em duas noites temáticas da nona edição do festival, repartidas entre o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e o Coliseu do Porto. A curadoria era da Loop Recordings. Os Micro abriram para os De La Soul e tocaram, além disso, com Mundo Complexo, que se estavam a preparar para lançar o álbum de estreia, em Lisboa; Fuse, que tinha editado Sintoniza na Loop, no Porto; e Sam The Kid, que os acompanhou nas duas datas para apresentar os temas de Sobretudo – e que também tinha lançado na Loop Beats Vol. 1 – Amor.

 



“Foi a primeira vez que tivemos assim um palco grande: a sala estava 80% cheia”, relembra D-Mars sobre a actuação no Coliseu dos Recreios. Rui Miguel Abreu destaca a quantidade de concertos que deram na altura, e depois, com nomes internacionais. “Os Micro são provavelmente a banda que mais vezes tocou com nomes internacionais, pelo menos nesta fase: tocaram com Rodney P, All Natural, Little Brother, De La Soul, Harry Love. Eles tinham essa experiência e encaravam cada concerto como uma oportunidade de aprendizagem. Lembro-me, por exemplo, de eles serem muito afectados positivamente pelo concerto dos De La Soul. Aprenderam ainda melhor como é que se gere um concerto, como é que se gerem as emoções, a interacção com o público. E havia quase uma simetria: dois MCs e um DJ, uma identificação muito forte com aquilo que os De La Soul faziam em palco.”

 


[CAMINHAR A SOLO]

Depois de vários anos intensos a trabalhar como grupo, 2003 torna-se um ano em que os Micro procuram novas aventuras mais solitárias. “Nós fizemos alguns concertos com o Microlandeses e depois chegou uma altura em que começou a cair, que é o normal”, conta Nel’Assassin. “E eu comecei a fazer mais cenas de campeonatos, ganho em 2005 o I.T.F.. Eu tinha na cabeça ganhar os primeiros títulos das principais competições. E depois fui para Londres, sentir a vibe da cena da Low Life e conhecer Inglaterra.” O DJ dos Micro esteve na capital britânica vários meses e os rappers do grupo também partiram para projectos a solo – afinal, os Micro inspiravam-se directamente em grupos como Wu-Tang Clan, com todos os seus afiliados, e os discos a solo e projectos B de cada membro.

“O Sagas começou a trabalhar no disco dele a solo, ele tinha necessidade artística de exprimir coisas que em Micro não fazia sentido”, diz D-Mars. “O disco dele acaba por ser quase pioneiro ao nível da fusão… o crioulo está muito presente.” D-Mars gravou, misturou, produziu alguns dos beats e participou como rapper nalgumas das faixas de Rostu Limpu, o disco de estreia de Sagas (que depois adoptou Sagaz para assinar as coisas a solo) em 2005, também editado na Loop. Mas o cientista luso-croata já se tinha adiantado e preparado o próprio trabalho individual. “O facto de ele querer fazer um disco levou-me a mim a também querer fazer um disco. Só que eu fiz logo dois, uma edição dupla: Filho da Selva e Políticas à Parte”, que são lançados em 2003.

Pelo meio, quando Nel’Assassin esteve fora, os rappers dos Micro não pararam de dar concertos. “Crescemos muito em palco porque tínhamos um elemento a menos e tínhamos de arranjar maneiras criativas de tornar o concerto num espectáculo”, explica D-Mars. “E isso foi uma cena que aprendemos ao vivo com os De La Soul. Não é só chegar, meter o beat e cuspir as rimas. Era fazer um espectáculo: fazer do nosso concerto uma experiência. Proporcionar uma viagem pela Microlândia.” Essa colaboração apertada entre os dois MCs e produtores leva-os a criarem o próprio disco, Mentes Conscientes, que sai em 2004 – sem os cortes de Nel’Assassin e sem sair como um disco de Micro, apesar de pertencer ao imaginário da Microlândia. “A partir do momento em que um dos elementos não está, nós ficámos um bocado naquela: o que é que vamos fazer?”, conta Sagas. “Vamos deixar isto quebrar ou vamos fazer alguma coisa? Eu e o D-Mars continuámos a escrever e a produzir. O facto de ele não estar fez quase com que ripostássemos com esse disco.”

 



Já Nel’Assassin estreia-se a solo – tirando as mixtapes caseiras -, com Timecode, numa edição da britânica Touch Music, em 2004. Volta aos trabalhos na Loop:Recordings dois anos depois, sob o pseudónimo Sr. Alfaiate, com o álbum A Vida na Ponta dos Dedos. Os Micro nunca se separaram e tentaram por diversas vezes trabalhar em novo material. “Uma delas foi na altura em que o Nelson foi embora e nós não sabíamos se ele voltava sequer para Portugal”, diz D-Mars. “Só que depois fomo-nos distraindo, a vida distraiu-nos. Eu comecei a passar muito mais tempo na Holanda [onde já vive há nove anos] e depois durante algum tempo tivemos um período de afastamento quase natural. Sem haver uma razão negativa.”

Ao longo dos anos que se seguem, os três elementos dos Micro multiplicam-se por outros projectos. Sagas é o que permanece mais afastado da música, D-Mars cria o projecto instrumental Rocky Marsiano, começando num terreno musical próximo do jazz e aproximando-se depois crescentemente da música africana, e Nel’Assassin desdobra-se em DJ sets, participações em discos, os seus próprios trabalhos, e, mais recentemente, no grupo Niles Mavis. Os Micro, numa espécie de hiato, reúnem-se esporadicamente para concertos. A maior reunião de todas acontece em 2011, com uma digressão de cinco datas pelo país, que passa pelo Musicbox e pelo Musa, em Carcavelos, além de os levar ao Porto. “Cinco datas seguidas para nós foi importante para cortar a distância e a cena do D-Mars estar fora. Juntámo-nos na estrada e foi a melhor maneira”, diz Nel’Assassin. D-Mars explica que a vida os fez afastarem-se e a não trabalharem em coisas novas, apesar de nessa tour terem dito que estariam a preparar um novo trabalho. “Sempre existiu a vontade de nos sentarmos e fazermos o disco, mas simplesmente depois começaram a surgir os filhos e por aí fora… acho que nunca os três conseguíamos ver-nos a fazer vida só dos Micro. [Em 2011] sentimo-nos bué bem e partimos a loiça. Mas ficámos pelos beats e pelos conceitos para os temas.”

 


[O REGRESSO DOS TRÊS]

Chegamos ao presente, depois de vários anos quase sem actividade dos Micro. 31 de Outubro de 2017. O Rimas e Batidas anuncia que a curadoria Ciência Rítmica Avançada, do seu director, vai reunir a Microlândia no Palácio da Independência, a 24 de Novembro, a partir das 20h40, no Vodafone Mexefest – além de estarem programadas actuações de TNT e do angolano MCK para a mesma noite.

“Sentia que tinha de ser alguém como o Rui a convidar para fazer sentido para nós”, explica D-Mars. “E como Micro quase nunca mais gravámos: houve um tema para a compilação Ser Humano, para o Fuse [‘Donde Vim’, em 2014, o primeiro em muitos anos]”. Estão animados para o concerto – uma área em que sempre foram bons – e não têm dúvidas de que vão “rebentar”. “Vai ser um concerto com C grande, com todas as componentes”, promete Nel’Assassin. Podemos esperar scratch ao vivo, claro. D-Mars explica mais: “Vamos incluir temas de álbuns a solo, faixas que o pessoal conhece, se calhar nalguns temas vamos mudar os beats originais. Vai ser intenso, sempre foi.”

O mais importante é que, além disso, vem aí música nova. Está aqui mesmo, dentro deste artigo, em estreia Rimas e Batidas – o single “Pontos nos Is”, produzido por SP Deville, misturado e masterizado por Beat Laden, a primeira faixa do futuro trabalho dos Micro, que também vai poder ser ouvida no festival lisboeta. “Muito motivados por este concerto no Mexefest, fizemos algo de novo em estúdio, passado muito tempo. Estamos com pica agora”, revela D-Mars. Nel’Assassin diz que vai produzir mais neste álbum que estará a ser construído. “Lançamos este single nas ruas para depois ganhar tempo e fazermos o álbum. Foi sempre bué físico, estarmos juntos no estúdio, à distância nem faz muito sentido. Mas vamos aproveitar a Internet e as promoções e distribuições novas. A cena mais bonita é essa: é que estamos cá, ainda, e vamos fazer um álbum com os novos meios. Não vamos ter a mesma sonoridade, sempre a mesma coisa, mas é Micro.” Sagas está, evidentemente, no mesmo barco, a navegar no alto mar da Microlândia. “Eu acho que esta ida ao Mexefest vai ser o clique que nos faltava para voltarmos a estar juntos, voltarmos a fazer música. As coisas também estão mais avançadas a um nível tecnológico, o D-Mars está em Amesterdão mas podemos mais facilmente estar juntos, em duas ou três horas ele está cá. E estamos com as vidas um bocadinho mais calmas, os miúdos também estão a crescer. E a ideia também é essa: partir para algo mais sério.”

Há um sentimento no ar de que falta neste momento um rap com mensagem, consciente, apesar de a indústria do hip hop nacional estar maior do que nunca. “Às vezes as coisas têm de levar ali uma quebra, que foi o que aconteceu agora com o Kendrick Lamar”, diz Nel’Assassin. “’Pára aí um bocadinho, agora vamos ouvir isto.’ O rap consciente tem essa particularidade de ser muito importante para atenuar as cenas. Quando já estás a navegar bué na maionese e o people a preocupar-se mais com a imagem do que propriamente com a música. O rap consciente chega para parar isso tudo, porque de conteúdo está muito vazio.”

Chullage fala da importância que os Micro tiveram para dinamizar o hip hop em Portugal, mas que a sua importância no presente será sempre uma questão de perspectivas. “O hip hop não é o mesmo. Eu não tenho um discurso nada saudosista porque os tempos são os tempos. O tempo em que se forja o hip hop, com os Micro, eu, o Valete, o Samuel, foi aquele tempo. Estamos a viver um completamente diferente. Se eu disser que faz falta, faz falta a quem? A mim? Aos rappers que viveram esse tempo? Ya, capaz. Se faz falta a estes rappers novos? Não sei. O hip hop ramificou-se, tem vários caminhos, e às tantas há uma série de rappers que estão aí na berra que se calhar nem sabem a importância que os Micro e outras bandas tiveram para eles poderem hoje… mas é assim em todo o mundo. Se calhar se perguntares ao Future a importância do Rakim ele também se está a cagar de alto. Agora que o Rakim pavimentou o caminho para ele… É preciso entender o hip hop como uma coisa mais vasta. A cultura não é só o MC e o produtor e se eles podem trazer isso de volta isso seria sempre um aspecto importante. Porque o hip hop está todo desgarrado, os writers também estão nem aí. Era interessante porque eles faziam essa ligação e ligavam artistas, acabávamos por ver a arte uns dos outros, não estávamos fechados no quarto a fazer a rima para rebentar o MC A ou B.”

Sagas sente-se, apesar de tudo, reconhecido pelos pares. “Hoje sei que a influência perante muitos MCs é inevitável, porque eles falam comigo, e devem falar com o D-Mars e o Assassin. Malta que cresceu a ouvir-nos e hoje em dia rima, eu vejo esse reconhecimento. A nível de público, obviamente que a memória das pessoas é muito curta. E nós já estamos inactivos há algum tempo e a malta mais jovem… nem levo isso a peito, o facto de não se lembrarem dos Micro. Houve alturas em que me revoltava um bocadinho, quase que demos a vida por isto, mas agora não. É a altura de a gente voltar, fazer as nossas cenas de uma forma descomprometida e ver o que o público diz.”

O concerto no Vodafone Mexefest tem, por isso, uma importância ainda maior – pode significar o esperado regresso dos três a um trabalho discográfico, ou ao preencher de uma lacuna de um rap consciente que outros, como Valete, fizeram questão de apontar nos últimos meses. O tempo dos Micro e da Microlândia também é este. “Não sei se já se fez a justiça que eles merecem que lhes façam”, diz Rui Miguel Abreu. “Acho que eles acabam por ser vítimas do facto de estarem longe. Aquela coisa da ausência, longe da vista longe do coração. E os Micro saíram de circulação. E há toda uma nova geração que não os conhece. Este concerto no Mexefest vai ser, acho eu, o início da reposição dessa justiça que acho que lhes é devida.”

 


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