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Fotografia: João Beijinho
Publicado a: 02/10/2021

Houston, we have a space pirate here.

Wugori no Com Calma: a bordo de uma nave clandestina

Fotografia: João Beijinho
Publicado a: 02/10/2021

Não é publicidade enganosa. Rap clandestino é uma cena bem real nas noites da LUME Portugal no Com Calma, espaço cultural sediado em Benfica. Depois de termos marcado presença na estreia desta residência para ver o trio AVAN GRA, regressámos àquele que é uma espécie de novo templo do circuito underground para perceber em que ponto se encontra a arte de Wugori no pós-MAL PASSADO BEM PENSADO, trabalho dividido com o produtor gonsalocomc e que simbolizou um importante trunfo na hora do Rimas e Batidas se dedicar a um relatório de futurologia musical no nosso país, no qual o artista da Amadora surge ao lado de nomes tão disruptivos como certeiros, que vão de Julinho KSD e Nenny a Rita Vian ou Herlander.

Como todo o bom templo artístico que se preze, o acto de entrada é informal e somos recebidos por um hall/biblioteca onde moram alguns daqueles clássicos literários que ao longo de décadas levaram homens e mulheres à loucura. Descidas as escadas que nos levam ao basement, a pequena exposição de ilustrações de Post Mortem dão seguimento ao trilho do devaneio que àquela hora ainda tinha Saraiva a tratar da componente auditiva. Clandestinidade, práticas anti-sistema e hustle genuíno são isto mesmo: o responsável pelo warm up que nos havia de levar ao esperado concerto conduziu um DJ Set de quase duas horas com recurso a um controlador e um computador desktop (!), de grande porte mas ainda assim de relativa facilidade de transporte dada a estética sempre prática da marca da maçã trincada.

Só não se deixem enganar pelas aparências. A banda sonora seguiu sempre ao tom do rap mais cru, a condizer com a profundidade do local onde nos encontrávamos, e foi pautada por versos de um sem-número de pensadores dos tempos modernos. Evidence, ORTEUM, Atmosphere, NGA ou até relíquias da explosão crioula dos KBA ou o mais recente Álbum do Desassossego de Mura — a audácia pela aposta num registo muitas vezes marginalizado, o conceito transcendente a todo aquele alinhamento e o audível skill de mistura na hora de saltar entre trilhas são merdas daquelas que o dinheiro não compra.

A meia hora de atraso para a entrada de Nuno Rodrigues em cena não custou nem um pouco dado o pertinente contributo de Saraiva para aquela noite. Por outro lado, permitiu ainda que o cabeça de cartaz do evento tivesse já uma sala completamente lotada à sua frente quando subiu ao palco, tal como bem merece. Com um portátil à frente, um teclado MIDI à sua esquerda e o comparsa Snootie Chainz do lado direito, Wugori parecia estar num cockpit mais minimal de uma qualquer nave espacial clandestina, que parecia mover-se à velocidade da luz tal foi a quantidade de planetas sónicos com os quais se conseguiu cruzar em tão pouco tempo.

“Estão com sorte. Hoje vão ouvir muitos leaks,” avisava antes do arranque da viagem, como quem diz que está prestes a brindar-nos com protótipos do seu ambicioso álbum a solo, futuro fruto de uma jornada que até já está em andamento, “ali ente o trap e a electrónica“, conforme revelava ao ReB em Março deste ano. Neste caso, duas coordenadas são muito pouco para descrever o que passou pelos nossos ouvidos durante o seu espectáculo ao vivo que, curiosamente, quase nada teve de rap.

A descolagem aconteceu ao som de beats jazzy e lo-fi com um cunho muito próprio, uma prova de que também em Portugal se cozinham bons e suculentos Donuts. Embora doseados de forma milimétrica, houve períodos em que, já na pele de Juice Manuva, o levaram a contracenar com Chainz. Também MAL PASSADO BEM PENSADO constou no cardápio seleccionado pelo habitante do sótão mais criativo da Amadora, embora os beats de gonsalocomc tenham desaparecido do live act para que Wugori tivesse a oportunidade de casar versos e instrumentais da sua autoria. E que bem soaram “Tia May” e “Trolley” nesse novo registo: o primeiro tornou-se em algo próximo do que podemos ter em conta como uma sepulcral balada de despedida — e se algum dia encontrarem este corpo inanimado no chão podem tocar a nova versão no meu funeral — já a segunda, por mais voltas que se dêem, será sempre irresistível por todo o exercício de escrita que por lá reside — a sequência “Copo full, dou um pulo, na vitoria danço o esquema / Eles ficam fulos, foste nulo, multiplicas só o problema / Pensamentos viram Gengar, cada trauma vira lema / Heroi já morreu há bué por isso o vilão vira lenda / Santa vira kenga, sinceridade é lenga-lenga / Babilónia vai ao chão, é só o teu Deus a jogar Jenga” é das mais vistosas (e viscosas) que temos visto nos últimos tempos e transformou o Com Calma em Total Euforia nos minutos que lhe sucederam.

Numa prestação composta por, talvez, 70/80% de material puramente instrumental, sequenciado e/ou tocado mesmo à frente dos nossos olhos, houve ainda uma faixa com voz em estreia absoluta naquele espaço. “Vou deixar-vos a ouvir este som mas não vou cantar por cima.” Mentira. A vibração estava de tal modo elevada que a timidez foi posta de lado para nos entregar mais um momento único numa actuação estranhamento agradável e que ainda está em constante eco dentro da nossa cabeça na tentativa de ser correctamente decifrada. Nos beats, Nuno está um verdadeiro gorila de peito inchado, tal é a consistência que consegue aplicar nos inúmeros géneros que os seus pulsos já dominam. Houve boom bap, trap, house, techno e outras nuances electrónicas que ainda carecem de definições mais concretas. Uma chamada de atenção para os olheiros da Princípe Discos ou da Enchufada: há tarraxos e kuduros progressivos de luxo a sair das veias do jovem artista que cresceu na terra dos Buraka Som Sistema. E depois de tudo isto, o próprio universo já parece pequeno demais para um tão irrequieto pirata do espaço sonoro.


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