Nem Brodie Fresh nem Jae Skeese nos deslumbraram da última vez que entrámos no B.Leza. Estávamos lá, na última noite de Janeiro, para ver Conway The Machine, e, francamente, só a presença do rapper de Buffalo, Nova Iorque, bastar-nos-ia. Agora, se alguém com a fasquia de La Maquina traz, na sua estreia em Portugal, dois pares seus para as actuações preliminares à sua, ainda que não se espere deles o mesmo nível daquele que é, indubitavelmente, um dos melhores a fazê-lo actualmente, há que pelo menos não ficar muitos furos abaixo.
Nessa medida revelou-se Ben Reilly um caso bem diferente dos seus homólogos anteriores na mesma sala, meio ano depois. O rapper de Atlanta que tem acompanhado WESTSIDE BOOGIE na sua digressão europeia mostrou, desde logo, ser um representante digno do autor de MORE BLACK SUPERHEROES. E igualmente surpreendente foi descobrir que, apesar de desconhecido para a maior parte da plateia que esgotara a casa ribeirinha para ver o verdadeiro protagonista, Ben Reilly — sem pruridos em assumir o desajustado papel de underdog — é alguém (cujo nome artístico advém de uma personagem da banda-desenhada de Spider-Man) que tem, por exemplo, uma faixa com mais de 40 milhões de streams no Spotify. Foi, aliás, o próprio que deu conta dessa marca antes de cantar “Maytag (Tax Free)”, tema que se tornou viral a partir do TikTok.
Bom, mas números à parte, afinal de contas o criador da saga FREELANCE provou merecer todo o tempo que o parceiro lhe cedeu antes do acto principal — e aproveitou-o da melhor e das mais variadas formas, desde o drumless ao rage sem perder o cunho inconfundível de Atlanta, quer a fazer valer as suas capacidades técnicas enquanto MC, quer a ostentar os seus passos de dança mais elaborados, ou até mesmo a pedir esclarecimentos ao público lusófono sobre a tradução de apartment (para um português americanizado em “apartment-o”) e a definição de duplex aplicada por cá. Mérito total, portanto, para o cativante membro dos Abstract Media que veio a Lisboa dar o ar da sua graça, para rapidamente convencer quem o viu a voltar a fazê-lo numa próxima data, já em seu nome.
Agora, daí a conquistar um apreço quase incondicional da parte de umas largas dezenas de espectadores ainda vai um grande salto de carreira. É que muito antes de se afirmar a uma escala maior com Everythings For Sale — álbum que continua a ser, claramente, o projecto predilecto dos seus fãs portugueses —, já o na altura simplesmente Boogie acumulava trabalho discográfico relevante a solo. Tanto que, ainda em 2016, antes sequer de ser apadrinhado por Eminem na sua Shady Records, já Rihanna o considerava, publicamente, um “favorito”, graças a “Nigga Needs” de Thirst 48 Part II — aclamação essa que lhe valeu, aliás, um crescimento exponencial de visibilidade. Tal é o poder de RiRi.
E merecido, assinale-se. Até porque, apesar desses valiosos empurrões, o sucesso que hoje lhe permite lotar salas pela Europa fora deve-se, sobretudo, ao seu talento flagrante. Testemunhar em pessoa esse virtuosismo artístico era, aliás, uma certeza a priori. Só não esperávamos encontrar uma pequena legião tão entregue ao reportório visceral do rapper de Compton. Se é sobre as suas lutas e demónios que Anthony Dixson mais versa, também ele se confessava incrédulo com a proximidade sentida na hora entre a sua música e uma pequena multidão, à partida, alheia às suas cruzes. Afinal, nem só de saudade se enchem os corações lusitanos, e o hip hop norte-americano — cada vez mais aberto ao nosso circuito graças à ponte transatlântica que a Versus tem estabelecido — começa, nos seus mais reputados representantes, a descobri-lo.
Essa entrega de quem apaixonadamente se predispõe à boa vontade do interlocutor em sede própria abre caminho a um baixar da guarda de quem atravessa o Atlântico presumivelmente relutante, rendição que resulta, invariavelmente, nos melhores concertos a que tivemos o privilégio de assistir. E atenção, que a figura por si só, seja qual ela for, não implica necessariamente esse desfecho. Cumpre, até, distinguir o que Boogie nos trouxe na última noite de Verão deste ano: mesmo em comparação com algumas das melhores prestações que vimos por cá acontecer nos últimos tempos — com performers de mão-cheia como Saba, Smino ou Freddie Gibbs à cabeça enquanto medidas de peso na balança —, a energia do californiano afigurava-se incomparável a todos os níveis.
Qual diabrete irrequieto, de baixa estatura, olhos esbugalhados, caninos afiados e sorriso rasgado a encher o palco com uma presença magnânima. Desinibido como poucos, sempre pronto a interagir com o público — fosse a cumprimentar bem de perto a primeira fila, a pegar em telemóveis alheios e a registar em vídeo esses momentos, ou a descer à plateia e a misturar-se com os seus já completamente rendidos fãs. Magnânimo, repita-se, a desafiar espectadores a subirem ao palco para mostrarem serviço ao microfone (com Necxo — nome nada estranho por aqui, a começar rubrica Rap PT — Dicas da Semana — a destacar-se dos demais eleitos) e, mais do que isso, a dar-lhes espaço para falharem sem complexos, para ficarem aquém da vergonha, mais preocupado em chegar perto das suas gentes do que a pôr em xeque potenciais fraudes da arte da rima. Com ele, tudo nos pareceu realmente autêntico. Até a distinção de melhor plateia da tournée. Só pode ser verdade.