pub

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 25/09/2023

Ligação directa de Compton a Lisboa.

WESTSIDE BOOGIE no B.Leza: por mais super-heróis negros como este

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 25/09/2023

Nem Brodie Fresh nem Jae Skeese nos deslumbraram da última vez que entrámos no B.Leza. Estávamos lá, na última noite de Janeiro, para ver Conway The Machine, e, francamente, só a presença do rapper de Buffalo, Nova Iorque, bastar-nos-ia. Agora, se alguém com a fasquia de La Maquina traz, na sua estreia em Portugal, dois pares seus para as actuações preliminares à sua, ainda que não se espere deles o mesmo nível daquele que é, indubitavelmente, um dos melhores a fazê-lo actualmente, há que pelo menos não ficar muitos furos abaixo.

Nessa medida revelou-se Ben Reilly um caso bem diferente dos seus homólogos anteriores na mesma sala, meio ano depois. O rapper de Atlanta que tem acompanhado WESTSIDE BOOGIE na sua digressão europeia mostrou, desde logo, ser um representante digno do autor de MORE BLACK SUPERHEROES. E igualmente surpreendente foi descobrir que, apesar de desconhecido para a maior parte da plateia que esgotara a casa ribeirinha para ver o verdadeiro protagonista, Ben Reilly — sem pruridos em assumir o desajustado papel de underdog — é alguém (cujo nome artístico advém de uma personagem da banda-desenhada de Spider-Man) que tem, por exemplo, uma faixa com mais de 40 milhões de streams no Spotify. Foi, aliás, o próprio que deu conta dessa marca antes de cantar “Maytag (Tax Free)”, tema que se tornou viral a partir do TikTok.

Bom, mas números à parte, afinal de contas o criador da saga FREELANCE provou merecer todo o tempo que o parceiro lhe cedeu antes do acto principal — e aproveitou-o da melhor e das mais variadas formas, desde o drumless ao rage sem perder o cunho inconfundível de Atlanta, quer a fazer valer as suas capacidades técnicas enquanto MC, quer a ostentar os seus passos de dança mais elaborados, ou até mesmo a pedir esclarecimentos ao público lusófono sobre a tradução de apartment (para um português americanizado em “apartment-o”) e a definição de duplex aplicada por cá. Mérito total, portanto, para o cativante membro dos Abstract Media que veio a Lisboa dar o ar da sua graça, para rapidamente convencer quem o viu a voltar a fazê-lo numa próxima data, já em seu nome. 

Agora, daí a conquistar um apreço quase incondicional da parte de umas largas dezenas de espectadores ainda vai um grande salto de carreira. É que muito antes de se afirmar a uma escala maior com Everythings For Sale — álbum que continua a ser, claramente, o projecto predilecto dos seus fãs portugueses —, já o na altura simplesmente Boogie acumulava trabalho discográfico relevante a solo. Tanto que, ainda em 2016, antes sequer de ser apadrinhado por Eminem na sua Shady Records, já Rihanna o considerava, publicamente, um “favorito”, graças a “Nigga Needs” de Thirst 48 Part II — aclamação essa que lhe valeu, aliás, um crescimento exponencial de visibilidade. Tal é o poder de RiRi.

E merecido, assinale-se. Até porque, apesar desses valiosos empurrões, o sucesso que hoje lhe permite lotar salas pela Europa fora deve-se, sobretudo, ao seu talento flagrante. Testemunhar em pessoa esse virtuosismo artístico era, aliás, uma certeza a priori. Só não esperávamos encontrar uma pequena legião tão entregue ao reportório visceral do rapper de Compton. Se é sobre as suas lutas e demónios que Anthony Dixson mais versa, também ele se confessava incrédulo com a proximidade sentida na hora entre a sua música e uma pequena multidão, à partida, alheia às suas cruzes. Afinal, nem só de saudade se enchem os corações lusitanos, e o hip hop norte-americano — cada vez mais aberto ao nosso circuito graças à ponte transatlântica que a Versus tem estabelecido — começa, nos seus mais reputados representantes, a descobri-lo.

Essa entrega de quem apaixonadamente se predispõe à boa vontade do interlocutor em sede própria abre caminho a um baixar da guarda de quem atravessa o Atlântico presumivelmente relutante, rendição que resulta, invariavelmente, nos melhores concertos a que tivemos o privilégio de assistir. E atenção, que a figura por si só, seja qual ela for, não implica necessariamente esse desfecho. Cumpre, até, distinguir o que Boogie nos trouxe na última noite de Verão deste ano: mesmo em comparação com algumas das melhores prestações que vimos por cá acontecer nos últimos tempos — com performers de mão-cheia como Saba, Smino ou Freddie Gibbs à cabeça enquanto medidas de peso na balança —, a energia do californiano afigurava-se incomparável a todos os níveis. 

Qual diabrete irrequieto, de baixa estatura, olhos esbugalhados, caninos afiados e sorriso rasgado a encher o palco com uma presença magnânima. Desinibido como poucos, sempre pronto a interagir com o público — fosse a cumprimentar bem de perto a primeira fila, a pegar em telemóveis alheios e a registar em vídeo esses momentos, ou a descer à plateia e a misturar-se com os seus já completamente rendidos fãs. Magnânimo, repita-se, a desafiar espectadores a subirem ao palco para mostrarem serviço ao microfone (com Necxo — nome nada estranho por aqui, a começar rubrica Rap PT — Dicas da Semana — a destacar-se dos demais eleitos) e, mais do que isso, a dar-lhes espaço para falharem sem complexos, para ficarem aquém da vergonha, mais preocupado em chegar perto das suas gentes do que a pôr em xeque potenciais fraudes da arte da rima. Com ele, tudo nos pareceu realmente autêntico. Até a distinção de melhor plateia da tournée. Só pode ser verdade.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos