Há noites em que, mal chegamos a uma sala, percebemos que vai correr tudo bem. Quando entrámos porta adentro no Musicbox, em Lisboa, o espaço já estava cheio e a banda sonora passava por SZA ou Frank Ocean, mudando com a aproximação da entrada de Saba para temas com outra capacidade de persuasão como “Doja” (de Central Cee) e “family ties” (de Baby Keem com Kendrick Lamar). Porém, entre o r&b e o rap, a verdade é que cada bloco de canções seleccionadas tinha uma reacção em coro daqueles que decidiram estar ali (cerca de 300 almas), um sinal óbvio de que este espectáculo ter esgotado em pouco mais de cinco dias não foi um fruto de um qualquer acaso: todos estavam sintonizados na mesma frequência.
A digressão em que se incluía esta data, a da sua estreia em Portugal, era dedicada a Few Good Things, o seu mais recente álbum, lançado em Fevereiro deste ano, e foi por aí que se começou: “One Way or Every N**** With a Budget”, “Come My Way”, “Fearmonger” e “If I Had a Dollar”, altura de trabalhar (ou de “get low”) a plateia (da primeira fila à última) para sentir que nunca saiu dos Estados Unidos da América, mesmo estando tão longe de casa. Pela resposta dada, o feeling há-de se ter aproximado disso.
A sala estava cheia e o rapper e produtor de Chicago quis perceber quem estava lá desde os primeiros dias. Quando pergunta sobre quem o ouve desde Bucket List Project (2016), a reacção é clara e barulhenta. Quando o título muda para CARE FOR ME (2018), o feedback é o mesmo mas com maior efusividade. Para um artista independente — muito aconselhável ler o ensaio sobre esse seu posicionamento na Complex –, não há atalhos: o catálogo é construído conforme aquilo que tem realmente para dizer e, consequentemente, a base de fãs vai crescendo de forma regrada e sem inflações falseadas ao valor das próprias canções. No fim do dia, a recompensa será sempre maior: mais liberdade e fãs mais fiéis na era do descartável em que é difícil conectarmo-nos com a atenção devida.
De “Photosynthesis” e “BROKEN GIRLS” a “Soldier” (uma das suas favoritas do novo disco, confessou-nos), “Survivor’s Guilt”, “CALLIGRAPHY” (com um final a honrar uma parte específica, 808s & Heartbreak, do legado de um famoso conterrâneo), “2012” (com as luzes dos telemóveis a iluminarem o Musicbox inteiro) ou “BUSY / SIRENS”, os picos de emoção foram sentidos com intensidade, todas eles a servirem de exemplos diferentes da sua capacidade de descrever (com bastante profundidade) sentimentos que são universais, muitos relacionados com perdas e inseguranças, mas nem sempre fáceis de tirar de dentro para fora com clareza. Fazê-lo ao vivo com uma técnica de MC de topo (tanto a nível de entrega das rimas como de domínio de público) só o coloca ainda mais acima na consideração de qualquer que seja a geração de ouvintes de rap que veja o que vimos anteontem.
Para alguém que sempre se orientou pelas suas próprias regras, Tahj Malik Chandler teve a sorte (ou o engenho) de fazer parte de uma comunidade inacreditavelmente talentosa desde cedo, podendo-se nomear Noname e Smino (com quem forma os Ghetto Sage) ou Mick Jenkins e o seu grupo Pivot Gang (o nome mais repetido entre pausas no concerto). Também houve Chance The Rapper, que numa fase bem inicial o incluiu em Acid Rap (2013) e Coloring Book (2016), dois momentos em que chegou a um público maior do que aquele a que estava acostumado à época. Rodear-se de artistas com as mesmas ideias e o mesmo modo de estar nunca deixou de acontecer. Não estranha que J. Cole e companhia o tenham chamado para as sessões da Dreamville que nos dariam “Sacrifices”, faixa que não faltou no alinhamento na capital portuguesa — e julgamos que não será descabido encontrar um impacto directo do autor de The Off-Season em “Stop That”, canção que deu por terminada a actuação de sábado à noite.
Agradavelmente surpreendido pela recepção calorosa, Saba voltará com o coração cheio e a sensação de missão cumprida a casa, não temos grandes dúvidas disso. Um talento enorme com uma sensibilidade fora do normal que honra o melhor do rap da sua cidade (de Twista a Kanye West ou Common a Lupe Fiasco) e que é influenciado e moldado em igual medida por aqueles que foram crescendo e evoluindo em paralelo consigo. Que mais algumas coisas boas venham do seu lado; o mundo bem precisa de vozes como a sua.