Tem sido um inverno estranho.
Muito ameno, demasiado solarengo, capaz de providenciar espaço para aproveitar pequenos momentos de deleite, como se em plenos dias primaveris estivéssemos. Isto é… se formos capazes de desligar de tudo o que está a acontecer à nossa volta. Usufruir do privilégio e ignorar que o sol ameno capaz de nos aquecer a fronha surge de alterações climáticas cujo efeito já se faz sentir, ou tentar esquecer o paradigma europeu (e mundial…) incerto e volátil que se vive de momento. Mas que seria ser zoomer sem ter de coexistir diariamente com o conceito de medo existencial embutido no pensamento?
Há que ter alguma esperança, contudo. A música (talvez mais do que qualquer outra forma de arte?) pode ser um veículo para encontrar algum conforto nesses momentos, seja para apaziguar a dor do existencialismo, ou para ajudar a usufruir melhor desses ápices prazeres da vida — tudo pode ser melhorado com uma boa banda sonora a acompanhar. Few Good Things, o terceiro e mais recente longa-duração de Saba, rapper de Chicago, lançado no passado dia 4 de Fevereiro, revela-se como um excelente companheiro para ambas estas situações. É suave o suficiente para servir como compincha aos cocktails que vamos bebendo acompanhados por amigues, e soa suficientemente existencial para nos deixar a pensar sobre a nossa própria narrativa.
A música de Saba, desde as suas primeiras mixtapes que surgiram no SoundCloud, contemporâneas de outros tantos nomes do hip hop de Chicago como Chance The Rapper, Noname, Vic Mensa, Mick Jenkins, Smino, entre outros, sempre teve um quanto parte de existencialismo. Um existencialismo mundano, explique-se, alimentado por um storytelling descritivo, capaz de capturar os nossos imaginários. Isto é bem observável na mixtape Comfort Zone, em faixas como “Welcome Home” ou “United Center”, e eventualmente revelou-se ainda mais nos seus dois primeiros LPs, Bucket List Project (aquele disco perfeito de introdução ao artista) e CARE FOR ME (já podemos dizer que é um clássico por esta altura ou ainda é demasiado cedo?), considerado em 2018 como um dos melhores álbuns internacionais para o Rimas e Batidas. Escrito em forma de tributo a John Walt, primo do artista e um dos seus colaboradores mais próximos enquanto membro dos Pivot Gang (colectivo de Chicago do qual Saba faz parte, em conjunto com Joseph Chilliams, MFnMelo, Frsh Waters, Dam Dam, daedaePIVOT e Daoud. O grupo faz uma aparição numa das melhores faixas de Few Good Things, “Soldier”, cujo mundo sónico suave do hip hop com consciência lembra algo que poderia sair de ALL-AMERIKKKAN BADA$$ de Joey Badass), CARE FOR ME é um trabalho em que a música – perdida entre beats de trap ligados com elementos de neo-soul e jazz – é o veículo que o MC encontrou para não só homenagear o seu primo, como também para fazer o seu luto. É um disco fascinante, recheado de uma atmosfera depressiva de dor e pesar, que continua a constituir uma viagem que impressiona mesmo passado já quase quatro anos do seu lançamento.
Criar um corpo de canções para suceder a CARE FOR ME seria, portanto, um desafio – tanto pela temática, como pela sua qualidade a nível de produção. Few Good Things, contudo, apresenta-se como um trabalho digno de cumprir esse papel. Mas se em CARE FOR ME Saba encontrava-se assombrado pelo luto, procurando sentido por entre os campos da memória e da morte, em Few Good Things o MC de Chicago deixa esse fantasma para trás (mas não totalmente, como demonstrado em “Survivor’s Guilt”, uma das faixas mais arrojadas deste trabalho, ecoando bem a era de DAMN. de Kendrick Lamar), surgindo ao invés assombrado pelo seu sucesso “provisório”, como o bem apresenta em “Fearmonger“ – uma das faixas de destaque deste disco -, em que por cima de um instrumental recheado de soul, o artista reflecte sobre as nuances das suas decisões e o impacto que podem ter na sua carreira (um tema que Saba já havia explorado como parte de um ensaio publicado na Complex no ano passado), e por todas as questões que isso, em junção com o acto simples de crescer e maturar, traz na bagagem. É uma viagem introspectiva pelas inseguranças de Saba, alimentadas por uma dada nostalgia face a períodos que assumimos ser mais simples, como bem se faz ouvir no hook da onírica “2012”, faixa onde Saba colaborou com o artista de dream pop Day Wave: “I had everything I needed, everything/ Yeah, I had everything I needed, everything”.
Apesar de haver momentos ao longo de Few Good Things que dão a entender que Saba poderia estar enamorado com o seu passado, não parece que isso seja particularmente verdade. O que se ouve em Few Good Things é mais uma percepção do artista a olhar para os seus medos e inseguranças e a tentar perceber como pode coexistir com estes enquanto consegue aproveitar a vida ao máximo. Em entrevista à GQ, o artista indica precisamente algo do género, ao comparar as temáticas de Few Good Things com a escuridão imensa que pairava sobre CARE FOR ME: “[O Few Good Things] é o oposto [do CARE FOR ME], é o viver e experienciar a vida, prestar gratidão a cada momento. É o viver no momento”. A faixa “Still”, que conta com a inclusão muito bem conseguida de 6LACK e Smino, é um momento em que serve como a congratulação dos três artistas por terem chegado onde chegaram, confinados num beat muito gracioso que soa a banda sonora para alguém em total descrença com o bom período que vive. No refrão, ouve-se 6LACK a cantar um dos versos que melhor encapsula o sentimento de todo este disco:
“Still missin’ my lady, still smokin’ like crazy
Still can’t believe this is all real
Still spendin’ per diem
Still lovin’ these hoes, I still don’t really need them
I’m still, our life is like a film, set in a different realm
I’m still tryna decide how I feel
I’m still rough as a rider, I’m still right here beside you
I’m still tryna find a beat to kill”
Com estas barras, 6LACK demonstra a ideia de que, apesar de tudo o que este já fez até aqui, Saba continua com a fome de descobrir mais sobre si mesmo (e sobre a sua estória). Este Few Good Things serve como um enorme passo em ambos os aspectos para o MC de Chicago. Ouvimos o artista a experimentar com muitas mais paletas sonoras do que alguma vez tínhamos ouvido num dos seus trabalhos, particularmente observável em faixas como a já referida “Survivor’s Guilt” ou “Make Believe”, que na sua observação mundana e na presença de Foushée quase faz lembrar algo que poderia sair de 2014 Forest Hills Drive, disco de J. Cole. Em boa verdade, o feel nostálgico do novo de Saba relembra ligeiramente esse magnum opus do líder da Dreamville. Mas enquanto que Cole foi escondendo progressivamente mais esse seu “mundo”, Saba não tem medo de o revelar cada vez em maior quantidade, colocando a sua vulnerabilidade à vista de todes. Em Few Good Things, Saba até pode não se apresentar tão vulnerável quanto o fez em CARE FOR ME, mas aqui apresenta-a habitualmente coberta – mais do que nunca – por hooks amigáveis da pop, bem demonstrados em faixas como na sonhadora e mundana “Come My Way” (com uma excelente participação do veterano Krayzie Bone), o mais próximo que temos de um banger de trap na forma de “Stop That” e a groovy “a Simpler Time”, que conta com Saba em excelente forma no hook e no seu flow (como em grande parte do disco, diga-se) e com Mereba a adicionar uma das mais destacadas contribuições de todo o universo de Few Good Things.
Um dos versos no refrão de “a Simpler Time” remete-nos para outra das ideias que está bem presente ao longo deste Few Good Things. No hook, ouvimos Saba a cantar “I caught the plane and I didn’t look twice (So)/ All for the simplest life (Simple life)”, uma referência ao artista voltar aos tempos “simples” passados nos subúrbios de Chicago. A cidade do estado de Illinois de onde o artista é natural é um dos grandes temas de Few Good Things, com as suas experiências ali a moldar muitas das histórias a serem contadas neste disco, mas, acima disso, encontra-se a comunidade que existe em torno do artista (a curta-metragem que acompanha Few Good Things, realizada por C.T. Robert, revela muito bem este lado de homenagem de Few Good Things). A ideia de comunidade é muito forte neste álbum, evidenciada pela quantidade de features que vamos encontrando – muito mais ao estilo de Bucket List Project do que CARE FOR ME –, sendo essa comunidade povoada por companheiros de longa data e novos camaradas na vida de Saba. Na entrevista que concedeu à Stereogum, o artista falou precisamente desta ideia. “Muitas das pessoas com quem me dou, dou-me há mais de 10 anos”, indicou, adicionando que “era um caloiro no liceu com o mesmo grupo de amigos que tenho agora”. Mesmo no ensaio que escreveu para a Complex, o artista reitera a importância da comunidade para o seu crescimento artístico:
“Comunidade. Isto é importante para a história. Nós construímos uma aldeia. Um exército de pessoas talentosas, todas a dedicar a sua vida à arte [de fazer música]. O nosso objectivo nesse ano [quando Saba tinha 16 anos] era criar 300 canções, e ter uma comunidade tornou isso possível. Queríamos ver-nos uns aos outros a vencer, genuinamente. Nós acreditávamos nos talentos uns dos outros e sabíamos que isso ia levar-nos a outro lado”.
Podemos dizer que, actualmente, Saba já se encontra nesse tal “outro lado”. Figurativamente pela posição da sua carreira, e este Few Good Things tem tudo para consolidar mais a sua posição como um dos rappers mais consistentes e excitantes da atualidade, e literalmente, por estar actualmente a viver em Los Angeles, mesmo que o artista “não goste de dizer” que lá vive, como contou em entrevista ao Chicago Reader. “Gosto de dizer que estou sempre a ir e vir entre Chicago e LA”, conta, lembrando mais uma vez que a primeira é a sua casa e é lá onde estão as suas pessoas.
Diria que a ideia de comunidade que prevalece tanto ao longo deste terceiro disco de Saba tem também uma função terapêutica (curiosamente, no último ano o artista tem estado a fazer terapia, como revelou à GQ. “A terapia foi sempre algo complicado para me comprometer. Quando os meus compromissos diminuíram [por causa da pandemia], eu tinha todo o tempo do mundo, e a pandemia também me colocou num espaço difícil onde nada parecia certo e isso fez com que sentisse muitos sentimentos que não sabia que estavam lá. Eu soube nesse momento que era hora de falar com alguém.”). Criar Few Good Things foi a forma que o artista encontrou de tentar-se entender melhor e de entender como o seu percurso, por entre o racismo sistémico prevalente nos Estados Unidos da América (como ouvimos em “One Way or Every N**** With a Budget”), pela pressão crescente do seu sucesso e pelo mundo das suas próprias inseguranças. Em suma, Few Good Things parece resultar de uma tentativa do artista de canalizar as suas emoções, eventualmente desaguando na faixa que dá título ao disco, “Few Good Things”, em que com a ajuda de Eryn Allen Kane e Black Thought (veterano MC dos The Roots, que apresenta alguns dos versos mais profundos de todo o trabalho), apresenta um épico com três partes e mais de 7 minutos de extensão que culmina num conjunto de barras que resume muito do que Saba tentou dizer ao longo dos quase 47 minutos e picos de música anteriores:
“We just wanna breathe, we been drownin’ down here for centuries
Black and brown boy identity, families that depend on me
Art get turned to assembly line every line my lineage
Glass half full, the other half was the emptiness
We turned a bunch of nothing to abundance
Few good things”
Posto isto, o que é que nos resta? Para um disco cujo título é uma tradução literal de “poucas coisas boas”, Few Good Things tem muitas coisas boas a seu favor. Ao expor-se quase tanto (talvez ainda mais?) do que fez em CARE FOR ME, Saba criou um trabalho vastamente introspectivo, capaz de nos fazer reflectir sobre as nossas inseguranças e, ao mesmo tempo, mostrar que tem capacidade para percorrer novos territórios sónicos e, mesmo assim, apresentar uma obra consistente e coesa em tom. E ao fazê-lo, a lição que fica no ar é que, por muito que de momento não pareça, as pequenas coisas podem-nos ajudar a encontrar conforto nos tempos mais difíceis, especialmente nos que correm hoje. Lembrem-se: aproveitem por mais pequeno que seja o prazer do momento. Não se sabe o que virá amanhã – mas existirão certamente algumas poucas coisas boas.