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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/07/2023

Nem tudo são rosas na Alameda Keil do Amaral.

Atraídos por Freddie Gibbs e rendidos a Sister Sledge no segundo dia do Lisb-On’23

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/07/2023

Há sempre uma enorme expectativa quando vemos um grande festival a mudar de casa, e, quando nos metemos a imaginar como será o novo recinto, é natural que a tendência seja acreditarmos que essa mudança seja para melhor — no mínimo, que não desça a fasquia das edições anteriores. Num passado recente, vimos o Iminente, por exemplo, a saltitar de local em local e a crescer progressivamente, sendo hoje um evento de referência no país. No caso do Lisb-On, que em 2022 alterou a morada para a Alameda Keil do Amaral, a curva está claramente no sentido descendente.

Tudo começa na pertinência dos artistas escolhidos. Puxando a fita da memória atrás, lembramo-nos dos muitos e grandes nomes que tivemos a sorte de apanhar neste certame — Moodymann, Jeff Mills, Carl Craig, Róisín Murphy, Octave One, Tony Allen, Kamaal Williams, Amp Fiddler, Sam The Kid, Azymuth, Marcos Valle, Nicolas Jaar… Este ano o cartaz sabia a “arroz”, bem menos arrojado do que aquilo a que nos habituámos ao longo de várias edições consecutivas. O dia de sábado, 1 de Julho, a segunda de três sessões, foi quase como um oásis devido às presenças de Cookin Soul, Freddie Gibbs e Sister Sledge no alinhamento.

No que toca às instalações, estas desceram tantos furos quanto os da curadoria/programação. O relvado verde e exuberante do Parque Eduardo VII foi trocado pela Alameda Keil do Amaral, onde a terra batida se faz sentir em boa parte do terreno — e num dia tão ventoso como o de anteontem, a poeira não deu tréguas à vista. O rácio entre bancas de bebidas e de comida também não agradou — era fácil obter álcool em qualquer canto do recinto, mas a zona destinada para a restauração contemplava apenas uma mão cheia de opções. O palco principal perdeu todos aqueles arranjos florais dos primeiros anos, que eram uma espécie de imagem de marca deste evento, e agora mais parece uma réplica desengonçada do que vemos no Boom — safa-se apenas o Lake Stage, que é sem dúvida um dos palcos secundários mais bonitos que por aí andam, muito graças ao “cubo” onde os DJs se situam, que é também onde incidem várias projeções de vídeo, criando um efeito bem fora do comum. O espaço em si, como um todo, parece menos amplo, sem a capacidade de receber o mar de gente de outras épocas, e os trilhos que temos de seguir para deambular entre palcos são tudo menos simpáticos, repletos de paus e pedras que quase nem se vêem à noite devido à parca iluminação.



Numa experiência que estava longe de agradar a quem está habituado a estas andanças, restou-nos criar raízes em frente ao Lisb-On Stage, o principal palco do festival, para o qual estavam escalados os três protagonistas que motivaram a nossa visita — e felizmente eram todos uns a seguir aos outros. O primeiro a surgir em cena foi Cookin Soul, DJ e produtor espanhol que tem estabelecido uma importante ponte entre a cultura hip hop europeia e norte-americana, com créditos espalhados em centenas de discos — Isaiah Rashad, Joey Bada$$, Playboi Carti, G Herbo, Nipsey Hussle, Curren$y e YG são apenas alguns dos rappers a quem já cedeu instrumentais — e autor de um sem-número de remisturas em torno de muitas das vozes mais marcantes da cultura e género musical nascido no Bronx, que em 2023 está a comemorar 50 anos de existência.

Foi precisamente com as suas recriações de temas já existentes que nos deu as boas-vindas à actuação, invocando eternas lendas do MCing para um dos pulmões de Lisboa, como 2Pac, Big L, MF DOOM ou Notorious BIG. Apesar do talento que lhe reconhecemos neste formato, talvez as escolhas musicais não fosse as mais indicadas para fazer agitar uma plateia que parecia estar a guardar todas as reservas energéticas para as muitas horas de festa que ainda tinha pela frente. “Ainda estão aí?” foi uma frase que David Garcia Garci-Nuño repetiu várias vezes ao longo do seu set, provavelmente por sentir que nem todos os presentes estavam 100% alinhados com aquilo que nos estava a tentar mostrar.

E se a coisa estava a necessitar alguma dinâmica, o espanhol estava mais do que preparado para esse cenário, já que tinha trazido consigo dois dos rappers que militam na sua Cookin Soul Records para disparar uns quantos versos ao vivo. O primeiro foi Kid Frankie, recém-entrado na turma liderada pelo DJ/produtor, que interpretou um par de canções antes de voltar a entregar todo o protagonismo ao homem cujo nome constava no cartaz. Após mais umas quantas cartadas de Cookin Soul a solo, foi a vez de MC Melodee agarrar o microfone, abrindo o caminho para a fase final do espectáculo. Depois da artista neerlandesa que se expressa com rap cantado em inglês terminar a sua mostra de skills, ainda houve tempo para escutarmos faixas interpretadas por Larry June, Lord Apex, J. Cole ou Freddie Gibbs, este último propositadamente escolhido para uma transição perfeita entre protagonistas.

No final da curta pausa que tomou conta do Lisb-On Stage, os menos distraídos ainda conseguiram ver o “Big Boss Rabbit” a passar sorrateiramente pelo público para se dirigir ao palco para o qual estava escalado. A situação gerou burburinho, mas rapidamente as atenções se centraram onde deviam, quando o DJ do rapper de Gary, Indiana, apareceu atrás dos decks para aquecer o ambiente ao som de clássicos de 2001, de Dr. Dre, seguidos de outros mais modernos, como “Mo Bamba” de Sheck Wes. A introdução não foi longa e percebemos que tinha chegado ao fim mal as guitarras de “1985” se fizeram soar, trazendo Fredrick J. Tipton para o centro da acção e fazendo toda a massa adepta delirar com a presença de um dos mais exímios MCs do actual panorama alternativo na capital portuguesa, quatro anos após uma memorável estreia no nosso país pela mão do Vodafone Paredes de Coura.

É verdade que desta vez não vinha acompanhado de Madlib, mas o quadro humano que o norte-americano teve à sua frente nesta segunda dose em terras lusas não fez justiça ao calibre das suas rimas — dir-se-ia que estavam ali cerca de mil cabeças presentes. Ainda para mais quando, bem no início do concerto, alguém entre o público arremessou uma garrafa de água ao autor de $oul $old $eperately, que teve os reflexos necessários para se esquivar do objecto. Conhecendo o temperamento de Freddie Gibbs, ainda tememos pelo pior, mas a fervura que certamente sentiu no sangue não foi, felizmente, além de alguns olhares mais ameaçadores em busca do alvo, que cessaram quando largou um “pussy” ao microfone para se voltar a concentrar na tarefa que tinha em mãos. Castigo ou não, nunca saberemos, mas a verdade é que, sempre que lhe dava na gana, abria ele próprio uma garrafa para fazer chover sobre os fãs — deve ter desperdiçado mais de uma dezena nesta brincadeira. O gesto menos simpático para com o artista foi caso isolado e certamente não deixará marcas na sua relação com Portugal, já que as demonstrações de amor foram imensas ao longo de todo o gig. Sempre amplamente aplaudido ao final de cada faixa, por duas vezes, sempre em pausas entre temas, o seu nome chegou a ser entoado alto e em bom som por todos os presentes.

No activo há 20 anos, não lhe faltam clássicos pessoais rubricados ao longos dos últimos 10. E quando se tem um catálogo assim tão grande e com tamanha expressividade, torna-se fácil preparar os alinhamentos para os espectáculos, porque não lhe faltam bangers para bombardear palcos. “God Is Perfect”, “Thuggin’”, “Scottie Beam”, “Gang Signs”, “Too Much” ou “Crime Pays” foram algumas das canções que trouxe na bagagem, quase todas elas interpretadas de forma idêntica — primeiro dava alguns versos acapella para animar as hostes, que rapidamente decifravam o que aí vinha, recomeçando a letra do início quando o beat se juntava à equação. Pelo meio não faltaram impropérios dirigidos às forças policiais e ainda uns quantos de “fuck Akademiks” numa das vezes. Ainda tivemos direito a encore planeado antes da despedida à boleia de uma maré de aplausos, que levaram Gibbs a distribuir vénias e a levar as mãos ao peito, como que a dizer-nos que não se vai esquecer por ter sido tão bem recebido na sua primeira vez a actuar em Lisboa.



Numa nova paragem para adaptar o Lisb-On Stage ao espectáculo seguinte, três senhoras com vestidos de lantejoulas chamavam a nossa atenção enquanto se passeavam pelo recinto. Atrás delas seguia uma enorme armada de músicos, cada um com as suas malas fortalecidas que continham os respectivos instrumentos. Para quem nunca viu Sister Sledge ao vivo, não sabíamos bem o que esperar, mas estávamos certamente longe de imaginar que passassem pelo nosso país com uma comitiva de dimensões tão arrojadas. Após esse breve aparato com os artistas à procura do palco onde se tinham de dirigir, é quando sobem acima do mesmo que conseguimos ver o quadro completo. A banda familiar liderada pelas irmãs Kathy, Debbie e Kim Sledge apresentou-se em Lisboa com mais um coro de três vozes, dois teclistas (um deles trocava os sintetizadores por um saxofone em alguns momentos), baixo, guitarra e bateria, sendo que algumas destas posições são hoje ocupadas por filhos e sobrinhos das protagonistas principais — talvez seja por isso que não se importaram muito em ficar todos bem apertadinhos em cima daquela estrutura claramente insuficiente para um grupo desta magnitude.

Confessamos ter pensado que o número de pessoas no público não iria conseguir rivalizar com os que estiveram presentes para ver Freddie Gibbs, mas enganámo-nos redondamente e há, pelos vistos, muita gente com interesse em escutar uma vez mais os clássicos soul, disco e r&b que este histórico conjunto detém no seu catálogo. E a plateia não só ficou bem mais composta como vibrou a dobrar face ao que tínhamos visto com o rapper norte-americano. Também não era para menos, já que Sister Sledge claramente não vinham para apenas cumprir calendário e entregaram-nos um show bem completo em todos os aspectos possíveis — da mestria de todos os músicos nos seus respectivos instrumentos às coreografias bem executadas, sendo que aqui, ao som de “He’s The Greatest Dancer”, até escolheram uma pessoa da audiência para subir ao palco e mostrar os seus moves de dança.

Há que sublinhar dois momentos altos desta bela e memorável apresentação. O primeiro ocorreu quando Kathy fez a banda segurar o mesmo groove por alguns minutos enquanto apresentava todos os integrantes do grupo, um a um, dando-lhes alguns compassos para brilharem com solos para deleite geral dos presentes. O segundo e aquele que gerou a maior reacção positiva da noite foi quando escolheram homenagear Nile Rodgers e Bernard Edwards, ambos fundadores de Chic e o par que produziu o álbum mais importante da carreira de Sister Sledge, We Are Family — cuja faixa-título foi, claro, a eleita para encerrar a setlist. O colectivo de Filadélfia escolheu “Good Times” para a entrada na fase final do alinhamento do seu concerto em Lisboa e começou a interpretação do tema a partir daquele momento que todos sabemos. O baixo pulsante seguiu-se da versão original da composição que fez parte de Risqué, mas antes de passarem à próxima malha ainda aplicaram os icónicos versos de “Rapper’s Delight”, dos Sugarhill Gang, em cima da cama instrumental, provocando delírio total.

Nem tudo foram rosas na Alameda Keil do Amaral, mas no que toca à música, esta ameaça tripla do segundo dia da edição deste ano do Lisb-On era uma proposta que não podíamos recusar e, felizmente, superou até as expectativas que tínhamos quanto ao que iríamos encontrar em palco.


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