Pontos-de-Vista

André Barros

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O compositor e, também ele, pianista auto-didacta André Barros observa o pianista Marco Franco.

Uma conversa íntima com o piano (e um microfone lá no meio a projectá-la para o mundo)

A determinado momento durante o concerto, Franco parece-me de tal forma compenetrado que aparenta resgatar uma vida que outrora existira naquele piano vertical, deixando-me a pensar na sua condição de compositor solitário que encontra agora neste instrumento o seu fiel confidente. Na sala, a audiência está em modo de intensa contemplação, como que inebriada por uma serenidade que instiga uma aguda procrastinação. Os movimentos da mão esquerda bastante padronizados, muitas vezes com arpejos harmónicos complexos mas cíclicos temperados por subtis variações melódicas, parecem impor esta necessária premissa de quase hipnotismo.

Embora não seja um profundo conhecedor do trabalho de Marco Franco, sei que o piano é uma paixão fulgurante mas um tanto ou quanto recente, pelo menos no âmbito de uma partilha com o público; ainda assim, atrevo-me a dizer que desengane-se quem julgue que este trabalho é ainda uma experimentação ou uma procura tímida por novos caminhos, Franco deixa-nos a assobiar aqueles desenhos melódicos tão distintos assim que sai para o seu camarim, de tal forma surpreendente é a sua personalidade musical. No palco, apenas o piano, cenário intimista e envolvente, escutando-se partes iguais quer de notas percutidas quer dos impostos silêncios adocicados por ruídos mecânicos do instrumento, evidenciados pela já tradicional técnica de captação próxima do piano nestes universos do minimalismo e do clássico-contemporâneo. A nossa atenção balança entre o deslocar unidirecional dos martelos, o ruído do pedal – visualizamos até pelo som a dimensão da sala em que nos encontramos – e as melodias elegantemente construídas e verdadeiramente contundentes que nos trazem, estilisticamente, reminiscências de outros compositores como Erik Satie ou Debussy.

Não deixa de ser irónico que, para dosear de forma segura as dinâmicas numa delicada e harmoniosa execução nestes temas de imensa nostalgia e melancolia, seja necessário uma maior fisicalidade e robustez no movimento das mãos para que, estando um tecido entre os martelos e as cordas que “ampara” o impacto percutivo dos martelos, possamos escutar com maior definição o que está a ser tocado e o som do piano não se perca numa fragilidade inaudível — até aqui se percebe a técnica maravilhosa que o pianista autodidacta tem desenvolvido.

Por fim, sinto que todo este trabalho apresentado ontem, na Culturgest, em Lisboa, é de uma coerência absolutamente fascinante e deixa-me a pensar que a todo o momento estive num estado de desassossego ou inquietude, sem quebras ou distrações, como que levitando sobre todo este assombro causado pela pandemia e interrogando-me sobre o seu futuro impacto nesta relutante humanidade.


*Fotografias por Vera Marmelo.

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