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Fotografia: Fernando Resendes/Teatro Micaelense
Publicado a: 10/11/2021

A escrever um vocabulário musical para a espiritualidade.

Tord Gustavsen: “Quando se fazem escolhas espontâneas durante um concerto, as canções são levadas para novos lugares”

Fotografia: Fernando Resendes/Teatro Micaelense
Publicado a: 10/11/2021

O que estará do outro lado? É, muito provavelmente, a maior das perguntas que a Humanidade coloca a si mesma desde que ganhou consciência. Essa também é uma questão sobre a qual Tord Gustavsen, pianista norueguês, reflecte na sua música (e de forma mais óbvia no álbum The Other Side), um espelho da sua educação religiosa, mas também do seu posicionamento filosófico enquanto artista que procura a espiritualidade através daquilo que compõe e toca.

Antes de nos mostrar de que espírito era feito no palco do Teatro Micaelense em concerto assinado no âmbito do festival PDL Jazz, em Ponta Delgada, nos Açores, o músico discorreu sobre a maneira como prepara e aborda cada espectáculo e o quão próximo está de um DJ. Ou, claro, o que é isto do “jazz espiritual” para si…



Já lá vai um tempinho desde a sua última visita a Portugal…

Sim, é verdade. Já fiz várias pequenas digressões neste país que correram muito bem, mas entretanto passou algum tempo. Cheguei a estar noutra ilha dos Açores…

Na Terceira, em Angra do Heroísmo, certo?

Exacto. Boas memórias…

Pode falar-me um pouco acerca do seu reportório para este concerto?

Posso falar alguma coisa, sim, mas a verdade é que nunca sabemos ao certo o que vamos tocar até que o concerto comece. Temos uma enorme colecção de temas que fomos tocando ao longo dos anos, alguns são muito recentes, alguns do últmo álbum, mas também vários do início do trajecto do trio. O que costumamos fazer é começar algures. E ver o que acontece depois. Se me apetece tocar um determinado tema de que me lembro de repente, toco uma pequena sugestão da melodia e eles percebem e vão-me seguindo. O que normalmente fazemos os três são pequenas suites, montamos peças com interlúdios improvisados, tocando versões de vários temas na mesma sequência. Gosto de trabalhar assim porque isso permite lançar nova luz sobre certas composições, com base no que se tocou antes e no que poderemos depois tocar a seguir. Quando se fazem escolhas espontâneas durante um concerto, as canções são levadas para novos lugares.

E o que guia essas escolhas? Diria que é a energia que capta vinda da plateia, a sua disposição? O que o leva a num determinado momento eleger uma peça em detrimento doutra?

Essa é de facto uma pergunta interessante, que por vezes, tendo em conta a direcção de alguns concertos, eu próprio me coloco: “porque me deu para tocar aquele tema esta noite?” Creio que há vários factores que determinam essas escolhas: o som da sala em que se toca, por exemplo; ou a qualidade do piano – por vezes, o som de um certo piano tem um alcance particularmente bom que me faz pensar em material que se adeque a essa característica especial do instrumento; às vezes, a sala tem uma certa característica acústica que nos pode levar a mudar o tempo de uma peça, tocá-la de forma mais lenta ou rápida, jogando com o som da sala; por outro lado, com frequência acontece os outros elementos do trio fazerem algo durante um improviso que me faz pensar coisas como – “ah, aquilo soa a um padrão de uma outra peça ou tem uma escala ou uma paisagem de acordes que se pode combinar com esta outra canção”; por vezes, quando estamos a terminar uma canção, eu percebo que de repente a paisagem se abre para uma outra peça e então eu pego nos acordes finais da canção e expando-os até um drone ou um estado musical em si mesmo tocando de forma mais modal ou saindo do espectro tonal e movendo-me gradualmente para a atonalidade e depois lentamente regressando à tonalidade, sempre em busca do que poderá acontecer a seguir…

Curiosamente o que me está a contar soa muito próximo do que um DJ poderia estar a dizer para descrever como organiza o seu set, como escolhe a música que se segue…

É interessante que diga isso… Há de facto algumas ligações, sim. Eu sou muito apaixonado pela forma geral do concerto, não gosto que haja aplausos entre cada canção, prefiro antes construir trajectórias ou formas e depois gerir isso de forma a termos apenas dois ou três pontos de aplauso durante um concerto. E em vez de pensar que uma canção é uma canção, com uma secção de improviso a meio e pronto, gosto mais de pensar em improvisação em diferentes níveis ou parâmetros. Por exemplo: podemos apenas improvisar no acorde final e transformá-lo progressivamente noutra coisa qualquer ou esse improviso pode apenas incidir sobre mudanças no tempo rítmico da peça ou em mudanças da nota dominante em que uma composição é normalmente executada e ver o que isso nos leva a pensar. Posso acabar uma canção e pensar “ah, agora o que cai aqui bem é este coral de Bach”, mas isso leva-nos para uma nota muito diferente e como a Ellen toca em qualquer tom, confio que ela vai ouvir e perceber para onde nos devemos dirigir a seguir.

Bach é uma referência muito importante na sua música. Ele também era um grande improvisador: acha que se ele vivesse no século XXI também tocaria jazz? Gravaria ele igualmente para a ECM?

Essa é uma boa questão [risos]. Penso que ele definitivamente teria incorporado as revoluções do jazz no que quer que ele pudesse fazer.

Mas ainda sobre esta comparação, com a maneira como pensam os DJs: há uns anos comecei a ouvir muito mais música electrónica do que alguma vez tinha ouvido. Na altura estava a trabalhar com um técnico de som que era também um produtor de dubstep e de outros tipos de música electrónica, isto além de ser igualmente um fantástico engenheiro de som de coisas acústicas. E ele ensinou-me muito sobre processamento de som e sobre produção de batidas. Penso que, indirectamente, esses ensinamentos se sentem em algumas das coisas que fazemos agora.



Antes de me dirigir aqui ao camarim, estive a ver o seu setup e fiquei particularmente intrigado por aquela peça Moog que se aplica em cima do seu teclado de piano…

Bem, basicamente é um scanner óptico com sensores para cada tecla, sensores que registam “on” e “off”, mas também registam a velocidade, portanto há um certo grau de velocidade envolvido nas leituras, nos scans. E essas informações são transmitidas depois por MIDI. É isso que faz o Moog PianoBar, um aparelho fantástico, mas também muito vulnerável: há dois dias avariou-se e eu tive que o reparar. Mas o que se passa é que não há outros aparelhos do mesmo género que se possam levar em digressão e que liguem o piano acústico ao mundo digital. E, por isso, para mim é muito precioso até porque foi fabricado pela Moog apenas durante um curto período de tempo e agora é complicado de obter.

Além de usar isso, o que faço é processar os sinais no computador e depois envio essa info para os pedais de volume. Nalgumas noites mexo muito pouco em electrónica e limito-me a tocar o piano, noutras posso mexer mais nesse lado. Depende muito da inspiração e do que acontece. Mas também tenho disponíveis alguns sons de sintetizador e algumas outras opções para processar esse sinal MIDI no computador, que posso depois adicionar ou subtrair ao som geral através dos pedais de volume.

Usa isso para acrescentar mais dimensões harmónicas à sua música?…

Sim, muitas vezes é acerca de criar paisagens sonoras muito subtis, através de estranhos sons tipo órgão que extraio dos pads dos sintetizadores, algo que possa estar lá na base da peça, quase inaudível, mas ainda assim presente. E também usei essa tecnologia de forma mais intensiva na versão da banda que diz sem baixo. Nesse caso, uso muito os sub-graves.

Isto aconteceu no seu trio de piano, bateria e voz, certo?

Exacto. E por vezes também acontece usar esse lado mais electrónico de forma mais proeminente, tocando assim algumas linhas mais de primeiro plano e alguns sons mais audíveis. E também combino isso com um controlador microtonal no sintetizador. Pela primeira vez um pianista pode tocar o que existe entre o MI e o Fá, verdadeiras blue notes e glissandi, e pode produzir vibrato como um violinista. Recursos interessantes.

Tem-se usado muito, se calhar até em demasia, o rótulo “jazz espiritual”, mas você é um dos poucos músicos que eu ouvi realmente a comparar o acto de tocar ao vivo com o de orar ou meditar… No seu caso, essa espiritualidade não advém de uma forma, antes de um pensamento interior, de uma crença. É isso?

Definitivamente. [Pausa]. Para muitos músicos, essa ligação a uma dimensão interior é real, mas usamos diferentes maneiras para a descrever. Nesta banda em particular existo eu, que já percorri um longo caminho: venho de uma educação religiosa na igreja, vivi com isso, ir à missa aos domingos, à catequese, desde muito cedo na minha infância, isso é algo que me acompanhou toda a vida e ainda por cima estudei ciência religiosa, psicologia das religiões, etc. E além disso, viajei muito para ir ao encontro de outras tradições de espiritualidade. Mas também há um elemento ateu e outro elemento agnóstico na banda [risos]). Mas ainda assim, sinto que temos todos essa ligação espiritual. Para o Jarle, que definitivamente não usa o mesmo vocabulário para descrever isto que eu uso, ele também fecha os olhos quando toca e atinge esse plano elevado, produzindo música que sinto ser realmente espiritual. É acerca, penso eu, de nos abrirmos ao poder da música, à mais pura beleza, sem adornos, e acerca de submetermos o nosso ego à totalidade maior. Ou pelo menos tentar fazer isso, o que é o mais importante. E pode haver músicos budistas, ou agnósticos ou cristão liberais, como é o meu caso, e todos concordamos que essa força, esse poder da música, pode ser real.

Última pergunta: 2022 está quase aí. Que planos tem para novos lançamentos, novas digressões?

Durante esta pandemia escrevi alguma música e isto apesar de boa parte do meu trabalho nesse período ter sido a gestão de cancelamentos. Essa parte foi bem mais complicada e não tão entusiasmante. Mas ainda assim fui capaz de compor novas peças e de fazer um par de pequenos concertos. E agora as coisas parecem estar a abrir, com as digressões sobretudo. E por isso acabámos de gravar um novo álbum, na verdade. Há apenas duas semanas…

Com este trio?

Exactamente, com este trio. Por isso, no próximo ano, InshAllah, deverá acontecer uma digressão de lançamento mais parecida com o que normalmente acontecia pré-Corona: Inglaterra, Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Noruega e se tudo correr bem mais alguns lugares, incluindo Portugal a que espero voltar a curto prazo.


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