pub

Fotografia: Fernando Resendes/Teatro Micaelense
Publicado a: 07/11/2021

Mãos de ferro.

PDL Jazz’21 – Dia 3: Tord Gustavsen Trio a navegar entre a memória folclórica e a elevação espiritual

Fotografia: Fernando Resendes/Teatro Micaelense
Publicado a: 07/11/2021

A edição de estreia do PDL Jazz chegou ontem ao final com a apresentação no Teatro Micaelense do trio do pianista norueguês Tord Gustavsen, que assim concluiu em São Miguel, Açores, uma curta digressão nacional de três datas que o levou ainda a Castelo Branco e Caldas da Rainha. Em palco, a ladearem o líder, encontravam-se o baterista Jarle Vespestad e a contrabaixista Ellen Brekken.

Pode dizer-se com plena justiça que fechou com chave de ouro esta mostra curta, mas variada, que passou por uma Londres sintonizada com ecos do mundo árabe, que mergulhou na insularidade açoriana e que terminou nas brumas nórdicas, embalado pelo pianismo espiritual de um músico e compositor que tanto bebe em Bach, como nos modos folclóricos noruegueses, nos hinos luteranos da sua particular experiência religiosa ou no imenso oceano por onde se espraia a história do jazz.

Em conversa tida após o ensaio de som e que em breve poderão ler por aqui no Rimas e Batidas, Tord Gustavsen, quando questionado sobre o repertório que iria apresentar no palco do Micaelense, sorriu e explicou, na mesma voz calma e sussurrante com que ontem se dirigiu à plateia açoriana, que nos seus concertos não há bem um alinhamento definido, antes um sinuoso caminho por entre composições próprias, melodias tradicionais, hinos religiosos e peças clássicas que se combinam em medleys espontâneos ou que surgem apenas em leves sugestões melódicas logo esquecidas em favor de uma nova ideia que lhe assoma aos dedos. Tudo, explicava o pianista, respondendo ao tipo de piano que tem à frente, à acústica da sala, à energia que capta vinda da plateia, à sua própria disposição momentânea.

E, de facto, o mood geral do concerto de ontem parece ter divergido significativamente das peças executadas durante o soundcheck, mais vivas, com grooves mais definidos por Jarle Vespestad, baterista que, ao contrário do demonstrado à tarde, quase evitou a tarola durante o concerto, preferindo um trabalho mais intenso e delicado nos pratos e um ribombar mais solene e sombrio nos timbalões, sobretudo o de chão.

Por seu lado, a igualmente incrível contrabaixista Ellen Brekken, que no ensaio, para “aquecer” os dedos, dedilhou a sua própria versão da mesma suite de violoncelo de Bach que fez a fama de Yo Yo Ma, soou à noite bem mais solene, optando por uma funda subtileza que lhe permitiu colorir em tons sépia os espaços harmónicos e rítmicos com que se foi deparando, sem se impor, mesmo dispondo dos recursos técnicos que costumam arrancar aplausos efusivos. Tord, aliás, confessava na já mencionada conversa, que não gosta de aplausos, talvez uma herança da espartana educação luterana, preferindo concertos em que os temas vão nascendo e desaguando em suites contínuas, abrindo apenas aqui e ali espaço para que o público então se manifeste. Exactamente o que ontem sucedeu.

Gustavsen é um pianista imenso, dono de uma mão direita prodigiosa, hábil e destra, mas nunca gratuitamente expansiva, que recorre a um vasto universo de referências coleccionadas pela sua generosa memória: os hinos de igreja que aprendeu do seu pai, ministro luterano, e que durante anos executou aos domingos ao piano perante a sua comunidade, a música clássica que estudou formalmente, e os diferentes mestres do pianismo jazz, de Bill Evans ou Bud Powell a Keith Jarrett ou até Abdullah Ibrahim: por momentos, por breves instantes por vezes, num ataque a uma nota ou num simples acorde, Tord tem a capacidade de fazer assomar à nossa imaginação leves sugestões desses e doutros nomes, que logo se desfazem como fumo, quando repentinamente diverge para outro lado qualquer. Em palco, o seu melodismo acústico é expandido com toques subtis de electrónica, através de um dispositivo Moog que traduz o que vai fazendo no piano para um conjunto de máquinas que tem ao seu dispor. À sua frente e ao seu lado vislumbram-se dois teclados, um controlador MIDI, um laptop e um iPad, mas ainda assim esses recursos quase não se sentem presentes, com o rigor acústico do trio a dominar o espectro sonoro.

Apesar do tom quase sempre solene e intimista, Gustavsen não é desprovido de humor. O seu espírito lúdico desponta a espaços quando está mergulhado na performance e de repente cita um motivo melódico mais bluesy a meio de uma peça de ressonância nitidamente clássica e erudita. Ou então, quando permite ao público voltar a respirar e a ele se dirige numa voz tranquila: como quando referiu que “Right There”, um dos temas ontem apresentados, “é uma música acerca de onde é suposto estarmos ou então de tentarmos fazer do sítio onde estamos o lugar onde é suposto estarmos… filosoficamente, claro” e também, já mesmo no final, depois de ter tocado a peça de abertura do disco The Ground que o seu trio lançou em 2005, “Tears Transforming”, quando explicou que iria encerrar com um tema do folclore norueguês, “que tem por título…”, antecipou ele em inglês, deixando depois sair uma longuíssima frase na sua língua natal, arrancando risos da plateia que obviamente não entendeu uma palavra. Tudo certo: Tord deixou ontem muito claro que não toca para ser entendido, antes para permitir que quem o escuta possa sentir coisas, sobretudo num plano mais espiritual. A julgar pela reacção da plateia bem preenchida do Micaelense, a sua missão foi ontem cumprida com distinção.

pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos