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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 18/03/2023

Cordas que contam histórias.

Tó Trips na Culturgest: crónica de uma sorte anunciada

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 18/03/2023

É sorte, a nossa, enfrentar o dilema de, numa sexta-feira à noite nessa Lisboa que ainda nos consegue surpreender, ter de escolher entre ir ver e ouvir Rodrigo Amado com David Maranha e ainda a Joana Sá à SMOP, a Cécile McLorin Salvant ao CCB, B.E.R.A. ao Tokyo ou Tó Trips a apresentar o seu novíssimo Popular Jaguar na Culturgest. E tantas outras escolhas, certamente, poderiam ter sido feitas, aprofundando o tal dilema. A escuta atenta desse novo disco que o guitarrista acaba de lançar com selo da Revolve ajudou a tomar a decisão final. E foi num auditório absolutamente esgotado que se fez luz. Pouca luz, é certo. Mas a música de Tó Trips bastou para apontar o caminho.

Em palco havia muitas cordas – 44, se as contas não me falham: 36 esticadas de forma bem tensa nas seis guitarras que Tó Trips usou ao longo do concerto, mais 4 no contrabaixo de António Quintino e outras tantas no violoncelo de Helena Espvall. E havia também três corpos recortados por luz ténue, num desenho tão simples como esteticamente eficaz. Tó Trips, de fato azul imaculado e com prazo de pronto-a-vestir há muito ultrapassado (elogio), começou por deixar perceber que a sua música pode soar cheia de alma, cheia de histórias e viagens e sonhos e saudades e anseios, mas sai-lhe do corpo. Ele, de facto, toca-a com as mãos – e um bocadinho com os pés, já agora, com o chocalho preso nos tornozelos e o calcanhar que bate no soalho a sublinharem o pulso rítmico de algumas peças… -, mas a música parece sair-lhe do corpo todo, com a cabeça e o tronco a juntarem-se à dança dos membros, como se todo ele fosse sacudido pelo vento que sopra nas suas melodias (um dos temas do novo álbum, afinal de contas, tem por título “O Deus do vento”). Quintino e Espvall, ao invés vestidos de tons mais escuros, são a sua sombra, oferecendo ampla e densa planície harmónica para que as suas histórias se desenrolem.

É curioso pensar como ontem, Tó Trips, homem vindo do rock que até tem pisado palcos com os Xutos & Pontapés em tempos recentes, deixou os blues em casa. Os blues, género que até já puxou para alguns títulos de peças que espalhou pela sua obra gravada – “Clocking Blues“, “Suva Blues“, “Blues Column“, “Blues da Tanga” – e que estão na base de tanta da música que foi tocando, são agora trocados por fados e mornas, ecos de tarantelas e rumbas e choros e alegrias, declinações algo cubistas de modos folk de diferentes geografias – por vezes parecem escutar-se ténues sugestões de sons vindos de varandas voltadas para o mar nas ilhas gregas, de tascas nas ruelas de Córdoba ou de bazares de Marrocos – numa visão altamente pessoal, honestamente emocional e tão humana que até comove.

E ontem deu para tudo: para dançar em frente ao espelho e gingar, para amar em tempos fodidos, para demonstrar o processo de uma aparição, para descer uma onda gigante da Nazaré em câmara lenta – rodando assim o material do belíssimo Popular Jaguar. Deu ainda para ir para lá de Marraquexe, numa interpretação do tema incluído no single de vinil que se junta a Ínfimas Coisas, livro com textos e fotos que documentam aventuras variadas (uma co-edição entre a Revolve e a Cutelo) que ontem também se apresentou na concorrida banca de discos onde, no final, Tó generosamente distribuiu assinaturas e beijinhos. E deu, enfim, para recuar no tempo e ir às outras guitarras, a 66  e a Makaka, adaptando material mais antigo a este novo formato de trio.

Quintino e Espvall soaram fantásticos: o contrabaixista foi porto seguro, um subtil e requintado sublinhado grave nas histórias que a música transporta, dedilhando ou fazendo vibrar com arco o seu fantástico e expressivo instrumento; e outro tanto fez a violoncelista, que adicionou expressividade através do processamento do seu instrumento, o que conferiu dimensão psicadélica a algumas das peças, numa hipnótica deslocação aural e espacial que de facto demonstrou ter a capacidade de nos transportar para outros lugares.

Tó Trips nunca soou tão seguro no seu instrumento. No seu guitarrismo há a dolente poesia de Carlos Paredes, a fantasia de John Fahey e o cubismo de Marc Ribot, mas há sobretudo tudo o que fez e viveu, o que faz do seu discurso musical algo de incrivelmente pessoal, mesmo que não recuse todas essas e certamente tantas outras referências. Soou feliz e bem-humorado no microfone, recordando viagens a Marrocos com 50 paus no bolso, fazendo vénias a companheiros – dedicou uma peça a um guitarrista de que se confessa fã, Nuno Rebelo – e oferecendo o seu sincero sorriso a uma plateia que se rendeu logo ao primeiro acorde. Já sabíamos que ia ser assim. Logo que se anunciou este concerto ficou claro que quem o escolhesse em noite de farta oferta iria ter a sorte de escutar a arte sem filtros de um homem que ainda não se cansou de viajar. São essas as “trips” que carrega no nome. Sorte a nossa podermos escutar tanto mundo na sua música. Sorte a nossa de o termos aqui, mais vivo do que nunca.


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