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Fotografia: Aidan Klessic
Publicado a: 15/03/2024

O novo álbum do DJ e produtor funde as guitarras com os beats.

Stereossauro sobre +351: “Acabei por seguir um caminho livre e experimental com este disco”

Fotografia: Aidan Klessic
Publicado a: 15/03/2024

A história de amor entre Stereossauro e o universo do fado continua. “Verdes Anos, como diz, foi o grande “catalisador” desta jornada que virou modo de vida artístico. O tema construído com os samples de Carlos Paredes foi o que motivou tudo o resto, aquilo a que permitiu que tivesse um acesso inédito ao espólio de Amália Rodrigues na Valentim de Carvalho e que, com outros sons, guitarras e vozes, pudesse construir o seu Bairro da Ponte, tão real quanto simbólico, o sítio das Caldas da Rainha onde cresceu mas também o bairro imaginário que faz a ponte entre a tradição fadista e a modernidade hip hop e electrónica.

No ano passado, fez com Ana Magalhães um outro álbum intitulado Tristana, uma nova abordagem ao universo fadístico, que agora tem seguimento com +351. O novo disco de Stereossauro foi a primeira ideia a surgir na sequência de “Verdes Anos”: um trabalho instrumental dedicado à guitarra portuguesa (e a outras guitarras que entretanto se somaram à equação), que mescla os tons tão únicos destas cordas com texturas electrónicas e hip hop de diversas tendências.

Com uma estonteante capa idealizada entre Bordalo II e o próprio Stereossauro e participações de mestres das guitarras como António Chainho, Tó Trips, José Manuel Neto, Ângelo Freire e Pedro Jóia, mais o apoio da acordeonista Celina da Piedade e dos companheiros do costume Ricardo Gordo, Ana Magalhães e DJ Ride o álbum está aí para ser escutado. Para desvendá-lo, o melhor é ler as palavras de Stereossauro, que falou com o Rimas e Batidas sobre o mais recente capítulo da sua já vasta obra.



Esta ideia de um álbum instrumental dedicado à guitarra portuguesa já vinha de há muito tempo, não é? É anterior ao Bairro da Ponte.

Sim, era uma ideia que eu estava a desenvolver precisamente antes do Bairro da Ponte. Depois, surgiu a hipótese de fazer esse disco, que foi um bocado como uma bola de neve, e houve coisas em que estava a trabalhar na altura, para serem instrumentais, que foram redireccionados para o processo criativo do Bairro da Ponte. Mas era algo que eu estava a fazer no seguimento do “Verdes Anos”, tinha sido esse o catalisador.

E o que te levou a explorares primeiro o Bairro da Ponte e a deixares este projecto em pausa?

Porque surgiram hipóteses que eu nunca teria considerado, como trabalhar com grandes vozes do fado, com samples vocais da Amália. Eu antes não tinha essa hipótese em cima da mesa. E quando isso começou a acontecer, obviamente que foi uma oportunidade que não quis desperdiçar.

E agora como é que os astros se alinharam para recuperares este projecto? Porque é que ele veio nesta fase?

Não há uma resposta muito directa para isso… Já tinha feito um disco instrumental com o Cabrita entretanto, depois o Tristana com a Ana Magalhães, e nesse disco escrevi as letras todas, o que é um processo um bocado demorado para mim, ao contrário de fazer apenas música instrumental, que é algo que me sai muito mais naturalmente. Eram ideias que eu já tinha posto em cima da mesa e que quis arrumar. Chegou a altura e “vamos lá concretizar esta ideia antes de agarrar outro projecto que adie este por mais uns tempos.”

O título +351 acaba por aludir àquilo que é português, ao imaginário nacional.

Sim, sendo que era um disco instrumental, a minha primeira ideia foi que o título teria de ser algo com símbolos ou números. Até poderia ter letras, mas não queria que fossem palavras. Queria algo mais abstracto. Andei a experimentar e entretanto lá cheguei à conclusão de que +351 seria o título que melhor representava o disco, porque, apesar de ser um número com um significado muito específico, pode também ser abordado de uma forma abstracta. Podem ser mais de trezentas e cinquenta e uma coisas. E, claro, é um disco que se debruça muito sobre a guitarra portuguesa, e sendo que o +351 é o nosso indicativo telefónico é algo que é muito representativo, que todos nós sabemos de cor. Quando estás fora de Portugal, são os primeiros números que marcas para matar saudades da família.

É um disco que tem muitas colaborações com instrumentistas, e esse método de juntar muitos nomes num só disco tem sido frequente no teu percurso. Como funcionou este processo? Foste trabalhando nas bases dos instrumentais e convidando pessoas a ouvir o que tinhas e a darem os seus inputs

Não há uma regra ou uma fórmula que sirva ao disco todo. Começou com o Ricardo Gordo, alguém com quem trabalho há imenso tempo e mesmo com ele não tivemos uma fórmula para as músicas todas. Tanto acontece eu pegar num improviso dele, samplar e começar a trabalhar a partir daí; como pedir-lhe para gravar algo específico. Ou estarmos em conjunto a discutir ideias. O Ricardo acaba por ser a força motriz, a guitarra mais forte do disco, porque metade do disco é gravado com ele. Depois, havia várias pessoas que eu já tinha em mente. Por exemplo, com o Ângelo Freire já tínhamos trabalhado juntos e expressado que queríamos fazer outras coisas. Era uma escolha que já vinha de algum tempo, que já estava na bucket list. Acabou por apenas ficar uma música com o Ângelo no disco, mas trabalhámos em mais do que uma. O José Manuel Neto não conhecia. E aí o processo foi diferente, foi enviar algum do meu repertório para “me apresentar” e depois escolhi um tema ou dois para ele escutar. Um deles até acabou por ser um que já tinha a Celina da Piedade no acordeão, e que também tem um sample da Tertúlia do Fado de Coimbra, que é o único sample do disco. Quis usar porque o sampling do vinil é algo que me diz muito. Eu poderia recriar aquilo com outros guitarristas, talvez para evitar o processo de legalizar o sample, mas neste caso até foi muito fácil, tive aprovação imediata por parte dos autores. E eu nem sabia, mas o José já tinha trabalhado com a Celina noutras coisas, o que provavelmente também facilitou a coisa. Na guitarra portuguesa, contei também com o grande mestre António Chainho. Cheguei a ele através do Nuno Sampaio, o agente dele, que facilitou imenso a ponte musical e a conversa com o director musical Ciro Bertini… Ou seja, cheguei ao mestre Chainho com o aval do Nuno e do Cero, o que possibilitou a coisa acontecer. Neste caso, trabalhei em gravações originais exclusivas e nunca editadas do mestre Chainho, que já existiam em arquivo.

E também trabalhaste com outros guitarristas.

Sim, eu posso até definir um conceito e pôr algumas balizas ou regras para mim próprio, e depois sou o primeiro a quebrar essas regras, porque faz parte da minha natureza. Por exemplo, fui falar com o Tó Trips, que é alguém que já conheço há imensos anos. Para já, antes de o conhecer era fã dos projectos mais punk dele. Depois, tive contacto com ele quando foi do meu primeiro EP, ele é que fez a capa do Farphisas On Fire, na sua vertente de Mackintóxico. E mais recentemente fez a capa do Cachorro Sem Dono. Portanto, além de fã, era alguém que eu já conhecia como pessoa. E, musicalmente, aquilo que me chamou mais no Tó Trips foram as coisas mais Dead Combo e essas sonoridades mais boémias, aquele rock n’ roll que é natural dele. Acabámos por trabalhar num tema e ele gravou vários takes, eu andei ali a recortar, e há imensa coisa feita no tema com ele, que à primeira audição se calhar nem parece guitarra eléctrica, mas que é e a guitarra portuguesa também está abusivamente transformada nesse tema. É uma faixa com uma carga mais pulsante, com uma cena electrónica dark e experimental, que acaba por ser um tributo ao eterno Razat. Aliás, o nome do tema é “D Ondas”, que basicamente é a tradução do último disco do Razat, o D Waves. E foi quase naquela de: isto era um tema para fazer com o Razat. Ele não está, mas está à mesma. 

Trabalhaste ainda com o Pedro Jóia.

Sim, mais um incrível mestre da guitarra, e uma fuga à regra da guitarra portuguesa e, neste caso, mesmo à sonoridade. Porque o Pedro Jóia vai muito para os lados do flamenco e das rumbas, e nós, sendo portugueses, é impossível negar a influência da música espanhola na nossa vida. Tem uma presença muito forte, não podes ignorar os teus vizinhos. Por isso, achei que fazia sentido também ir por esse caminho. E trabalhei com a Celina no tal tema da balada de Coimbra. Eu já tinha gravado um acordeão, mas com a intenção de mostrar aquilo a uma pessoa que soubesse tocar como deve ser [risos], e conhecia a Celina pelo seu trabalho com a cena tradicional. E até já tinha entrado em contacto com ela por causa de uns projectos com samples de sonoridades do folclore, mostrei-lhe esse tema e ela prontamente gravou o acordeão. Foi ao primeiro take e estava perfeito. Depois, claro, temos o DJ Ride, que não poderia faltar. Ainda há pouco tempo falava com alguém e dizia que até seria estranho fazer um disco em que o Ride não tivesse mão em nada. E também entrou a Ana Magalhães. Apesar de ser um disco instrumental, tem algumas vocalizações, alguns coros ou ad-libs, e ela veio dar a sua textura ao disco.

Para ti, enquanto produtor, em termos sonoros, neste disco, o que é que sentes que exploraste mais que ainda não tinhas conseguido explorar?

Este disco acaba por ser uma redução de um conjunto de umas 50 ou 60 músicas nas quais estava a trabalhar. De início, se calhar estavam a ir para um campo de um hip hop mais normal, seja boom bap ou trap, estava a ir até mais para os drills e para esses caminhos, e estava a chegar a resultados com que estava bastante satisfeito. Mas, a dada altura, no Verão do ano passado, comecei a experimentar coisas um bocado mais indefinidas, experimentais… Não é que tivesse a seguir regras nas outras. Eu próprio não sei bem que estilo hei-de chamar àquilo, mas numa loja de discos haveria de pôr na secção de electrónica. Mas estou a falar de coisas mais experimentais e abstractas. Umas se calhar mais viradas para a pista de dança, mas uma pista num contexto mais de drum and bass ou uma cena mais underground; outras completamente para o lado oposto, que nem drums têm. Por exemplo, o “Balada Para PoSAT” acabou por ser a minha música preferida do disco, e nem sequer tem batida. É um registo diferente, mas senti que conseguia exprimir ali algum sentimento mais forte, sem ter necessidade de uma batida. Apesar de não a ter, o lado electrónico está muito presente, com os synths de bass ombro a ombro com a guitarra portuguesa. Acabei por seguir um caminho mais livre e experimental. Não tentei fazer um disco todo muito coeso, que fosse todo boom bap ou drill ou drum and bass. Está a soar bem, é assim que quero. Foi esse o caminho.

E foi simples perceber que faixas é que fariam sentido entrar no disco e completar, tendo em conta as 50 ou 60 que dizes que tinhas ao início?

E eu até completei a maior parte, embora algumas ideias tenham ficado pelo esboço. Mas, das que estão acabadas, o que se torna mais difícil são os temas que ficaram bem resolvidos mas que não faziam muito sentido neste disco. E que eventualmente serão utilizados, ou não, noutro disco ou entregues a outras pessoas para usarem. O mais difícil é retirar e há alguns temas mais boom bap no final do álbum, porque também queria que servissem um bocado como âncora, para um disco que estava todo ele muito virado para a experimentação, para o espaço. Aquele final é agarrar a coisa toda e mostrar: “Eu vim daqui, eu comecei aqui e não me esqueci de onde é que venho.”

Até porque o “Verdes Anos” também vem daí, esse final também evoca essa faixa que foi determinante para o teu percurso e para este disco.

Sim, e há ali um tema que tem alguns paralelos com o “Verdes Anos”. O “30 Metros de Água”, posso dizer que, quando o fiz, pensei: finalmente! Não faço ideia se é um tema que vá resultar ou não, isso já me ultrapassa, mas já tinha tentado forçar a barra e tentar fazer algo que fosse nesta direcção, mas estas coisas não dão para serem forçadas. Aparecem quando aparecem, surgem de maneira natural. Mas senti que finalmente tinha conseguido voltar a pisar este território, e que foi algo natural. O “Verdes Anos” foi sempre uma das músicas que correram melhor e que mais público me trouxeram, e de um ponto de vista business qualquer pessoa pensaria: isto agora vai ser “Verdes Anos” type beat de enfiada daqui para a frente. E de todo, não foi o caso. O “Verdes Anos”, salvo erro, é um tema de final de 2007 ou de 2008, e estamos em 2024 quando te digo que voltei a pisar um bocado esse chão. Não quer dizer que o “30 Metros de Água” sonicamente seja parecido, é mais o método de fazer a música e de a tocar ao vivo que é muito semelhante, porque são chops de guitarra muito pequenos, notas isoladas, e com um grupo de pouco mais de meia-dúzia de notas consegui transformar aquilo em vários momentos diferentes de um tema.

E como é que surge a capa feita pelo Bordalo II?

É uma pessoa que acompanho há imenso tempo, que conheci, salvo erro, em 2018 por causa de outra proposta de trabalho que depois acabou por não se concretizar. Fiquei mesmo fã da obra, da perspectiva activista e das ideias dele. E era alguém em quem pensava: “Um dia ter uma capa deste senhor seria qualquer coisa”. E foi aquela coisa de, sem grandes pretensões, falar com ele e explicar-lhe o que estava a fazer. Mostrei-lhe alguns exemplos de músicas que já tinha para o disco e qual é que seria uma possível ideia para uma capa. Eu já tinha aqui em stock vários instrumentos estragados e que já não funcionavam. Não os tinha guardado com a ideia de fazer uma capa, era mais aquela coisa de “um dia vou arranjar isto”. Mas, depois, quando falei com o Bordalo, lembrei-me que tinha bastante matéria-prima e ele acedeu à ideia e disse logo para eu arranjar mais umas coisas que seriam pertinentes. O principal seria o sampler, que eu já tinha; e a guitarra portuguesa veio de um amigo, o guitarrista João Coelho, que estava toda empenada e estava lá para um dia eventualmente ser arranjada. Outro amigo, o Gonçalo, ofereceu-me a guitarra eléctrica partida que está na capa. Houve algumas contribuições, mas claro que a maior foram as mãos do Bordalo, que foi incrível. Fui ter com ele com uma placa de madeira e o carro cheio de tralha, guitarras, acordeões rasgados, pandeiretas e teclados que comprei na feira por 5€ ou 10€… “Tens aqui a matéria-prima, agora diverte-te.”

E existe aí um paralelismo com o sampling, utilizar matéria-prima antiga para reinventar e transformar noutro tipo de arte.

Sim, o desconstruir, recortar bocados e reordenar acaba por espelhar muito o processo de trabalho neste disco, de uma forma física e visual. É uma representação do processo de trabalho que está no disco.

Tu vais apresentar o álbum a 23 de Março no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra. Vais contar com alguns dos convidados? Como será essa apresentação?

Já anunciados estão o Ricardo Gordo e a Ana Magalhães. A Ana vai também cantar alguns temas do Tristana. Ou seja, o concerto vai ser focado no disco novo, mas vamos tocar um tema ou dois do Bairro da Ponte, um tema ou dois do Desghosts & Arrayolos, mais uns temas do Tristana. Até será um concerto um bocado longo, mas é aquela coisa de apresentar um disco novo mas também celebrar alguns temas que ficam para sempre parte da minha história. E vamos ter mais alguns convidados surpresa, além do DJ Ride, que vai lá mandar uns scratches.

Vai ser um espectáculo único, ou vais querer replicá-lo noutros sítios?

Vou querer replicá-lo! Aliás, a minha intenção para 2024 será apostar neste disco. E provavelmente fazer estrada com a Ana Magalhães e o Ricardo Gordo, sendo que vamos sempre tocar temas de outros discos. E, depois, mediante o sítio e a hora, podemos focar-nos mais nalguns temas do Tristana, que ainda está fresquinho e ainda não estamos nada cansados de os tocar, e ter um lado humano, uma pessoa a dar a voz e a cara nos concertos, o que acaba por criar uma conexão mais forte com o público, mesmo que metade do concerto seja instrumental. 

Concretizaste agora o disco instrumental dedicado à guitarra portuguesa, tens já na bagagem o Bairro da Ponte e o Tristana. O universo do fado e esta mistura com hip hop e electrónica, é algo que planeias continuar a fazer em futuros discos? Tens outros projectos em mente que façam essas ligações?

Tenho um outro disco quase já acabado que vem nesse sentido. Até pode só sair daqui a um ano, mas está 95% feito e tenho ideias para mais um ou dois. Certamente que, quando estiver a fazer esses, novas ideias hão-de surgir. Se eu quisesse fechar a porta, poderia fechá-la, mas não me vejo a fazê-lo. Porque faz parte da minha maneira de me expressar e de ser enquanto artista. Posso ter, e tenho sempre, projectos paralelos mas a melhor maneira de teres um registo próprio e original é abraçares quem és.

Estamos a meio de Março e já vai ser o teu segundo disco este ano, depois do álbum com o Mura, sobre o qual também te entrevistámos. Ao longo do ano vais-te focar mais nos concertos, ou também planeias lançar mais coisas, eventualmente relacionadas com esse disco que está quase finalizado?

Lançamentos em nome próprio talvez não tão cedo. Mas tenho aí mais um disco para sair ainda este ano em que tenho estado a trabalhar, que é o disco do Phoenix RDC. Tem vários produtores, mas eu tenho estado a trabalhar com ele em quatro, cinco ou seis temas, já não tenho a certeza. São mais do que isso, mas não sei quantos deles vão acabar por ficar no disco. Portanto, pelo menos mais um está na calha.


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