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Fotografia: Ded Mongol
Publicado a: 01/02/2024

Diamantes trabalhados entre Almada e Caldas da Rainha.

Mura e Stereossauro sobre Adamas: “Fizemos um disco livre e sem pressão”

Fotografia: Ded Mongol
Publicado a: 01/02/2024

Alguém pediu um bom disco de boom bap português? Mura e Stereossauro apresentam Adamas esta quinta-feira, 1 de Fevereiro, um álbum editado pela Godsize Records que está recheado de mais de uma dúzia de diamantes aliás, foram esses cristais que originaram o título do projecto.

Foi no início de 2023 que, de forma casual e descomprometida, o jovem rapper de Almada e o veterano produtor das Caldas da Rainha começaram a trocar ideias. Rapidamente perceberam que tinham entre mãos um disco, ainda que levassem sempre o processo sem grandes ambições nem expectativas.

O resultado chega agora e inclui participações de nomes como Ikonoklasta, Beware Jack, D-Styles, DJ Ride, Cabrita, Vácuo, João Pestana e Afta3000, além de Tom Freakin Soyer e Sanryse, que já marcavam presença no single “Novos Fardos”, divulgado há poucos dias, com videoclipe dirigido por Sensei D e Sebastião Santana que evoca o imaginário da série Breaking Bad. Em entrevista ao Rimas e Batidas, Mura e Stereossauro desconstroem Adamas e explicam como foi trabalhar em conjunto.



Como é que vocês se conheceram e começaram a trabalhar em conjunto?

[Mura] Por acaso foi um bocado random, porque recebi uma mensagem deste senhor a dizer que tinha ouvido umas cenas minhas e a dizer que gostava de me enviar um beat. Isto começou com um beat.

[Stereossauro] Props quando os props são devidos, e neste caso o Rimas e Batidas até tem alguma coisa a ver com isto. Porque eu tinha visto qualquer coisa do Mura no site e achei piada às capas dos discos e fui ouvir. Achei interessante e fui segui-lo no Instagram. Do nada, mandei-lhe mensagem: “Estive a ouvir os teus sons e curti, se quiseres uns instrumentais diz qualquer coisa.” Foi assim muito descomprometidamente. Passado uns dias, mandei-lhe um instrumental e menos de 24 horas depois estava a enviar-me de volta já com voz gravada. “Então, toma lá outro.” E assim sucessivamente. Num instante tínhamos três ou quatro malhas. “Isto está a correr bem, vamos fazer alguma coisa mais séria.” Sempre sem compromisso de fazermos um álbum ou um EP. Foi só porque estava a dar pica, esta troca de ideias. E a partir daí desenvolvemos um disco mais a sério.

E esse primeiro beat, que originou as primeiras rimas do Mura, também está no álbum?

[Stereossauro] Ya, é o “Dopamina”.

[Mura] Na altura até era para ser uma intro. Depois fomos gravando, fomo-nos conhecendo melhor e criando outras coisas. Aquilo deu várias voltas. 

Mura, como foi para ti receberes esses beats e começares a rimar de forma tão espontânea?

[Mura] Deu-me pica receber beats do Stereo. Eu já o conhecia, não é? E ver um OG dar-me o recognize… A mim deu-me aquele extra boost para chegar a casa, ir gravar… Também sou um gajo muito prático, o meu estúdio é no meu quarto. Ou seja, é inevitável estar sempre a abrir o Ableton, e depois receber os beats que ele me enviava, que eram mais aqueles com que eu ficava do que aqueles com que não ficava, a mim dava-me um gosto imenso escrever o que fosse ali. Ou seja, foi quase um agradecimento por ele também me dar espaço naqueles beats, o que eu achava impensável.

[Stereossauro] Foi muito espontâneo, sem pressão, sem aquela coisa de “vamos fazer um disco”, sem datas. E acho que isso acabou por transparecer no álbum. Não é que seja leve, mas é bué livre. Foi isso que me cativou. Por vezes fazemos cenas bué conceptuais, e à volta de um assunto, e se calhar muito cerebrais e pensadas. Há temas que resultam assim neste disco, mas o modus operandi não foi nada esse. Eu samplava o que me apetecia. Quase que atirava uma pedra no estúdio e no disco em que essa pedra batesse… “Olha, hoje vou samplar este.” Não havia demasiada intelectualização.

Mas acredito que os primeiros beats que enviaste para o Mura já estavam no teu arquivo, ou não?

[Stereossauro] Não, não. Tirando um que seria para o Tom Freakin Soyer e nós encostámos o Tom à parede e dissemos: “Não, este beat vai ser para este disco…” [Risos] Todos os outros foram feitos de propósito para o Mura. Eu estive, se calhar, uns três ou quatro anos sem fazer cenas de boom bap, sem fazer beats especificamente para rappers não quer dizer que não trabalhasse aqui e acolá com alguma cena de rap, mas estava um bocado afastado, a fazer outras coisas. O que foi altamente, porque chegou a uma altura em que estava mesmo com vontade de samplar um disco e fazer beats de boom bap. Foi um acaso engraçado ter-me cruzado com o Mura precisamente nesses primeiros meses em que estava mesmo com vontade de fazer isso. Foi um bom timing.

Sentes que fizeste beats tal como terias feito há uns anos ou mudou alguma coisa por estares a produzir especificamente para o Mura e para este projecto?

[Stereossauro] Isto é um exagero, mas claro que daqui a uma semana já não estarei a fazer igual… Ou seja, não são como os de antigamente. Um aspecto negativo dos meus beats, para pessoal do rap, é que eram demasiado produzidos e tinham demasiada coisa a acontecer. Eu tinha, se calhar, uma regra parva em que o instrumental tinha de se aguentar por si só, mesmo sem rap. O que não faz sentido nenhum [risos]. E agora, a trabalhar com o Mura, explorámos os dois… 

[Mura] Eu também aprendi a rimar menos [risos].

[Stereossauro] Exacto. Por exemplo, beats drumless eram uma coisa que eu não tinha explorado muito e neste disco há dois ou três. É um exercício bué interessante fazer uma cena crua, já a deixar espaço propositado para a rima ter outro protagonismo e destaque. Há uns anos, nunca faria beats drumless.

Mas também escreveste menos do que o habitual, Mura?

[Mura] Eu venho de uma escola que é barra e barra atrás de barra.

[Stereossauro] Ele ganha à palavra.

[Mura] Era bom era [risos]. Este disco foi um bocado um abre-olhos para deixar a música respirar, saber os momentos onde devo entrar, onde devo parar, e o Stereossauro ajudou-me bué nisto. Ao gravar, vi que fazia muito mais sentido na minha cabeça ter ali o esqueleto todo construído. São coisas que se ganham com o tempo. É ao ir trabalhando com este tipo de pessoas que se vai aprendendo estas coisas. Eu tinha zero noção, porque venho da escola das 32 barras… E acho isso cansativo para quem ouve. Então queria dar algo diferente, queria dar o meu step ahead, e foi óptimo agora.

[Stereossauro] Não houve nenhuma regra de ele estar a rimar muito ou pouco, ou de o instrumental precisar mais disto ou daquilo, foi uma coisa mesmo de instinto e de fazer com que o resultado fosse fixe, para nós que estamos a fazer a cena.

[Mura] Claro, mas é a minha competição interna enquanto rapper ou músico. Gosto de não parecer sempre igual ao ano passado. Gosto de dar o step ahead, especialmente nos álbuns. Levo a coisa do álbum muito a sério. O Álbum do Desassossego foi o meu início, também não queria dar algo idêntico ao que dei há dois anos. Queria apresentar um crescimento, seja pessoal ou na música em si. 

Não sendo um álbum assim tão conceptual, no sentido em que não existe uma narrativa específica, como é que abordaste a questão de quereres dar esse passo em frente mas não haver um conceito concreto? Por um lado, também tinhas mais liberdade…

[Mura] É verdade. Também, na altura em que o Stereo me apanhou, eu estava experimental. Estava mesmo em espírito de estúdio, só queria escrever e escrever. Queria deixar arquivo. Depois, a partir daí, foi tudo muito natural. Porque os beats dele puxaram-me para esse espírito onde eu estava, parece que a coisa se casou perfeitamente. Foi o destino e ainda bem que aconteceu. Parece que estávamos os dois na altura certa, em momentos diferentes das nossas vidas, mas bateu certo ali. 

E foste muito por onde os beats te levaram?

[Mura] Exactamente, isso ajudou-me muito para cada tema. Eu depois também ia dizendo coisas — “olha, prefiro isto mais assim” — ou ele sugeria-me. Foi sempre um trabalho de equipa.

[Stereossauro] Os beats foram todos feitos de propósito, por isso não houve nenhum caso de: “Olha, está aqui, o beat é este, agora rima.” Houve sempre ajustes. Não é aquela coisa de sacares um beat da Internet e rimas por cima daquele beat que já tem uma estrutura definida. Até houve muita coisa que lhe enviei que eram loops. E depois, com a voz dele, é que ia fazer scratch e criar uma estrutura. Isso é outra coisa que este disco tem: se calhar tem mais scratch do que os meus outros discos quase todos. Era uma cena em que fazia sentido. Não vou fazer scratch só porque sei fazer, é só se a música o pedir. E a coisa estava a acontecer. Foi mais uma ferramenta para a construção das músicas.

[Mura] Sim, foi mais uma linguagem para acrescentar.

E hoje em dia e o Stereossauro se calhar até sente mais isso há cada vez menos discos de rap com scratch.

[Mura] E aqui temos beats de break a puxar para os b-boys.

[Stereossauro] Eu não o queria dizer, mas a minha cabeça às vezes funciona dessa maneira. Scratch está tão fora de moda que eu quero fazer scratch mais ainda [risos]. 

O disco também se destaca pelas várias participações que tem. Como foi pensar nos nomes certos a convidar? Teve também a ver com aquilo que cada música pedia?

[Stereossauro] Sim, as participações vocais ficaram todas um bocado à responsabilidade do Mura. Tirando, salvo erro, o Luaty — o Ikonoklasta. O Mura tinha a cena do José de Arriaga que faz noutros discos e queria incluir um poema. E eu estava naquela: “Isso é uma ideia fixe, mas que tal pôrmos uma outra voz, já que estás a encarnar outra personagem?” E calhou bué bem ser o Luaty. Somos os dois muito fãs, não só do trabalho, mas da pessoa. Então não haveria melhor maneira de começar o disco do que ter esse mestre de cerimónias a estender o tapete vermelho para o resto. 

[Mura] E é o Ikonoklasta a declamar um poema. O pessoal está sempre à espera que o gajo vá rimar, e assim também é fora-da-caixa.

E as outras participações?

[Mura] Eu e o Beware Jack já tínhamos conversado e tinha ficado apalavrado a gente fechar uma faixa. Acabámos por criar uma ligação, a coisa foi muito rápida, passadas duas semanas ele mandou-me logo a letra. Foi até, se calhar, das faixas mais rápidas do disco. Eu dei-lhe um leque de beats para ele escolher e ele seleccionou mesmo este. Até fiquei surpreendido, porque não era de todo o beat que eu estava à espera que ele fosse escolher. Depois, o Vácuo e o Pestana são os meus camaradas de estrada. A bem ou a mal, tinham de lá estar. 

[Stereossauro] Eu, por exemplo, já tinha ouvido falar do Vácuo, mas não conhecia o Pestana. E curti bué. Aliás, fiquei tão fã que temos aí umas side quests a serem feitas pelo caminho. Isto é a aventura principal, mas já andam aí umas side quests com o Mura e o Pestana. E fiquei fã, gostei muito desse tema com eles. O tema até tinha outro beat

[Mura] Mais de battle.

[Stereossauro] E eu disse: “Vá, pessoal, confiem em mim, vou dar aqui uma volta nisto.” E deu várias voltas.

[Mura] Depois estão o Tom e o Sanryse, que é a tal história. O beat era para o Tom, e depois achámos piada porque tem o sample com a voz do Sanryse, do 3º Capítulo

[Stereossauro] Sim, o Tom está sempre a parar com o Sanryse e com o Bambino, então foi naquela: “‘Bora usar este beat neste projecto.” O Tom é meu primo, é família, e tanto quanto sei até andaste na escola com ele, não foi?

[Mura] Sim, já conheço o Tom desde os meus 13 ou 14 anos. Ainda ninguém rimava.

[Stereossauro] Temos todos uma relação muito próxima. Se este beat não fosse para este disco, seria para outro em que estaríamos todos juntos à mesma. 

[Mura] E serve um bocado para homenagear a Margem Sul.

[Stereossauro] Ya, sou o único estrangeiro [risos].

[Mura] Mas és família [risos].

[Stereossauro] O primo da aldeia [risos].

[Mura] O som até acaba com a voz do Bambz, que também foi um bacano, e ganha outro brilhozinho porque acaba por ter ali o “Trio Odemira” todo, que é o Sanryse, o Bambino e o Tom. Para mim é uma homage também, não é todos os dias.

E depois há a faixa em que se juntam o Pestana, o DJ Ride, o Cabrita…

[Stereossauro] Esse é um dos temas em que se nota mesmo que é uma experimentação livre. Não há uma estrutura convencional. Aliás, os drums são todos feitos com scratch. Tinha feito também umas cenas com scratch com saxofones e foi naquela: “Deixa lá mandar isto ao Cabrita que eu sei que ele também é um workaholic, um “cavalo de trabalho” que nunca pára.” E assim foi. O Cabrita em pouquíssimos dias mandou de volta camadas e camadas de saxofone mesmo no ponto para eu escolher. Depois ainda falei com o André [Santos], o baixista dos Yakuza, e entretanto, como a malha tinha bué scratch de drums, ainda mandei para o Ride naquela de: “Mete mais scratch ainda.” Mas ele depois acabou por gravar uns synths e não scratchou. E foi um tema que ficou muito interessante por ser tão estranho e experimental. Está num BPM diferente da maior parte do disco.

E o título do disco, qual é a história?

[Stereossauro] Foi o Sensei D.

[Mura] Isto foram, basicamente, os diamantes que nós lapidámos. Porque nós vimos cada faixa como um diamante. E depois queríamos uma boa maneira para os englobar. E o Sensei, o grande cérebro que me ajuda muito na parte criativa e gráfica, teve a ideia de vermos isto em latim e surgiu esta palavra, Adamas, para resumir a ideia dos diamantes.

[Stereossauro] Nós achámos logo que os diamantes era uma ideia que queríamos abraçar. O som com o Vácuo e o Pestana até tem um sample do “Brilhantes Diamantes”. Só que nós não queríamos ir de todo pela cena do bling bling ou pelo luxo, ou pelo valor material. Então andávamos um bocado à procura de coisas relativas a diamantes. Andámos todos um bocado a pesquisar nomes históricos relacionados com a extracção dos diamantes, que é um processo muito oposto a esse resultado final do luxo. É uma cena de sangue e suor, muito sujo mesmo. Então o Sensei encontrou essa génese da palavra, Adamas, que, em latim, significa “indestrutível”. E, se pensares nisso, tens muitas ferramentas que se chamam ponta de diamante, para cortar aço e outras cenas, porque é um material super rijo. Lá está, indestrutível, não pela coisa de ser brilhante e bonito.


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