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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Susana Valadas
Publicado a: 06/03/2023

Tradição e electrónica numa nova simbiose.

Stereossauro: “Tendo a voz da Ana Magalhães, não preciso de mais nada para ter o fado”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Susana Valadas
Publicado a: 06/03/2023

Depois de reinterpretar o fado em Bairro da Ponte, a partir das matrizes da música electrónica e com recurso a material intocável — como a capellas de Amália Rodrigues, a título de exemplo —, Stereossauro voltou não só a compor, mas também a escrever — desta vez, para uma só fadista.

Ana Magalhães apresenta-se em Tristana, primeiro trabalho em nome próprio da fadista que fez escola em casas de fado como a Adega do João, em São Martinho do Porto. Do Porto, cidade, para as Caldas da Rainha, descobriu a paixão pela mais célebre cantiga portuguesa, já feita mulher, por influência da mãe.

Depois de longos anos de amizade com Tiago Norte, a fadista portuense viu, finalmente, a sua voz ganhar corpo nas batidas do DJ e produtor caldense — uma parceria que, para Stereossauro, representa uma aposta numa nova carreira. E, curiosamente, no dia em que a protagonista de Tristana celebrou mais um aniversário (com as coincidências a não ficarem por aí: o inesperado aparecimento de DJ Ride, fiel companheiro do autor de Desghosts & Arrayolos com quem partilha o duo Beatbombers, revelou-se um momento providencial), a nova dupla de “novos fados” abriu-nos portas ao primeiro álbum em conjunto, em jeito de antecipação do concerto de apresentação do disco que têm marcado para dia 18 de Março, na Igreja do Espírito Santo — em “casa” —, nas Caldas da Rainha.



Um DJ e produtor das Caldas da Rainha, uma fadista do Porto: como se deu esta ligação?

[Stereossauro] Já nos conhecemos há algum tempo. A Ana veio do Porto para a zona das Caldas há bastante tempo, mas eu “só” a conheci há dez [anos], através de um amigo em comum, que era o Razat. Acabávamos por conviver aqui e ali, [sobretudo] em casa do Razat, e quando ela viu que eu estava a trabalhar as cenas do fado, mencionava sempre: “Eu canto fado.” E, na verdade, eu nunca a tinha ouvido cantar, mas ficou sempre no ar aquela coisa de, “Um dia destes temos de fazer uma colaboração…”. Até que, quando chegou a altura e lhe mandei uns temas para experimentar, ela devolveu-mos com gravações de telemóvel, e eu percebi logo que a voz dela tinha um timbre que me interessava imenso e que tinha pernas para andar o projecto.

Ana, segundo sei, começaste a cantar fado relativamente tarde

[Ana Magalhães] Sim… O gosto pela música acompanha-me desde pequenina, mas foi aos 24, 25 [anos que comecei a cantar fado]. 

Em São Martinho do Porto, certo?

[Ana Magalhães] Sim, estava em São Martinho. A primeira vez que cantei foi lá. Depois, a partir daí, liguei-me ao meio do fado e comecei a cantar fado vadio, fado amador…

As primeiras coisas tuas que consegui encontrar…

[Ana Magalhães] [Risos] Aqueles vídeos…

[Stereossauro] Que ficam na Internet para sempre… [risos]

[Ana Magalhães] “Olá, o meu nome é Ana Magalhães, é um prazer estar aqui…”

Na Adega do João, se não me engano.

[Ana Magalhães] Na Adega do João, que foi uma grande escola de fado.

Isso já tem pelo menos dez anos.  

[Ana Magalhães] Sim, sim. Aliás, eu faço hoje 41.

Muitos parabéns!

[Ana Magalhães] Obrigada!

E, então, porquê só agora esta investida numa carreira em nome próprio?

[Ana Magalhães] Tive um começo de vida também um bocadinho estranho, a nível de não ter nenhum sítio específico para viver; andava sempre para cima e para baixo, e se calhar a vida só estabilizou mais ou menos por essa altura. Foi quando vim viver cá para baixo, para a zona de São Martinho. Depois, a minha mãe era muito amante de fados, e foi com ela que fui [pela primeira vez] a uma noite de fados.

Mas ainda foi algum tempo a cantar músicas de outras pessoas nessas casas de fado, e não tanto começar, se calhar, a escrever.

[Ana Magalhães] Não, ainda não me aventurei nessa… Até porque eu gosto muito do fado tradicional, e mesmo dos poetas mais antigos — gosto daquela linguagem mais simples e directa, e há muito por onde ir.

Na verdade, não há assim tantos fadistas a escrever as próprias letras.

[Ana Magalhães] Há alguns, mas, lá está, como há tantos poetas no fado tradicional, vão beber desses poetas antigos. Há um espólio enorme para descobrir. Mas acho que os novos fadistas escrevem bastante, até.

Isso dá-me uma ideia completamente diferente da que tinha em relação a este disco, porque ele tem uma abordagem temática muito específica e uma linguagem muito própria. A minha perspectiva era de alguém que tinha escrito estes temas com base na sua vivência.

[Ana Magalhães] Não, neste caso foi o Stereossauro que escreveu todas as músicas do álbum — e todas de uma perspectiva feminina.

Voltaste a assumir esse desafio de escrever letras?

[Stereossauro] Sim, eu já tinha escrito umas coisas no Bairro da Ponte, depois no Desghots & Arrayolos escrevi mais umas — salvo erro, umas três ou quatro no Bairro da Ponte, e no Desghosts & Arrayolos para aí umas seis —, e tudo isso deu-me uma bagagem e confiança para num próximo disco ser eu a escrever todas. Não só para ter um fio condutor que ligasse mais facilmente todas as músicas, mas também queria assumir essa responsabilidade.

Até por ser um trabalho mais fechado em termos de pessoas envolvidas.

[Stereossauro] Sim, sim, isso também foi tudo premeditado. Tenho sido abençoado nos últimos discos com participações incríveis, de todos os campos da música, do fado ao rock e à pop. E, de certa forma, senti que num próximo disco teria de ser só com uma pessoa, não só para depois transpor o disco para a estrada de uma forma mais praticável, em que é só um vocalista para todas as músicas, mas também tinha a pretensão de fazer com alguém em início de carreira, ou até sem carreira nenhuma, para poder desenvolver essa carreira com essa pessoa — e que este disco fosse uma prioridade, para não ter de estar a jogar com agendas pessoais. E tudo isso canalizou-me na direcção da Ana.

Como foi escrever todo o disco da perspectiva de uma mulher?

[Stereossauro] A partir do momento em que decidi fazer o disco com a Ana, sendo o intérprete uma mulher, tentei que as músicas fossem o mais próximas dela possível, para ela mais facilmente se identificar com as letras e as interpretar com verdade. Os temas, em boa verdade, são um bocado generalistas. Coisas que nos chegam em casa a ver o telejornal, em livros que lemos, em filmes que vemos. As dificuldades de ser mulher são aqui abordadas um bocado à superfície, porque, lá está, eu sou um outsider. Mas não quer dizer que eu não possa ficcionar sobre o assunto. Eu não tenho que ir à lua para escrever sobre uma viagem à lua.

[Ana Magalhães] Mas ficcionaste mesmo ali…

Ao ouvi-lo, não ponderei sequer que o disco tivesse sido escrito por um homem.

[Ana Magalhães] Lá está, é uma ode à mulher, quase…

[Stereossauro] E não foi uma coisa hermética. Eu ia mostrando as letras à Ana, perguntava, “Concordas com isto? Identificas-te com isto? Isto faz sentido?”, e ia afinando conforme ia tendo o feedback dela. Da mesma forma que as músicas foram escritas para ela, mas não quer dizer que ela tenha sido vítima de violência doméstica para poder cantar sobre esse assunto — e ainda bem que não. 

Houve temas em que foi mais simples. Por exemplo, o “Nome de Mulher” é sobre uma relação, e é um bocado universal. As outras envolveram um bocado mais de conversas. Por exemplo, o “Pouca Terra” é mais inspirado na vivência da Ana, já não é tão ficcional — aquela coisa de estarmos a ver os comboios dos outros a passar e o nosso não chega.

[Ana Magalhães] E eu vivo ao lado da estação, curiosamente… [risos]

Esse processo de escrita também passou muito por experimentar as letras na voz?

[Stereossauro] Sim, se bem que não há propriamente uma fórmula. Houve músicas que começaram por um instrumental, e eu sugeria melodias, ainda sem palavras concretas, à Ana, e ela dava o seu próprio toque pessoal às melodias. Depois, com as melodias, tentávamos encaixar a letra nesse número de sílabas dessas frases e assim… Houve outras que começaram pela letra, e foi a questão de pôr uma viola acústica com a letra, para dar corpo à canção — e a dada altura a viola acústica sai por completo, e fiz um instrumental electrónico. Portanto, não houve propriamente uma fórmula, mas houve muito essa coisa que dizias do ir testando. Por comparação a fazer música com cantautores, facilita-me muito mais o trabalho, porque a parte da letra e da melodia vem muitas vezes sugerida pelo artista. 

Quando se juntaram já com uma ideia mais concreta para avançar com o projecto, o que é que ganhou primeiro forma: as temáticas, ou uma linha sonora que casa o fado tradicional com a música electrónica?

[Stereossauro] Acho que foram coisas paralelas. Logo de início, também decidi que este disco seria mais electrónico, e menos acústico — só há um tema que tem guitarra portuguesa; há outro que tem uns samplezitos de guitarra, que é o “Sai de Mim”, mas coisa pouca.

Mas mesmo esse tema é…

[Stereossauro] É, é uma carga electrónica… Vai ao techno e tudo. Então, logo à partida, havia essa premissa de: “Tendo a voz da Ana, não preciso de mais nada para ter o fado”.

A temática… Eu também já tinha alguns temas antes de começar, que lhe mostrei e ela experimentou cantar. Depois, só um desses temas é que acabou por ficar no disco. E foi uma coisa que foi música a música. Quando demos por ela, à terceira música, “Olha, há aqui uma ligação entre todas elas, portanto vamos tentar levar isto por aqui”. Mas foi muito orgânico. 

E em relação ao título, houve algum conceito por trás?

[Stereossauro] Foi a última coisa a surgir, e veio já com a capa da Tamara Alves. O disco foi passando por vários nomes…

Querem dizer alguns deles?

[Stereossauro] Um deles era Paulo Pena, mas… [risos] 

Mas como era sobre uma mulher não casava bem… [risos]

[Stereossauro] Não, estou a brincar contigo. Foram sempre nomes que, de alguma forma, transmitiam um lado mais dark, um mood mais deep, mais melancólico. Havia vários nomes possíveis, à volta da mulher, à volta da melancolia e da tristeza. E quando tivemos a ilustração da Tamara, que também foi escolhida a dedo — não foi por acaso que escolhemos a Tamara —, olhámos para aquilo e eu já tinha posto em causa o nome “Tristana”, que vem de “triste” e de “Ana”. E, quando ela nos apresentou a imagem, dissemos, imediatamente, “Esta é a Tristana”.

Já agora explico-te o porquê da Tamara: já a conheço há 15 anos, talvez, ou mais, porque ela estudou na ESAD [Escola Superior Artes e Design], nas Caldas, como nós os dois. Conheço-a desde essa altura e tenho vindo sempre a acompanhar o trabalho dela, que não sei se conheces, mas aborda muito o feminino…

[Ana Magalhães] O empowerment da mulher.

[Stereossauro] Com muita crueza. E já tínhamos o disco gravado nessa altura, enviámos o disco inteiro, ela ouviu e em duas semanas começou logo a mandar uns esboços para a capa — que nós adorámos de imediato.

[Ana Magalhães] Foi a escolha acertada.

[Stereossauro] Gostámos tanto e a capa estava tão correcta, que poderia ter acontecido ao contrário: nós podíamos ter visto a imagem da Tamara e decidido fazer o disco a partir daquela imagem.



Ana, como foi cantar em instrumentais de música electrónica vinda do fado tradicional? Era um género que já acompanhavas?

[Ana Magalhães] Sim, para já, é um género que oiço — dentro da electrónica, vários géneros. O hip hop — também adoro hip hop… Não sabia é que ia ser tão natural e que ia casar tão bem. [Aparece DJ Ride] Está aí mais um para a entrevista [risos].

[Stereossauro] Back vocal!

Também já o vi a cantar em alguns concertos… [risos] Mas voltando aqui ao processo do Tristana: do Bairro da Ponte para o Desghosts & Arrayolos houve uma grande diferença em termos de sampling.

[Stereossauro] Sim, isso também foi [uma daquelas] pequenas dificuldades que eu gosto de auto-impor-me: proibi-me a mim próprio de, no disco seguinte, usar um único sample. Não sei bem porquê, porque não foi tão difícil assim legalizar os samples para o Bairro da Ponte, apenas carolice de não querer repetir fórmulas. E, se calhar, precisava desse afastamento para depois voltar a samplar. Por exemplo, no Tristana também não tem samples

Era isso que ia perguntar.

[Stereossauro] Mas muitos dos sons foram trabalhados como se fossem um sample, ou seja, coisas que gravava com sintetizadores, ou com o computador — com VSTs —, ou com outros instrumentos, e depois voltava sempre a retrabalhá-los como samples. Não havia, de todo, a intenção daquilo poder ser replicado por uma banda. Pelo contrário, era assumidamente electrónico e ia ser tocado ao vivo com máquinas e DJ. 

O sampling é a minha zona de conforto. Trabalhar o áudio e manipulá-lo com gira-discos, com computador ou com sampler é a maneira com que eu mais facilmente consigo ir ao encontro das ideias que tenho. A origem do sample acaba por ser um bocado indiferente — se vem de um disco, se foi uma guitarra que eu toquei, se foi um sintetizador que um amigo tocou. O processo de trabalhar o sample é que vai definir a sonoridade final.

Quanto tempo levaram a fazer este trabalho?

[Stereossauro] Não foi demorado. Foi cerca de um aninho — só que não foi um ano fechados em estúdio a fazer isto. Se tivesse de condensar tudo em tempo de estúdio, teria sido uns quatro meses. E já está fechado há quase um ano. Só que na altura em que estávamos a 90% deste disco, foi quando saiu o meu disco com o Cabrita [Cachorro Sem Dono]. Portanto, ficou na prateleira mais um bocadinho. E era algo que já tínhamos ideia de ser edição de autor, independente. Não tínhamos pressão nem timings para pôr as coisas cá fora.

Pensaram esta parceria numa perspectiva de a levar para lá deste álbum, até por ser o início da carreira da Ana?

[Stereossauro] É isso mesmo. Até por isso que eu te disse ao início, que queria trabalhar com um artista em início de carreira, ou sem carreira mesmo, para poder desenvolver o disco, espectáculo ao vivo, e potenciar a carreira desse artista — e começar com alguém que fosse dar prioridade a este projecto. Já tive a sorte e a bênção de trabalhar com grandes nomes que me puxaram a mim para a luz, senti que era a minha vez, também, de fazer o mesmo por outra pessoa.

E ficaram pontas soltas desse trabalho que já poderão dar uma ideia do que pode vir a seguir?

[Stereossauro] Sim, há um ou outro tema que poderia ser repescado para um disco futuro. Há vários instrumentais que poderão ser trabalhados para um disco futuro, mas de momento estamos concentrados neste e em pôr este na estrada.

[Ana Magalhães] E vamos ter o primeiro concerto dia 18 de Março.

Já há sítio confirmado?

[Stereossauro] Sim, vai ser nas Caldas da Rainha, na Igreja do Espírito Santo — que é uma igreja que foi dessacralizada —, onde o Grémio Caldense faz os seus eventos. O Grémio são amigos nossos que estudaram também na ESAD e por lá ficaram, e têm feito vários concertos, quer de cenas de electrónica experimental, jazz, música mais contemporânea, por assim dizer — e convidaram-nos para fazer o concerto de apresentação com eles. 

Como já disseram, o disco também foi pensado para fazerem estrada com ele. Pensaram na hipótese de o levar a casas de fado?

[Stereossauro] Sim, seria muito interessante. E é possível as músicas serem desconstruídas para algo mais acústico. Se bem que eu gostaria de levar o gira-discos para a casa de fados. Podemos fazer versões, pedir a amigos para fazerem remisturas, mas de momento queremos mantermo-nos fiéis ao disco. 

Qual é a vossa perspectiva sobre todo este movimento do “novo fado”, tanto de um lado, de quem impulsionou essa vaga, como do outro, de alguém que aparece agora como uma voz nova nesse meio?

[Stereossauro] Vou-te ser muito honesto: eu tenho acompanhado muito pouco. Ainda hoje vínhamos para cá de carro, e vinha a ouvir o disco do ano passado do Mura Masa [demon time], que é rock ’n’ roll. Claro que vou ouvindo algumas coisas: curti bué do “Andorinhas” da Ana Moura; ainda não consegui ouvir o disco todo, mas gostei muito desse single. Mas eu não oiço tanta música portuguesa como as pessoas possam pensar. E, ultimamente, até tenho andando mais por campos do rock ou do drum and bass. Não tenho ouvido, quase, hip hop nem fado… [risos]

[Ana Magalhães] Também não tenho acompanhado muito o que se faz cá, mas é bom que façam essas inovações. É sinal que as coisas estão a evoluir.

[Stereossauro] Claro! Eu ouvia o Ride dizer, “Olha, no outro dia não sei quem perguntou-me por ti — ‘o maluquinho do fado’”… E acho que hoje já não sou só eu esse maluquinho, o que é óptimo. Havendo mais, acabamos por nos validarmos uns aos outros. Ainda bem que existe uma Ana Moura, ainda bem que existe um Conan Osíris, ainda bem…


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