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Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2022
Publicado a: 30/10/2022

Imersão em texturas e sensações intensas.

Semibreve ’22 – Dia 3 (Capela Imaculada, Theatro Circo): reducionismo e maximalismo em confronto sónico

Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2022
Publicado a: 30/10/2022

O incrível (e premiado) espaço da Capela Imaculada do Seminário Menor, em Braga, recebeu ontem a apresentação de Malcolm Pardon, músico que conhecemos de vários projectos, incluindo Roll The Dice, e que o ano passado lançou o álbum Hello Death (deste ano data já a cassete Death Revisited). No final do concerto, curiosamente, não foram as obras de arte expostas na capela que monopolizaram o olhar do público que esgotou a lotação do espaço, mas o dispositivo técnico e os instrumentos usados por Malcolm e que muitos se encarregaram de fotografar como que tentando documentar as ferramentas que ajudaram a que ali se tenha suspendido o tempo, como que por magia.

Com um piano vertical, de tampa aberta expondo o seu mecanismo, e um conjunto de máquinas – controlador midi, processador de efeitos, gerador de loops, etc -, Malcolm foi tocando frases muito simples no piano, de poucas notas, quase como poéticos haikus melódicos, que depois ia processando, multiplicando, tomando-as sempre como ponto de partida para um paciente entrelaçamento com bases harmónicas electrónicas. Há algo de hauntológico na sua música, como se naquelas breves frases de piano subsistisse uma qualquer memória distante, como se a elas viessem presos os véus de fantasmas de antanho, convocados para dessa forma fazerem sentir a sua espectral presença. Muita gente fechou os olhos para escutar, deixando-se envolver pela melancólica dolência da música que, sinceramente, contrasta com a figura que fora do palco é bem mais efusiva. 

(Na próxima terça-feira, Malcolm Pardon integra um cartaz que também inclui Mariana Dionísio e João Carreiro e que tomará conta da Escola do Largo, em Lisboa, a partir das 18 horas. Ocasião que, tendo presenciado o músico em (lenta, mas profunda…) acção no Semibreve, vivamente se recomenda.)

Os concertos seguintes tomaram conta dos dois auditórios do Theatro Circo, a partir das 21:30.

Maxwell Sterling, que o ano passado editou Turn of Phrase, foi o primeiro a subir ao palco. Atrás de si as imagens alinhadas, sobrepostas e manipuladas por Stephen McLaughlin. Em conjunto, apresentam um espectáculo que denominam como Decay Time e que é visualmente (e, já lá, iremos, auralmente) intenso na forma como sobrepõe motivos do que parecem ser escritos medievais, fragmentos variados dos universos da pintura ou arquitetura, vídeos de cidades, imagens de funda abstracção, animações e colagens absurdistas num imersivo turbilhão a que o nosso olhar não consegue escapar. E tudo enquanto Sterling conjura, com máquinas e contrabaixo eléctrico sempre tocado com arco, uma música de idêntica força que combina, ela própria, ecoando as imagens a que dá vida, mundos diferentes: desde logo o da acústica e o da electrónica, mas também os domínios clássico e moderno, analógico e digital, num constante rodopiar de texturas e frequências que nos coloca no espaço que parece existir entre os extremos do techno e da modern classical, mas com um rigor formulaico que por vezes resulta em vazio. De certa forma, tanto Sterling como Pardon, partem de instrumentos acústicos com história longa para deles extraírem motivos – melódicos, harmónicos, texturais – que depois servem de mote ou ponto de partida para a construção de peças em que a electrónica assume a dianteira. Mas onde o músico que tocou na Capela Imaculada é espartano, comedido, claramente apostado na exposição de minúsculas nuances, o segundo, o primeiro ontem a pisar o palco do Theatro Circo, é maximalista, expansivo e directo. Não que isto seja uma corrida (não é…) ou um campeonato (também não…), mas nesse jogo de combinação de mundos musicais, Malcolm Pardon sai claramente vencedor.

Coube ao veteraníssimo Alva Noto, no entanto, o arrebatamento da noite, numa apresentação de vigor absoluto e músculo sónico total. Carten Nicolai é, sem dúvida, uma das figuras de proa da mais desafiante electrónica deste milénio, um criador generoso com obra vasta que, como nos indica o programa deste ano, trouxe a Braga música da trilogia que se concluiu em 2018 com Unieqav. “Talvez por isso todos os volumes mostram uma expandida acessibilidade rítmica, quase universal, onde experimentação e as leias da matemática habitam um corpo sedutor de sintomatologia techno. E, no entanto, Unieqav é, como afirma Nicolai, ‘um mergulho nas profundezas’, querendo-nos revelar, deste modo, a desmedida amplitude da sua música, das suas intenções e, claro, dos seus resultados”. Em palco isso traduz-se num espectáculo sem concessões: no grande ecrã, e ao contrário da barroca visão de Stephen McLaughlin com que fomos confrontados no arranque da noite, uma reducionista e gráfica viagem que procura tão somente ilustrar o próprio som, traduzindo-o em motivos pulsantes em sincronia hipnótica com a música que o fantástico sistema de som debita. E que música é essa? Um híbrido depurado ao máximo de techno e electro clássicos (identificáveis nos kicks, claps, hi hats da 808) que fruto da sua redução extrema resultam ali em intensos padrões rítmicos sem que se vislumbrem quaisquer resquícios melódicos. Mesmo o lado grave da música parece estar monopolizado pelos kicks sintéticos havendo apenas muito esporadicamente espaço para figuras de baixo mais sinuosas. Mas – e parece ser para aí que a experiência conduzida por Noto aponta – por entre a barragem de bombos e tarolas e hi hats em convulsão matematicamente rigorosa, talvez por indução do carácter repetitivo dos motivos gráficos pulsantes, por vezes parecem surgir serpenteantes ecos melódicos, talvez uma ilusão aural decorrente dos choques de frequências com o próprio espaço. A energia transpôs-se de forma natural para o público que ao final de uma hora de porrada sónica absoluta não deixou que Alva Noto fosse embora sem voltar para mais alguns minutos de intensidade máxima, com esse encaixe nas “normas” dos concertos que ditam que o artista deve recompensar a rendição incondicional do público com uma dose extra de “entretenimento” a ser a única concessão que Alva Noto admitiu. Mas nada ali resvalou para o tal “entretenimento”: Alva Noto procura, ao invés, submeter-nos a uma experiência de subjugação aos ditames do ritmo por acreditar, talvez, que só assim nos libertamos no final.

A noite no Theatro Circo ainda reservou aos mais resistentes a apresentação de Ben Vida e Lea Bertucci, mas quem assina estas linhas assumiu-se vencido pelo assalto sonoro de Alva Noto e deu por finda a jornada que, no entanto, ainda prosseguiu no gnration com a embaixada da Príncipe Discos. Watch this space…

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