A importante descarga de energia que ocorre na pista de dança parece ser o assunto de maior importância nas escolhas deste mês: a equipa do Rimas e Batidas apresenta aqui uma série de músicas que terão o condão de trazer o melhor dançarino que há em cada um, mas não só — apesar da maioria descair para a vertigem que é dançar, outros tentam refugiar-se nas emoções proporcionadas pela nostalgia, pelo pós-coração partido e pelas possibilidades de um futuro melhor.
[Overlook & Positive Centre] “Screen Burn”
Às vezes os britânicos Positive Centre e Overlook são Carrier, às vezes funcionam em parelha sob os próprios epítetos. Em ambos os casos, a electróncia de tendências techno dos ingleses baseados no Norte de Portugal e em Bristol traduz-se em baixos robustos, de fisicalidade excessiva, e em síncopes de quatro por quatro em contratempo. Escusado será dizer que, adicionando a isso a ambiência negra de Positive Centre e a espacialidade de Overlook, o resultado é incendiário na pista de dança e uma experiência singularmente imersiva longe dela. Neste último “Screen Burn”, selado com a qualidade indelével da UVB-76, a dupla usa e abusa de todo o espectro de frequências audíveis para uma experiência de corpo inteiro, com uma dinâmica crescente e que rompe com os limites de intensidade de forma inesperada. Melhor, ombreiam-no num contexto de mini-compilação com alguns dos produtores habituais da label. É o chamado “all around goodness” com uns toques de “impróprio para cardíacos” e pitadas de “cardio auditivo”.
– André Forte
[Supernova Society (Chico da Tina, VirginGod)] “ISSO É SUPERNOVA”
As ligações de Chico da Tina ao Brasil não são deste mês: o projecto lovetape, que conta com a co-autoria do seu protegido, Tripsyhell, já tinha colaborações com o brasileiro VirginGod ou Lil Zé. Para quem ainda não reparou, um dos novos temas com a participação do autor de Minho Trapstar está incluído no SUPERNOVA EP, trabalho de estreia do colectivo luso-brasileiro SUPERNOVA SOCIETY. Nesta acção conjunta, Chico da Tina continua a sua demanda pela união do talento português com o brasileiro. Posto isto, há que reconhecer ao músico do Minho a ambição e a capacidade para fazer o que muitos falaram e poucos conseguiram – estabelecer relações colaborativas e partilhas consequentes entre músicos dos dois países. Resta saber até onde pode ir esta troca.
– João Daniel Marques
[Photonz] “Red Rooms”
A pista continua deserta, as bolas de espelhos paradas, os clubs encerrados. Não há datas que se oponham a este imaginário, mas, se a saúde física e económica do clubbing é incerta, a saúde criativa está fervilhante. Portugal passa, nesta altura, por um interessante período de lançamentos. Há novos projetos, novas editoras, novos conceitos e um “renascer” de nomes que nunca foram embora, mas que estão cada vez mais presentes e activos, sobretudo aqueles que praticam as sonoridades mais pujantes da eletrónica. O techno, o IDM e o breakcore nacional estão, nos últimos meses, a chamar a atenção do mercado internacional e a receber um forte reconhecimento e apelo do público.
Photonz é um desses produtores que esteve sempre no topo da hierarquia nacional, mas a sua produção parece, hoje em dia, mais actual e fresca do que nunca. Neste mês de Maio decidiu lançar um novo Bandcamp com uma panóplia de novas edições, onde “Red Rooms” se destaca. Um intenso mural de som, inicialmente com edição marcada para 2009, mas, quis o destino, que só agora tivesse o seu lançamento e a verdade é que soa moderno — de 2021. Agressivo para o corpo e reflexivo para a alma, este “infinito” catalisador de energia é perfeito para a pista, mas também para ser escutado no conforto de casa. Uma excelente composição e um ainda melhor exemplo da óptima forma da eletrónica nacional. É estar atento ao que se passa, mesmo com as pistas no escuro.
– Luís Carvalho
[As Docinhas] “Aiaiaiai”
A guitarrada existencial é um falso arranque; os motivos sadomaso são só a substância para a anti-forma. Alguma vez As Docinhas – as vianesas Cire e Lee, artistas multidisciplinares – precisariam de sinalética punk, quando o são por inerência? Pós de pós-ironia, mas não o suficiente para comprometerem o que têm por sério e sagrado: engolir mundos estanques, cuspi-los sem rasto de binários. Indigestas porque excitadas, excitadas porque enfadadas. E, mais libertas do que castradas pela natureza DIY da coisa – o que se nota pela grande comitiva de músicos e artistas visuais que as respaldam –, empenhadas em terraformar algo franco, serrilhado, estranhamente puro.
O disco XANDO é a primeira pedra. “Aiaiai”, a abertura do CD, é isso tudo num medley — ilustrado com um videoclipe. O primeiro minuto é uma maquete à moda das Raincoats, uma protoária rock em inglês; 40 segundos depois, querem meter-se num cabaré francês, um violino no lugar do acordeão, uma flauta que as acompanha na transfusão final de sangue minhoto. “Comeram todos do meu sarrabulho/ Toda a gente sabe que eu sou paneleira”, death drops numa pradaria, a dançar o vira. Isto depois de fazerem vogue enquanto martelam “Ai que frete, que eu sou do jet set/ 91 77, tira tira mete mete”, num acesso de génio pop.
É muito isto—e também é muito não isto. É o que As Docinhas querem e, com mais urgência ainda, aquilo que não querem.
– Pedro João Santos
[MIKE] “Crystall Ball”
“It’s M to the IZZ-I
Oooooooh”
E repete:
“It’s M to the IZZ-I, don’t forget the K-E” — na verdade, é impossível esquecer estas quatro letras tão simples, que juntas, escritas em maiúsculas, formam o humilde nome (à sua imagem e semelhança) do rapper natural de Nova Jérsia e sediado em Nova Iorque.
MIKE, diminutivo de Michael, é o nome artístico do MC e produtor que de artista pouco tem além da sua arte. Visto como um sucedâneo de Earl Sweatshirt, o músico anti-estrela veio a reunir também ele a sua turma de culto na qual se alistou o próprio membro-fundador do colectivo Odd Future, grupo incontornável na era dos millennials.
“Crystal Ball” é o segundo avanço de Disco!, o novo álbum de MIKE que chega, como não podia deixar de ser, no próximo dia 21 de Junho. Depois de “Evil Eye” ter aberto as portas para o projecto, este segundo tema, produzido por dj blackpower — o aka com o qual MIKE assina nas batidas —, volta a ser apresentado com uma estética visual em homenagem a MF DOOM e a sua “Dead Bent”.
“The money where I reside, don’t forget 2 pay me” — seja qual for o preço, ele merece-o.
– Paulo Pena
[Kika Scorpion] “Afrodisiaca”
Estilo solo de guitarra de B.B. King, Kika Scorpion rima sobre o corpóreo beat do versado produtor Silvestre: canta sempre à volta de uma mesma nota, imersa num auto-tune bastante acentuado mas que não nos retira a capacidade de percepcionar a sua entrega, o ponto mais forte e cativante da sua voz.
É difícil não ficar curioso com esta galáxia de Scorpion, naturalmente afrodisíaca, mas também nocturna, narcótica, ébria, hipnótica, intoxicante, tudo características largamente acentuadas pelo arpejo sedoso em loop do instrumental, pela pequena distância que existe entre a melodia do refrão e do verso (ou será o tudo o mesmo e estruturas não interessam para nada, afinal?), pela letra ou pelos toques de intenso reverb que não se cansam de surgir no mix.
No fundo, não há nada mais afrodisíaco do que a voz humana. Já Aphex Twin, numa bonita entrevista com a Crack Magazine, estranhava como nos poderíamos interessar por alguém sem ouvirmos a sua voz. A de Kika só agora se começa a fazer ouvir, mas já estamos agarrados…
– Vasco Completo
[Lord XIV] “Un Tras D’otro”
Entre “south!” e “Baby Choppa“, Maio foi também um mês particularmente forte no consumo de música nacional por estas bandas. Neste capítulo destacou-se Lord XIV, que deu um forte contributo à cena drill portuguesa com este “Un Tras D’otro”. Ao terceiro lançamento em 2021, o rapper afiliado da Bridgetown arrisca-se sem rodeios numa cantiga de rua, que tem tanto de cosmopolita como de marginal e se desdobra entre o crioulo, o francês e o inglês. Depois de ter regressado ao país onde nasceu para “trabalhar com o Plutonio” e lançar singles como “Madre Mia” ou “General”, por este andar já é o próprio Lord XIV visto como um aqueles com quem os outros querem trabalhar e só estão agora a apanhar este comboio.
– Gonçalo Oliveira
[NAYANA IZ] “Breaking Point”
Maio de 2021 é um mês que tem tudo para ficar marcado como um ponto de viragem para a carreira de NAYANA IZ. Depois de lhe descobrirmos os talentos enquanto surfava no instrumental da faixa de kezia, “south!”, a jovem artista londrina voltou dar cartas há uma semana, desta vez numa missão solitária em que verteu o máximo daquilo que estava a sentir com uma escrita inspirada e uma interpretação que não precisa de ser explosiva para causar mossa — tudo isto em cima de um instrumental encantador (sem deixar de ser económico nos arranjos) a pedir uma remistura com Sampha e James Blake nas segundas vozes.
“A thousand years wouldn’t teach you no better/ I’ll wipe my tears, you ain’t worth no weather/ No storm, no sun, I’m on the run”. Este é o “Breaking Point” de NAYANA IZ. Quem vai acompanhá-la nesta fuga?
– Alexandre Ribeiro
[xtinto] “Android”
Apesar deste novo normal nos ter privado de muita coisa, o desgostoso amoroso não é uma delas. Que o diga xtinto e a sua “Android”, o mais recente tema do rapper-maravilha de Ourém. Francisco Santos apresenta-se vulnerável, um crooner com lágrimas na voz e ardor na alma. Mas apesar do prato do dia ser depressão, xtinto e a sua qualidade lírica criam uma refeição sonora digna de um restaurante de três estrelas Michelin.
O hook choroso é um dos principais destaques deste curto e incisivo tema, e o seu instrumental de jantar à luz das velas embala-nos nas tristonhas declarações de xtinto. É claro o seu sofrimento, seja pelo timbre arrastado, pela cadência pouco entusiasta das suas palavras ou pela distância que ouvimos entre a sua voz e o auto-tune, símbolo de que isto é o seu eu mais cru e honesto. Mas ainda que sejam os desabafos de um homem taciturno, não ofuscam o enorme talento do seu autor, que mostra (mais uma vez) toda a sua destreza fonética, jogos de palavras mirabolantes e rimas inteligentes.
– Miguel Santos
[TOBE NWIGWE] “FYE FYE” ft. FAT NWIGWE
É de Houston, Texas, lugar que fica bem no centro “daquela” América, mas de onde têm saído muitos talentos hip hop. Chama-se Tobe Nwigwe, incorpora a dor e o fardo que a cor de pele lhe impôs nas suas rimas, mas não consegue deixar de transmitir luz, positividade, foco no futuro. O fardo é pesado, ele sabe disso, mas o seu arcaboiço – humano e artístico – permitem-lhe carregar com ele. “Fye Fye”, tema que Tobe reparte com a mulher, Fat, é disso mesmo um agudo exemplo.
“Look, dawg, I’m extra unique, my whole aura scream talent
I’ve been listenin’ to Fela, Griselda, and Marvin Winans just to make sure I’m balanced
I’m from the west, yeah, half of my partners is savage
The other half made it out the mud, but the taste of sludge didn’t alter they palate, uh”
Uh? Beat com grave de trovão e entrega de quem não acredita que haja outra forma de estar na música que não a que implica sempre que se carregue naquele botão vermelho que tem por baixo a legenda “dar o máximo”. Queixem-se lá outra vez da vossa vida depois de ouvirem isto, vá…
– Rui Miguel Abreu