As possibilidades são infinitas quando se salta de ano no calendário e se começa a colocar em perspectiva tudo aquilo que 365 dias nos pode dar em termos de música. Na primeira #ReBPlaylist de 2023, é fácil perceber que Janeiro foi o arranque mais generoso que podíamos pedir, apanhando já com a edição de alguns dos discos que podem muito bem vir a tornar-se verdadeiros marcos lá mais para o final do ano, quando chegar a altura de voltar a pesar numa balança tudo o que se lançou nos últimos 12 meses.
Sem mais demoras, eis as primeiras nove faixas dignas de destaque por parte da nossa redacção:
[Nyokabi Kariuki] “Nazama”
Queniana radicada nos Estados Unidos, Nyokabi Kariuki assinou duas das peças mais bonitas do ano passado: o LP de estreia, uma mistura entre composição clássica com apontamentos noise e field recording onde sobrepõe a sua voz suave, delicada e impecavelmente controlada (e por vezes manipulada); e uma mixtape de peças improvisadas ao piano, gravadas num formato lo-fi e onde a sua voz surge como instrumento de suporte. Para 2023, Kariuki prepara o álbum que gravou durante uma temporada em que padecia de COVID-19 e que se chamará FEELING BODY. É de lá que é retirado o single “Nazama”, palavra que na língua swahili quer dizer “afundar”. Entre sons filtrados por uma massa de água, uma maré de vozes e um violino, a peça faz jus ao título e envolve-nos numa bela letargia.
— André Forte
[Lil Yachty] “IVE OFFICIALLY LOST ViSiON!!!!”
Mais inesperado muitos poucos podiam prever. Há poucas guinadas drásticas no mundo musical que conseguiram atingir o nível que Lil Yachty conseguiu no seu último disco – um nível de brio, esforço e execução que se refletem perfeitamente em “IVE OFFICIALLY LOST ViSiON!!!!”, que é uma das faixas de destaque nesta epopeia que atravessa o rock psicadélico, envolta num experimentalismo que puxa detalhes de r&b nos vocais, pormenores de baladas pop nos crescendos e nos clímaxes e ainda temas industriais e de noise no seu conceito, cobertos com uma ambição para concretizar irrepreensivelmente uma ideia sónica incrivelmente bem estruturada.
— Leonardo Pereira
[Dispirited Spirits] “Former Living Thing”
De Faro, chega-nos neste primeiro mês de 2023 a primeira pista para onde aponta a trajetória
de The Redshift Blues, o próximo longa-duração de Dispirited Spirits, projeto musical liderado pelo jovem Indigo Dias.
Para o sucessor de Fragments of a Dying Star (disco de estreia bem sólido lançado em 2021, onde se amalgamaram canções de space rock com rock alternativo deprimente estilo Car Seat Headrest), Dispirited Spirits propõe-se a transcender “o espaço-tempo” e “géneros musicais”. É esse o motto por trás de The Redshift Blues e, por consequência, também por trás de “Former Living Thing”.
Para o primeiro avanço do seu segundo disco, a receita entregue por Indigo Dias é uma de vários condimentos: paisagens jazzísticas, junção de estilos a lembrar uns glass beach, uma estrutura amorfa à la art rock que culmina num refrão (singular) que é pura catarse emocional a vir do emo. No final, fica a sensação de que “Former Living Thing” foi um pequeno aperitivo, mas daqueles gourmet, em que apesar da pouca quantidade, se obtém grande satisfação. Para conhecermos a ceia inteira, temos de esperar ainda até ao próximo mês de março, altura em que a totalidade de The Redshift Blues será dada a conhecer.
— Miguel Rocha
[Fred & Regina Guimarães] “Fuligem”
Quis a vida, nas suas intenções e acasos, que a música de Fred se encontrasse com a poesia de Regina Guimarães. Encontro improvável, quiçá, se não escutássemos verdadeiramente a forma como o músico e a poeta têm procurado, intensa e delicadamente, converter a arte em vida e transformar a vida em arte. Que agora os seus caminhos se cruzem parece-nos óbvio e natural, como se de diferentes pontos cardeais tivessem partido, perdendo-se nos encontros e desencontros que os trouxeram aqui. Mãos No Fogo é o resultado deste diálogo inesperado e inevitável: um disco que se faz vínculo, faixa a faixa, poema a poema, desafiando o nosso tempo, o nosso ritmo, os nossos mundos. Fred teve a generosidade da escuta, descobrindo Regina e descobrindo-se com ela. Regina teve a bondade da confiança, oferecendo a sua voz e a sua poesia a quem dela se quis apropriar. O resultado é uma paisagem sonora de extrema sensibilidade, onde a música ampara o texto, num registo de contenção segura e libertadora, respeitante ao som e ao silêncio. Uma paisagem que nos convida à respiração: espaço-tempo para sentir e para ser, aqui e agora, neste mundo onde “as sombras passam-nos rasteiras” e em que “tropeçar na sombra, é nosso saber, a cada queda renovado”. Se “verdadeiro é tudo quanto muda”, precipitemos também os sinais de mudança. E se o amor nos encontra no fim, ele definidamente está a passar por aqui.
— João Mineiro
[Kali Uchis] “I Wish You Roses”
Não é ao acaso que muitas vezes o amor se associa a rosas; pelo gesto ternurento de as oferecer à cara-metade, ou pelos espinhos, que simbolizam o lado mais negro e selvagem de tudo o que há de mais belo, esta flor muito representa, desempenhando o seu melhor papel ao substituir um “desculpa”, “tenho saudades” ou um “simples” “gosto de ti”, quando falta a voz ou a coragem a quem as arranca.
E numa exímia junção de todos os significados, chega-nos pela doce voz de Kali Uchis, “I Wish You Roses”, uma profunda canção onde baixa a guarda perante alguma lembrança corrosiva que possa ter ficado após uma relação falhada e a transforma em algo ternurento, em jeito de carta aberta a quem já fez todo um jardim florescer em si, outrora.
Longe de ser uma novata no que toca a purgar os males do coração, esta é uma das primeiras músicas que avança depois de Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios), demónios esses que também a levaram a escrever “Dead to Me”, previamente, para o seu álbum Isolation — um hino passivo-agressivo, vindo de alguém farto e pronto para bloquear quem ousou perturbar a sua paz, em prol de conseguir ultrapassar e seguir com a sua vida. Agora, apresentando-se plena e carregando a aura de quem teve tempo para sarar, apela, desarmada, com a interjeição: “são rosas, senhor! são rosas!” e deixa cair do peito esta bonita confissão em forma de música, vinda de quem, sem arrependimento de ter amado, concede a bênção de desejar o melhor a alguém que deixou para trás, sem rancor, ódio ou mágoa.
Com a energia de Divine Feminine sempre presente, seja no seu videoclipe repleto de flores, na letra da música ou na melodia digna de um romance de cinema, a autora de “¡aquí yo mando!” vem deixar a limpo que não há maior atitude de bad bitch do que perdoar — mesmo que doa — e dar a alguém as suas flores, enquanto ainda aqui se anda e há espaço para o perdão consumado, como se pode ver pelos versos: “I wish you roses / while you can still smell them”. Porque afinal de contas, depois da vida, de pouco vale esse tipo de oferenda, lembrando as palavras assertivas do nosso ilustre Fausto: “Quando eu morrer, não me deem rosas”. E embora todas as flores acabem por murchar, com os inevitáveis efeitos da passagem do tempo, a mensagem por elas carregada perdura, ressoando no mantra: “just know any love I gave you / is forever yours to keep”, que enaltece a coragem que reside no ato de “libertar”, com amor, alguém que já nos foi tanto, sabendo que permanecerá para sempre na nossa memória.
No limbo que se instala entre a indiferença e a fina linha que separa o amor do ódio, Kali Uchis conseguiu semear algo que brotou em entendimento e perdão, deixando a lágrima no canto do olho de qualquer pessoa que já tenha passado pelas trincheiras que são um final menos feliz de uma relação e lembrando que algo mais bonito do que rosas, são as palavras de quem nos deseja bem.
— Beatriz Freitas
[Wesley Joseph] “HIATUS”
Na carreira de Wesley Joseph, hiato não existe. É portanto curioso que tenha sido essa a palavra que dá nome ao seu mais recente single. “HIATUS” abre 2023 pronto para nos ajudar a não desistir das resoluções que teimam em ser esquecidas algumas semanas depois das passas.
Somos recebidos por um chiar que vem e volta e por barras que entram a matar, com toda a arrogância de quem já tem provas dadas. Segue-se uma batida pouco carregada, que dá espaço para o solilóquio empático sobre tempos passados. O instrumental adensa-se, um mar de sintetizadores abraçam o refrão de sangue-frio, e a aula de literatura prossegue com uma anáfora muito bem conseguida.
Wesley Joseph usa essa repetição para falar consigo mesmo, uma ponderação de onde estava e onde está, com um timbre que soa mais esperançoso, mais triunfal. Depois de sermos engolfados por mais um refrão de sintetizadores imperiais e um frenesim de guitarra, o outro esvoaça até ao final da música, piano e voz unidos a fechar (mais) um grande tema do artista britânico. E agora só nos resta esfregarmos as mãos até 17 de Fevereiro, dia em que edita o seu próximo GLOW.
— Miguel Santos
[Joey Bada$$] “UMI Says”
A passagem de Yasiin Bey — já despido da pele de Mos Def — por Lisboa, no terceiro dia da última edição do Festival Iminente, em Setembro de 2022, desiludiu uma boa parte dos fãs do autor do clássico Black On Both Sides. Desde o alinhamento à performance, passando pela diferente roupagem dada a temas incontornáveis — e imutáveis, para muitos — na discografia do rapper norte-americano, as mais altas expectativas viram-se defraudadas (não deste lado, sublinhe-se) em vários dos espectadores no final do concerto. “UMI Says” foi um desses momentos em que, para os ouvintes inconformados, o artista pecou pela inventividade aplicada na hora. Quando a música se torna património cultural, o próprio autor fica, por vezes, refém da sua criação. Tanto que a abordagem de Joey Bada$$ ao célebre tema, numa actuação promovida pela estação de rádio triple j no âmbito do segmento Like A Version, foi ao encontro, o mais fielmente tanto quanto possível, da versão original. Se Yasiin pecou pela imaginação, Jo-Vaughn primou pela interpretação que ofereceu com assinalável propriedade sobre uma canção intransmissível. Mérito, também, para toda a (incrível!) banda que o acompanhou do início ao fim, cujo groove imposto elevou a prestação do Badmon — qual anfitrião em sede própria — a níveis deslumbrantes. Entre “moves like Jagger”, Presley ou Charles, o rapper de Brooklyn, Nova Iorque, transfigurou-se num carismático cantor soul intemporal e transformou o estúdio numa qualquer emblemática sala de espetáculos durante os oito minutos em que se dedicou de corpo e alma à canção que escolheu interpretar. Tal como reza no primeiro verso da mesma.
— Paulo Pena
[VLUDO] “Vírgulas e Túneis”
Primeiro que tudo, relembrar o “Fardo” de Blasph: “flow tem pele de pêssego, nova textura” é o pontapé de saída ideal para nos relembrar que o rap aveludado não é novidade do ano novo, mas sim garantia deixada desde 2017 pelo rapper almadense no seu último trabalho a solo. É sob essa premissa que desliza e finta, sílaba atrás de sílaba, os primeiros momentos desta faixa, num exercício lírico no qual o rewind é praticamente indispensável, tal a densidade e o wordplay do dilúvio de Frankie D.
A espera, essa era muita, já que este projeto colaborativo entre Blasph e Sam The Kid está nas sombras há alguns anos e começa agora a perfilar-se como um dos discos mais antecipados de 2023, com este primeiro avanço. Dono da braçadeira, nem a lesão na perna direita, conforme podemos ver neste videoclipe de excelência de Sebastião Santana, o impedem de deixar toda a gente de olhos tortos com as suas vírgulas e túneis, com a confiança de quem tem as costas quentes, bem suportado por um produtor a vestir a pele de um trinco discreto mas de requinte mundial, como é Sam The Kid.
De Chelas, a única ideia pré-concebida que paira na cabeça de qualquer hip hop head é o toque de Midas de Samuel na MPC, e o instrumental deste primeiro single do duo VLUDO é mais uma das incontáveis provas que alimentam isso. Uma produção majestosa e ao nível de poucos, que lê na perfeição o rap de Blasph, estabelecendo uma simbiose muito interessante entre este par, que tem uma química “doutras leagues” e ainda vai dar muitas felicidades aos seus “adeptos”. Que a espera por DEDOS FINOS seja curta, pelo menos assim o esperamos.
— Carlos Almeida
[slowthai] “Selfish”
Dá para ver que slowthai andou fazer ajustes à forma como cria e entrega a sua música. “Selfish” foi o single que o artista de Northampton escolheu para abrir o caminho rumo a UGLY [U Gotta Love Yourself], um disco que, ao que tudo indica, tem uma abordagem muito mais virada para o punk rock, fórmula que tinha ensaiado numa fase ainda prematura da sua carreira através de “Doorman“. Agora mais maduro e com um maior grau de certeza quanto ao próximo passo a dar, Tyron Frampton segue em direcção àquele que será um dos dias mais felizes da sua vida, 3 de Março, data para a qual está a ser apontada a edição do seu terceiro álbum, em que goza de uma liberdade musical imensa para explorar o que realmente lhe dá na gana. Mas antes desse dia chegar, slowthai vai proporcionar a Best Night Of Your Life ao público do Reino Unido, uma mini-digressão de seis concertos intimistas para apresentar UGLY antecipadamente no circuito dos pubs. Num breve comunicado, o rapper mostrou-se contente por poder tornar a sua música mais acessível ao fãs que tem no Reino Unido, naquela que é uma das alturas economicamente mais complicadas para os ingleses, anunciando que os bilhetes para esses espectáculos custarão apenas uma libra.
— Gonçalo Oliveira