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Publicado a: 12/05/2018

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[TEXTO] Manuel Rodrigues

Isolation, o primeiro trabalho de longa-duração da norte-americana Kali Uchis, é uma autêntica salada de géneros musicais, bem organizada do ponto de vista estético e rica nos nutrientes que a compõem. Aquilo que numa primeira instância sugere uma vontade de agradar a gregos e troianos, através da tentativa de ramificar ao máximo a caminhada proposta, é, na verdade, o espelho de alguém que insiste em diversificar a sua obra, não se limitando apenas a um quadro monocromático.

Karly-Marina Loaiza desenvolveu desde cedo a sua paixão pela escrita, mais precisamente pela poesia. Nasceu nos arredores de Washington e é filha de pais colombianos, radicados nos Estados Unidos depois de terem fugido aos confrontos do seu pais no início dos anos 90. Não é por isso de estranhar que algumas das suas músicas, como serve de exemplo “Miami”, que conta com a participação da rapper BIA, transportem nas letras alusões ao mundo da droga. O recurso a Miami é óbvio, por ter sido uma das cidades norte-americanas que mais sofreu com tal problemática, nos anos 70 e 80. Em “Tyrant”, onde podemos ouvir também a belíssima voz de Jorja Smith, talvez uma das maiores coqueluches do r&b contemporâneo, a história repete-se numa metáfora com a fuga de El Chapo, narcotraficante mexicano.

 



Todavia, não é só em torno desta temática que Isolation se expressa. “Body Language”, o tema que abre o disco, numa toada bossa nova, é um exímio exercício de sedução. Sexy, atraente, no limiar da provocação. Um excelente aperitivo para canções como “Just a Stranger”, onde a anfitriã veste o papel de uma gold digger (o refrão “she wants my hundred dollar bills, she don’t want love” não podia ser mais esclarecedor) e “Tyrant” que, apesar da metáfora anteriormente mencionada, é um jogo amoroso de opressor-oprimido (a tirada “boy, you’re driving me crazy, although i say nothing can phase me”, de Jorja Smith, derrete até a mais inerte pedra da calçada).

No seguimento de vários desentendimentos em casa, mais precisamente com o seu pai, Kali Uchis viu-se, com apenas 17 anos, obrigada a fazer as malas e a seguir caminho sozinha. Viveu algum tempo no parque de estacionamento de uma área de serviço, no interior do seu Subaru Forester. Nesse mesmo local, onde certamente experienciou as mais diversas sensações, Uchis escreveu “Killer”, uma reflexão em torno de uma relação amorosa de cinco anos pouco saudável.

 



Ainda que não esteja directamente relacionada, “After the Storm” é a canção que melhor se encaixará nessa fase mais turbulenta da sua vida. A frase “look both ways before you cross my mind”, da autoria de George Clinton (inicialmente presente em “Wesley’s Theory”, de Kendrick Lamar), utilizada nos primeiros segundos do tema,  assume facilmente o papel de dedicatória para quem insiste em intrometer-se na vida dos outros, com constantes interpretações dos actos e comportamentos alheios (quando começou as suas primeiras passadas na música, aos 18 anos, uma boa parte da sua família pensou que a artista andava, na verdade, a prostituir-se para ganhar a vida). Para além de ser a melhor música do seu álbum de estreia, “After the Storm”, que pede também rimas emprestadas a Tyler, The Creator, poderá ser também a que maior simbolismo tem para Kali Uchis.

Nem tudo é perfeito em Isolation. Existe, no preciso momento em que o trabalho passa para a sua segunda metade, um precipício gigantesco que, não comprometendo o álbum na sua totalidade, acaba por ser uma lomba desconfortável num trajecto linear e de agradável audição. “Nuestro Planeta” é uma canção padronizada que tenta ao máximo aproximar-se das fórmulas preconcebidas para a dança de proximidade. Não chega a ser uma “One Dance” (apesar de Reykon, o rapper convidado, tentar desesperadamente seguir as pisadas de Drake) e está a anos de luz das restantes conexões do género. É uma carta que podia facilmente ser excluída deste baralho.

Em Isolation, Kali Uchis não apalpa terreno. Procura, isso sim, construir os pilares para uma carreira que – apesar de cimentada por influencias que vão de Janet Janet Jackson a Kelis e de Lauryn Hill a M.I.A. – tenta ao máximo encontrar um trajecto próprio. E diga-se que já tem aqui muito do seu ADN envolvido. Personalizar e diversificar: estas parecem ser as palavras chave de Kali Uchis.

 


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