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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 22/04/2022

Acelera. Desacelera. E repete.

Pedro Alves Sousa: “No fim do dia, não há uma diferença assim tão grande entre o Charlie Parker e o DJ Screw”

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 22/04/2022

A conversa com o saxofonista Pedro Alves Sousa aconteceu no café dos artistas do CCB, espaço nos bastidores a que o público não tem acesso, mas que em dia de festival Rescaldo funcionava como uma espécie de base informal em que se cruzavam os vários agentes provocadores programados para o evento. O concerto que se seguiu foi intenso e, muito sinceramente, muito mais fácil de descodificar depois da conversa que a seguir se reproduz.

Má Estrela, projecto pensado e montado pelo saxofonista, saiu pela Shhpuma há algumas semanas, cristalizando com essa edição as intenções exploratórias de Alves Sousa. No disco, o “elenco” é um pouco diferente daquele que nos foi dado a ver no pequeno auditório do CCB: além de Pedro Alves Sousa no saxofone e de Bruno Silva e Simão Simões nas electrónicas, no registo que resultou de uma apresentação na galeria Zé dos Bois, em Lisboa, constam ainda as contribuições de Miguel Abras, no baixo, e de Gabriel Ferrandini, na bateria, elementos importantes na chegada a um som que cruza fronteiras temporais e estilísticas e onde a força da música livre se combina com a experimentação apreendida em alguns dos mais avançados registos de afrofuturismo electrónico.

E tudo isto, como não podia deixar de ser, resultado de pensamento em acção e de uma colecção de referências que podem ser inesperadas, mas que têm a tradução certa quando aplicadas a uma intenção. Pedro Alves Susa sabe muito bem o que faz. E o que diz.

A próxima aparição desta Má Estrela é já esta noite, nas Damas, em Lisboa…



Podes começar por me contar como é que isto nasce? Porque é que é uma Má Estrela e não é uma Boa Estrela? É porque depois de ouvir eu fico com dúvidas que tenha uma má vibe….

Isso…

Ok, já lá vamos. 

É uma longa história o Má Estrela em si. Isto partiu… acho que as primeiras ideias que eu comecei a ter em relação a isto foi numa altura em que eu andava a tocar imenso com o David Maranha, na realidade. Em que comecei a magicar mais ou menos, na minha cabeça, o que é que eu queria com a sonoridade deste projecto. A estética no geral. E isso foi uma altura em que eu andava a tocar imenso com o David, e estávamos a fazer cruzamento de sinais, ou seja, eu dava-lhe parte do meu som, ele dava-me parte do som dele, e nós processávamos em tempo real o som de cada um, e ao mesmo tempo fazíamos música com isso. E isso deu resultados bastante interessantes. Houve um concerto uma vez que eu tive assim um vislumbre de uma coisa que eu queria fazer para a frente…

Isso é interessante, desculpa interromper-te. Normalmente o discurso é: há esta, esta, esta e esta pessoa com quem eu quero trabalhar, vamos ver que som conseguimos gerar. Tu tinhas um som na cabeça antes de ires ter com as pessoas. 

Sim. E a banda foi montada nesse sentido. No sentido em que…

Tu fizeste um casting para o teu filme...

De certa maneira, ya. Completamente. Claro que havia coisas ténues, não é, se vamos ser 100% honestos, eu sabia que havia estéticas, que havia coisas, que havia cenas delimitadas que eu pretendia disto, mas não tinha um tema escrito, por exemplo. Era só: tenho directivas, tenho ideias…

Intenções.

Intenções. Tinha 350 mil referências e eu comecei a pensar: “ok, eu sei que vou precisar de x pessoas para isto, e vou precisar de uma secção rítmica…”. Tenho os meus amigos, as pessoas com quem eu já trabalho há muitos anos, em quem confio e sei que posso puxar por elas neste ou naquele sentido. A pessoa mais óbvia disto tudo para mim, primeiro que todos, foi o Bruno Silva. Ele também pesca muito desta sonoridade. Temos muita coisa em comum, o nosso amor por jungle, por exemplo, é um dos pontos de partida disto. E o Simão [Simões] também foi um bocado no mesmo sentido, mas a ir buscar outra face da mesma moeda. 

Então, tens que mapear esse mundo, porque já fizeste várias referências a isso. Tu tinhas uma ideia concreta na cabeça: que ideia é essa e que universo é esse que tu querias explorar com estas pessoas?

A ideia proveio desse concerto que eu tive com o David que tinha a ver com ideias minhas sobre música muito baseada em bass, música baseada numa espécie de onda. O álbum, principalmente a primeira música, tem muito disso. Uma coisa que vai para a frente e para trás e avança e recua e acelera e desacelera. E a partir daí eu comecei a… eu sou muito viciado em certas coisas como DJ Screw, etc., e eu comecei a misturar isso com as coisas que estava a ouvir e as coisas que me estavam a puxar nessa altura. O DJ Screw, nesse aspecto, é um óptimo exemplo, porque aquilo é um bocado de tudo para mim. Tem a cena drone, tem a cena slow cooking, aquela sonoridade super mellow, super puxada para baixo, tipo destruído quase. Portanto, puxa aquilo tanto para baixo que aquilo fica tudo crackling. E depois ele tem muita coisa já remisturada de dub, também, e de música mais reggae que tu ouves aquilo e é uma sonoridade inacreditável. 

Curioso que estejas a mencionar o Screw como referência para isto. 

É uma das minhas referências grandes. Eu adoro-o. É um dos meus artistas favoritos. 

O que é que te fascina nele? O que eu sinto nele é que há uma fuga à realidade através desse desmontar para baixo da velocidade da realidade quase como ele se estivesse a desligar de tudo

É, aquilo é um mundo próprio. Ouvires os mixes deles, que são várias centenas, aquilo cada um deles é um mood, cada um deles é uma festa própria. Às vezes não era uma festa, que eles estavam bem deprimidos quando gravavam aquilo. Mas tudo tem a ver com isso: uma manifestação de um mundo. E não só isso: a música de DJ Screw, por exemplo, soa exactamente às drogas que eles tomavam [risos]. Eu acho isso inacreditável. Foi o quê? Já nem sabes se foi a codeína que puxou aquela estética, se foi aquela estética que puxou a codeína…

Tens noção de que deves ser para aí a primeira pessoa do mundo a falar de DJ Screw enquanto usa gravata?

Não pode ser [risos]. 

Não consigo imaginar outra pessoa assim [risos].

Eu gosto muito dele. Eu acho que ele era um artista muito completo. Ele está para mim como o Charlie Parker estava para o bebop e para o saxofone alto. É a mesma coisa. Era um génio, era um gajo que seguiu a cena de “live fast, die young”, aquilo consumiu-se tudo muita depressa, ele trabalhou, trabalhou e trabalhou, tem um output de trabalho gigante em 10 anos. E de repente morreu. 

Ainda por cima rima: codeína com heroína. Screw e Parker. 

É verdade. Aliás, há uma entrevista, uma semana antes do Screw morrer, e ele estava… parecia que enfiavas um alfinete e ele ia rebentar. Ele mal respirava. A suar em bica… Aquilo foi intenso. Só que aquilo era muita real, era muito verdadeiro, e sente-se. Em tudo. E depois não é só isso: como gosto de drone, noise, da estética de tape music, gosto de graves… e ele tem isso tudo. E ainda tem essa cena depois de ter inventado um estilo próprio com a cena do chopped, não é só a cena desacelerada…

Exacto: não é só o screwed, é o chopped também. 

E ele cria músicas com isso. Tu ouves certas músicas dele e depois vais ouvir a original e aquilo não tem nada a ver. E isso para mim foi uma ganda lição. Saber que era possível… Não és só um DJ, no caso do DJ Screw, ele é mesmo um inventor. É um esteta. 

Tu mencionas Screw e Charlie Parker na mesma frase. Tu vês isto tudo como parte de uma mesma cultura em que tu estás a beber? 

Eu não sei se faço parte dela, mas vejo tudo como parte da mesma coisa, sim. Eu diria que, no fim do dia, não há uma diferença assim tão grande entre o Charlie Parker e o DJ Screw. 

Isso é impressionante.

Não viveram na mesma altura, estavam a fazer manifestações artísticas ligeiramente diferentes, obviamente.

Com ferramentas diferentes.

Instrumentos diferentes. E podemos dizer que o output musical era diferente, mas eles tinham…

Vinham do mesmo lugar, não é?

Eu diria que sim. A motivação e o que os puxava para aquilo parece que é a mesma coisa. E os métodos não eram assim tão diferentes: eram ambos workaholic. Muito misturado com o lifestyle. Tu não consegues separar o Charlie Parker dos hábitos dele, da heroína, das idas às prostituas, das bebedeiras, disso tudo. A mesma coisa com o Screw. Tu não consegues separar a música dele daquilo que ele sofreu, dos bairros em que vivia, de todos eles estarem a morrer em tiroteios, da polícia, dos gangsters… 

Nada mudou na América. 

Não, não mudou muito. Aliás, é uma das cenas que se sente muito no Screw é não só essa intemporalidade, mas o desespero daquilo não mudar. Sente-se imenso na música dele. Ele reclama muito isso. 

Tu sentes isso tudo no momento formativo deste projecto. Transmites isso aos teus companheiros?

Sim, a ideia foi essa. Quando eu decidi começar a montar a banda, baseado nestas coisas, depois de ter tido o concerto com o David Maranha, eu pedi à Smup para ir fazer uma residência para lá. E estive lá duas ou três semanas a gravar, para mim, cada instrumento à parte. Gravava coisas de bateria, mais ou menos electrónicas, montava isto na minha cabeça, via se isto funcionava, comecei a gravar loops, a gravar coisas de orgão, etc., pedi a um amigo meu para gravar umas linhas de baixo, pus por cima, etc., e comecei a montar estas cenas e de repente está tipo, “epá, isto é demais. É um bocado overwhelming eu tentar fazer desta maneira e acho que assim não vou lá”. Aí é que decidi: “vou montar uma banda e isto vai ser feito com amigos que eu tenha confiança total e que possa explicar-lhes e eles vão compreender e nós vamos trabalhar neste sentido”. 

Fala-me um bocadinho sobre essa dinâmica. Lembro-me de há muitos anos ler o DJ Shadow a dizer: “para mim o dia em que eu decido acordar de manhã e meter-me no carro e dirigir 200 quilómetros para ir a uma loja de discos específica já estou a compor”. O processo faz parte do resultado, não há diferença. Como é que é esse processo de começar a pensar quem é que vai encaixar-se nesta ideia?

Havia certas sonoridades, por exemplo, baseadas não só no DJ Screw como nas cenas da música jungle, por exemplo, que foi uma coisa a que isto também vai beber. E à música footwork. E eu sabia que se começasse por aí e se tivesse o Bruno e o Simão para me ajudar já ia ter um bom ponto de partida. E eu tenho trabalhado muito com o Simão nos últimos dois anos, com o Bruno também já trabalho há muitos anos. E o Bruno tem o projecto Serpente, que foi muito baseado também neste tipo de sonoridades, e nós tivemos muito tempo a falar, eu já lhe tinha falado disto antes sequer da banda ter sido montada. A dizer que queria fazer uma coisa baseada em dub, nos beats do jungle, e como é que ia misturar isto tudo. E depois ficou muito tempo a amadurecer na cabeça…



Esse processo acontece em quê? Jantares?

Jantares, conversas, copos na noite. Estarmos num estúdio a fazer coisas. Entre estarmos aqui agora para apresentar este álbum e o primeiro momento em que eu comecei a pensar nisto já lá vão para aí três anos. Isto só acelerou no último ano porque tive uma encomenda do Rui Eduardo Paes para o Jazz no Parque e aí deu-me carta branca e eu pensei, “pronto, é a oportunidade”. Na altura, eu depois também estava a pensar o que é que eu ia fazer em relação ao resto, porque eu sabia que não queria fazer uma banda só com dois laptops, que ia ficar laptop music, e uma das maneiras de solucionar isto foi pegar numa secção rítmica real. E aí fui buscar o Gabriel [Ferrandini], que é um companheiro de longa data, e que eu confio nele para estas coisas.

E que é um disruptor, não é? [risos]

Exactamente. E é isso que também é bom, porque se eu tivesse uma coisa que fosse 100% metronómica certa não é por aí que a banda ia ganhar. Nós não íamos beneficiar 100% disso. Ia ficar uma coisa mais quadrada e eu preciso também que alguém me puxe o tapete debaixo dos pés de vez em quando. 

O Gabriel nem sequer reconhece que existe um tapete [risos]. 

Às vezes o tapete não está lá, é só na nossa cabeça, mas nós fazemos isso muito um ao outro. Peter Gabriel Duo às vezes é literalmente só nós a puxarmos o tapete um ao outro o tempo todo. Estamos sempre a ver quem prega mais rasteiras um ao outro. Então, isso de pregar rasteiras com 100% de confiança é muito fixe. Porque, lá está, tens uma pessoa que vai sempre trazer um bocadinho de caos para cima da mesa, um bocadinho de pimenta, e isso é bom. E depois decidi juntar o Miguel Abras com o mesmo propósito. Sabendo perfeitamente que isto não tem muito a ver com o mundo dele, mas que isso poderia ser bom tanto para mim como para ele.

Já não sei qual é o mundo do Abras, na verdade. 

É um mundo que não tem 100% a ver com aquele, mas ao mesmo tempo tem porque o Abras ajudou a definir a sonoridade. E eu acho que no fim do dia nós acabámos por definir isto tudo em conjunto. Da maneira que isto aconteceu foi: ok, eu escolhi as pessoas, era suposto ser com o Peter Evans, o Peter Evans não pôde, então isto ficou um quinteto imediatamente. Sempre imaginei isto com secções de sopro a acontecer. Sempre idealizei a coisa assim. De ter trompetes e trombones e termos assim linhas mais ou menos escritas.

Porque é que tu imaginavas isso? Eram vozes na tua cabeça?

Mais ou menos. E era uma maneira de sequenciar ideias mais concretas do mundo do reggae e do mundo do dub. E de orquestrar um bocadinho mais a coisa. E a ideia original era essa, mas como o Peter Evans não pôde participar no primeiro concerto e eu tive que admitir que não ia haver. Comecei a pensar para mim, “ok, tenho que ser pragmático, estamos com pouco tempo e poucas oportunidades de ensaiar, isto não está a ser 100% fácil, por isso vamos fazer isto em quinteto”. E a música acabou por mudar um bocadinho em relação a isso, como é óbvio. Mas originalmente era essa a ideia, ter aquelas secções assim mais tipo Black Ark Experryments do Lee Scratch, por exemplo, que aquilo é quase desafinar, parece que eles foram buscar um sample que não tinha nada a ver com as bases… eu adoro aquilo, aquilo é meio podre. O Black Ark Experryments foi uma grande influência para isto. Eu simplesmente tive que make to com o que havia. O passo seguinte disto foi: nós tivemos refeições juntos, foram todos almoçar a minha casa e assim, e eu fiz uma selecção de música.

Adoro a expressão “tivemos refeições juntos”.

São os almoços de trabalho. Então, basicamente o que fizemos nisso foi: eu apresentei uma secção gigante de músicas, disse a cada um o que é que eu queria em relação à estética e ao que se estava a passar naquela música. Tipo, “olha, ouve o baixo que está a ser tocado nesta música, eu não preciso concretamente desta linha de baixo, mas preciso de uma coisa que pega nesta presença”.

Ou seja, o teu trabalho composicional também foi mais ao nível conceptual do que delinear na pauta o que é que cada um tem que fazer. 

100%. Depois, para os primeiros concertos que tivemos e mesmo para o álbum, que veio de um concerto, houve muita cena não só conceptual, mas quase escrita em termos de estrutura em que eu tive coisas muito concretas que queria, ou seja, entradas específicas de baixo e de saxofone, por exemplo, onde nós estávamos a fazer espécies de cadências que eram importantes para estabelecer um mood. Muitos dos ensaios eram só isso, só nós a tentar tocar uma coisa que não era muito natural e a tentarmos descobrir a musicalidade naquilo para tentar ajudar a meter esse mood na banda. Então, muitas vezes, as minhas composições tinham a ver com estética ou com ideias rítmicas. Lá está, de acelerar, desacelerar, e eu dava-lhes desenhos rítmicos. Eram coisas mais simples. “Não toques muitas notas, toca três notas durante este tempo”. Era mais por aí e depois dava liberdade para tudo no fim do dia. O Abras foi um caso muito concreto, é um bom exemplo porque foi, se calhar, a pessoa em que mais delimitei o que ele podia fazer. “Ok, Abras, eu não quero que estejas a fazer distorções, eu não quero que estejas a solar, eu preciso de coisas muito concretas, de estares mais ou menos a manter, ou seja, uma espécie de ritmo cardíaco da banda, mas ao mesmo tempo que fazes isso eu preciso de ter a confiança que tu a qualquer momento podes destruir aquilo ou voltar para aquilo”. E chegar a este sítio — parece parvo e parece simples dizer estas coisas –, mas chegarmos lá e termos este entendimento isso é que é o grande desafio. 

Olha, isto foi o cenário conceptual que tu desenhaste, mas depois em concreto o que eu ouvi foi gravado como e onde? 

Foi gravado na Galeria Zé dos Bois. O álbum é o concerto da ZDB com uns edits. Eu cortei o concerto em músicas, editei para aquilo ficar em formato música, ou seja, fazer as passagens. 99% é o gig. Portanto, quem viu aquilo na ZDB e ouviu o CD vai perceber que é mais ou menos a mesma coisa. Só que depois tem uns edits, obviamente, uns edits de coisas estéticas que eu fiz para bem do álbum. Fazer uma introdução aqui ou ali, limar uma coisa no início. A coisa mais editada, nesse aspecto, é a primeira música. Mas no fim do dia, aquilo é o concerto.

Qual é o sentido que faz isso? Tu estás a decidir libertar uma polaroid de um filme que continua a evoluir, não é? O que é que tu ouviste naquela gravação que te fez pensar “não, isto merece ser emoldurado”?

Bom, foi a minha satisfação de ouvir aquilo e perceber que estávamos muita próximos daquilo que eu queria. Se é que não é “aquilo”. Foi sentir que, uau, ao fim de tanto trabalho, de tanto caos, de tanta loucura, a ideia era aquela. Isso foi uma das cenas. A outra foi eu estar a ouvir aquilo e sentir que nunca tinha ouvido aquilo antes. Eu nunca tinha ouvido esta música antes. Isso para mim foi importante. 

Ou seja, eu quero deixar isto fixado num suporte qualquer porque nunca ouvi isto antes. 

Ajudou a cristalizar o que é que é a ideia da banda. Se eu não tivesse lançado aquilo, a ideia da banda era mais ténue. E nós todos gravámos e tocámos aquilo, mas eu já mandei vir o CD para o resto da banda para eles ouvirem. 

E respostas?

Eles adoraram. A cena engraçada é essa: eles gravaram, tocaram aquilo comigo e, de repente, “tomem, está aqui o CD”. E eles ficam a ouvir aquilo. Por exemplo, a resposta do Gabriel foi, “isto é completamente insane, no bom sentido”. E é isso, todos nós estamos a espantar-nos… e isso é uma cena fixe de tocarmos música improv: é nós continuamos a conseguir surpreender-nos de uma maneira relativamente rápida. Os resultados estão ali sempre. Fazes uma coisa, a resposta está logo ali, se tu gravares podes ir ouvir e ver o que é que fizeste. Então, nós estamos a ouvir aquilo e percebemos que é tipo, “uau, passou-se aqui algo”. Isso para nós foi muito importante. E foi importante cristalizar essa coisa. E isso vai ajudar para o futuro. Foi uma maneira de pensar a longo prazo também. A partir daí podemos partir para outra ou tentar fazer um bocado mais disso antes que fique boring. Se calhar tentamos gravar um segundo álbum e já é uma seca. Nunca se sabe. A nossa cena foi só: isto agora é interessante, isto está-nos a soar bem, eu já ouvi jungle, já ouvi footwork, já ouvi música improv, oiço saxofones, mas nunca ouvi estas coisas todas juntas e a reagirem desta forma em tempo real umas com as outras.

Olha, tu imaginas um dia alguém estar a ter uma conversa semelhante a esta com um outro artista em que ele que está desse lado a falar, em vez de DJ Screw, no Allen Halloween ou Sam The Kid ou Valete

Ainda hoje estive a ouvir Halloween [risos].

Pronto. Uma das coisas que eu que senti muitas vezes nos anos em que me aproximei desta música e em conversa com as pessoas que constroem este edifício musical era um completo desligamento desse lado. Ouvia as pessoas a falarem de Ornette Coleman ou nas figuras fundacionais da cultura free, os Brötzmanns da vida e tudo isso, mas devo dizer que nunca ouvi ninguém puxar o DJ Screw para a conversa. Daí a minha pergunta: acreditas que uma geração de músicos que venha a seguir possa invocar estas referências mais próximas de nós, como o Halloween? 

Acho que vais sempre encontrar uns maluquinhos assim. Eu vejo até por exemplo… o Simão Simões. Ele tem menos 12 anos do que eu, se não me engano. Ele está com 23 anos neste momento. É um puto. Ele tem uma grande panóplia de referências. O Bruno Silva, mais velho, mas uma pessoa já muito rica nesse mundo de influências há muito tempo. Há sempre assim um mundo de pessoas que vão buscar essas coisas. Mesmo o Gabriel, que vem muito do mundo do jazz, embora cada vez menos esteja nisso, eu conheço-o muito bem, é meu amigo há muitos anos, e vou para casa dele e metade do tempo ele está a ouvir música sacra. Ele é super viciado nisso. Toda a gente tem as suas pancas. Eu sempre me tentei ver como uma pessoa muito ecléctica. Eu sei que toco saxofone e música improvisada, mas eu não oiço assim tanto jazz ou música improvisada. Eu oiço música. Coisas que gosto, coisas que me fazem sentir… adoro música de jogos de computador, por exemplo. Adoro música da Genesis, da Sega Megadrive, da Nintendo, do Gameboy, eu cresci com essas coisas. Música de 8-bits, música de 16-bits. E vai haver sempre esse tipo de pessoas. É inevitável. Se tu gostas, não é por uma casinha ou outra casinha que vamos parar. Nós gostamos da cidade toda. Pelo menos é assim que vejo.

Esta Má Estrela brilha só neste momento ou vai ter consequências no futuro?

Eu espero que tenha consequências. É para brilhar, claro. É estrela ascendente, não é decadente. A ideia é continuar. O que eu mais quero é lançar o CD, tocar o máximo possível enquanto for possível. Pensar já como é que vamos eventualmente fazer outro álbum. Com calma, porque é muito raro nós termos tempo de estúdio. E eu gostava de ter isso. Bora uma semana para um sítio só pensar na música. Pensar em cada sample, que é uma coisa que eu já faço muito com o Simão e com o Bruno. Eu às vezes tenho muitos ensaios com eles em que nós só estamos a ver samples. Eu estou, “olha, esta música de DJ Screw, vamos cortar este synth que aparece aqui aos 10 segundos e vamos usar isto de alguma maneira”. Depois estamos ali, eu e o Simão, a transformar o sample. Ele é muito criativo nisso, começa logo a safar ideias. Eu gostava de ter esse tempo. Para o futuro era isso que eu queria. Mais calma com isso. Nós já fazemos muito isso nós os três, mas ter mais calma e podermos fazer isso com o Gabriel e dizer, “olha, nós vamos escolher estes samples para usares especificamente para esta música”. 

Mas como é que se vive nessa franja da música que não é comercial e que não depende de venda de bilhetes e de números de streaming nem de views no YouTube? Como é que se viabiliza essas ideias que são disruptivas num mundo que só recompensa essa satisfação instantânea?

Eu vou-te ser bastante sincero: a questão da sobrevivência é um problema gigante, é um problema que me tira o sono há muitos anos, mas essencialmente há aqui várias questões, sendo que uma delas é: eu não quero fazer outra coisa e já nem sei se saberia fazer outra coisa. No fim do dia posso ter outro emprego e se calhar não vou fazer mais música e vou só fazer ilustração a partir de agora, mas no fim do dia eu sinto que tenho um output que tenho que mandar e tenho que o mandar de alguma forma e isso é o meu drive. Não é uma coisa fácil, como é óbvio.

Mão é nada fácil ser-se um músico como tu em 2022.

Não. Mas acho que não é fácil ser-se músico em 2022 em geral. A não ser que sejas o Drake, a vida não está muito fixe. Mas fora isso, eu sei que já tenho problemas à priori. Que já levo desvantagens: não é música comercial, não é catchy, não tenho um vocalista, não tenho refrões. Eu estou a tentar transmitir uma ideia de música e de estética que eu posso ver e analisar como a minha obra de artista mas que está a ser definida em tempo real e eu não me posso pôr com ilusões que isso é uma viagem que toda a gente quer participar, percebes? Há pessoal que não é isso que quer da vida, e não é essa a escapatória que eles procuram na música. E não me cabe a mim julgar isso. Eu adorava que isto tivesse mais sucesso, e eu tenho a sorte quando as pessoas aleatórias da vida vão ver os meus concertos. Maior parte das pessoas até fica feliz e agradavelmente surpreendida. Não quer dizer que eles voltem, mas pelo menos não estou a tentar insultar ninguím. Estou só a tentar ser o mais honesto possível. E, sinceramente, eu acho que é a única forma que eu hei-de conseguir que a minha música chegue a algum lado. 


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