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Fotografia: André Príncipe
Publicado a: 30/10/2025

Um legado que perdura.

Paulinho da Viola no Coliseu dos Recreios: “Se lágrima fosse de pedra, eu choraria”

Fotografia: André Príncipe
Publicado a: 30/10/2025

“Se há um tempo de amargura”, poderá nunca mais ser recompensado depois desta passagem, que, espera-se, não seja a última, do Paulinho da Viola por Lisboa, ele que ainda tem data neste dia primeiro de Novembro no Porto. Corra, atropele quem tiver a audácia de se interpor no seu caminho. De preferência, ao contrário do show da capital, que haja um técnico de som que não tenha fumado toda a maconha da Península Ibérica. Os músicos, e o Próprio, estiveram espartanamente deslumbrantes. É Portela, pô.

No alto — elegante, deslumbrante, sedoso, puro — Paulinho continua a cantar como o menino mais bonito deles todos. Ao seu lado esquerdo o filho, na guitarra; a espaços, a filha à direita, na voz em algumas canções.

Show apresentado como sendo de alguns dos êxitos de um dos príncipes-reis do samba, entremeados com algumas músicas pouco tocadas. Ficou claro que o reportório é tão rico, que os favoritos dos amantes da música dele são tão canónicos como os clássicos, que também o são.

Pois que o Paulinho da Viola não é só o Rio de Janeiro, o Carnaval, o samba, mas sim um filósofo e um poeta (e tanto mais). Um verdadeiro e intrínseco salva-vidas; alguém com níveis de empatia que nos faz compreender que a nossa dor não só não é solitária, como é poeticamente compreendida, a níveis de fundura sem nome. E, por isso, um amigo para lá do nominável. Por vezes com um cravo, castanholas, um trombone, cordas, um surdo. A bem do poema, “mora na filosofia”.

Aos 82 anos de idade, toda a sua candura permanece. Prestou respeito e testamento por inúmeros nomes que marcaram o seu percurso enquanto músico e ser humano. Helton Medeiros, Dona Ivone Lara (vão ouvir já, por amor de deus; “meu samba minha verdade”, preferencialmente), Clementina de Jesus (com quem fechou o concerto, com o seu “Vai, saudade”). Duma enorme gratidão, serenidade, e placidez. Sempre como a sua cara, estampada e correspondida nas memórias das capas e das filmagens do seu trabalho. No meio ainda cantou Cartola, no seu — como todos os seus temas — canónico “Acontece”, falando que “rivalidade só no Carnaval”, entre a Mangueira do homem do chapéu e Ray-Ban e o príncipe da Portela só rola por aí nesses dias. Como pedir mais? Mas havia.

Pelo meio, falando sobre Clementina de Jesus, falou de Clara Nunes e cantou “Na linha do mar”, com a sua filha. Do rio até ao mar, ou quê? Pois bem, teve muito mais daquilo que se espera e doutras coisas. Samba é realidade, então não pára. Podemos fazer mais música assim outra vez? E/ou continuar? Não era bom? Obrigado querido Sr. Paulinho da Viola, por me teres salvo a vida várias vezes. Uma plateia de românticos rendidos a ti há anos. És tão bonito. E a gratidão foi visível: todos de pé por um homem que é uma flor delicada e a mais forte. Adoro-te.

No final, um poema lindo, cujas palavras me escapam, mas que lhe saíram de improviso ou memória, como uma pena na brisa. No ouvido, ecoam 11 orações que merecem ser retidas desta noite:

“Se, um dia
Meu coração for consultado”

“Foi um rio que passou em minha vida”, Paulinho da Viola

“Meu samba não se importa que eu esteja numa
De andar roendo as unhas pela madrugada
De sentar no meio fio não querendo nada
De cheirar pelas esquinas minha flor nenhuma”

“Meu samba não se importa se desapareço,
Se desapareço, se desapareço
Se digo uma mentira sem me arrepender”

“Roendo as Unhas”, Paulinho da Viola

“Silêncio, por favor, enquanto esqueço a dor do peito
Não diga nada sobre meus defeitos
Eu não me lembro mais quem me deixou assim.
Hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos
Para ver as meninas,
E nada mais nos braços.
Só este amor, assim descontraído
Quem sabe tudo não fale
Quem não sabe nada se cale
Se for preciso eu repito
Porque hoje eu vou fazer
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito.”

“Para ver as meninas”, Paulinho da Viola

“Olá, como vai? Eu vou indo, e você tudo bem?
Tudo bem, eu vou indo, correndo, pegar meu lugar no futuro, e você?
Tudo bem, eu vou indo em busca dum sono tranquilo. Quem sabe?
Quanto tempo, pois é… quanto tempo?”

“Sinal Fechado”, Paulinho da Viola

“Solidão é lava que cobre tudo
Amargura em minha boca, sorri seus dentes de chumbo
Solidão – palavra, cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão”

“Dança da solidão”, Paulinho da Viola

“Se eu voltar aos teus braços
Vou repetir meus fracassos
Tudo aquilo que passou.
Eu sinto-me tão alegre
É justo que eu não me entregue
Aos teus caprichos, amor.”

“Minha vez de sorrir”, Paulinho da Viola

“Esquece nosso amor
Vê se esquece.
Porque tudo no mundo acontece.
E acontece que já não sei mais amar.
Vai chorar, vai sofrer, e você não merece
Mas isso acontece.”

“Acontece”, Cartola

“Olá, como vai? Eu vou indo, e você tudo bem?
Tudo bem, eu vou indo, pegar meu lugar no futuro, e você?
Tudo bem, eu vou indo em busca dum sono tranquilo. Quem sabe?
Quanto tempo, pois é… quanto tempo?”

“Minha Vez de Sorrir”, Paulinho da Viola

“Vou devagar
Devagarinho
Devagar
Miudinho”

“Miudinho”, Paulinho da Viola e Martinho da Vila

“Vai, saudade
Vai dizer àquela ingrata
Que a saudade quando é demais
Mata.”

“Vai, Saudade”, Clementina de Jesus

“Acende uma chama
É o som de um samba
Que chega nas ondas da noite
Para mim.”

“Nas ondas da noite”, Paulinho da Viola

P.S.: Encontrei no show o meu amigo Betinho da Roda de Samba, que esteve uns anos no Titanic todos os domingos, com o seu irmão Cícero (e a Tia, que é a sua mãe, a fazer a porta com as colegas) e agora está na mesma data, igualmente todas as semanas, no Village Underground. As bebidas são caríssimas mas a música e a verdade são tão boas que vale tudo o que tiverem no bolso. Gente boa e música ainda melhor. Sonho meu!


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