A ideia que fica de todo em todo clara — a cada concerto vivido —, que isto de um festival de música exploratória pode bem ser a antítese do festival onde se explora a música, como outras práticas em voga nas sociedades neoliberais onde impera o capital. Certo é que para isso conta uma forte presença do colectivismo, nas mais diversas e implantadas associações culturais barreirenses, em que a OUT.RA é uma das expressões mais recentes, assim como a ADAO. Contam os programas de apoio à programação e as plataformas e projectos colaborativos em curso. Disso são pilares de sustentação programática para o OUT.FEST a plataforma SHAPE+ que “fomenta talentos emergentes de excepção, conectando-os às comunidades e públicos locais através de residências colaborativas”. Através de um funcionamento em rede, entre este e mais 15 festivais parceiros, partindo de uma selecção curatorial, são escolhidos dezenas de artista apoiados e que estarão programados nestes festivais. Da última chamada aberta foram seleccionados Donna Candy, Eve Aboulkheir e sòn du maquis, para integrar o programa do festival. Outro projecto em curso e co-financiado também pela União Europeia é o tecknē. Uma ideia em prática e iniciada entre seis organizações europeias da qual a OUT.RA toma lugar. Os objectivos passam por “explorar o potencial emancipatório da tecnologia na música e nas artes sonoras” e “apoiar um campo mais inclusivo e usar o som e a música para esse fim”, isto partindo do envolvimento crítico e criativo em que o uso da tecnologia passa por “colocar o foco no utilizador em vez do fabricante”. As residências artísticas de Alan Courtois para coordenar A Viagem d’Os Heróis… — que reportámos no primeiro dia — acontece nesse âmbito, tal como a vinda de DeForrest Brown Jr. Há formas sustentadas de fazer acontecer e desde logo partindo de um modo criativo envolvendo as comunidades locais muito presentes — Sociedade de Instrução e Recreio Barreirense (SIRB) “Os Penicheiros” e a Sociedade Cultura e Recreio 1º Agosto Paivense, foram sendo casas de cultura e debate político, das ideias e muitas delas com papel decisivo na sociedade.
O programa do quarto dia apresentava a maior sucessão de concertos, levando até a palcos em simultâneo, implicando escolhas de nome a ver e ouvir. A artista do campo da música concreta Eve Aboulkheir. Compositora e viajante — no duplo sentido, por se fazerem viagens sonoras desde a sua música que radica na prática de recolhas sonoras de campo. Os registos que têm inscrito na série Portaits da muito recomendada GRM — Groupe de Recherches Musicales —, são um garante que tudo bate certo nos campos criativos e bem recentes de Aboulkheir. Neste fundamental selo gravou, em 2017, Guilin Synthetic Daydream, uma experiência imersiva absoluta. A presença no palco do Auditório da Biblioteca Municipal do Barreira, trazia esse chamamento. Aboulkheir traz parte da peça que apresentou recentemente no programa Acousmonium da Radio France, comissionada pelo GRM. Dessa peça ouvimos parte de “Venus Road”, sem darmos conta quando entram as gravações que fez nas florestas de Singapura, que confrontam com os diálogos da cidade. Ouve-se como uma maré de vivências boiantes, num mar acústico ao qual somos convidados a mergulhar. Essa ideia concreta da fonte da sua música foi-nos explicada pela compositora à mesa do jantar, privilégios que se tornam maiores quando nisso há uma partilha complementar efectiva.
Alfredo Costa Monteiro traz tanto de descoberta como de importância no que à música experimental diz respeito. Figura há muito afastada dos cenários mais frequentes em Portugal, mas com forte presença em diversos espaços europeus. Justamente o Festival Semibreve trouxe a sua música para mais perto na edição de 2018 e que levou Rui Miguel Abreu a descrevê-la como “uma densa massa sonora que a espaços parecia traduzir o ambiente de uma siderurgia”. A vinda ao palco — um dos mais idílicos que vimos montados neste OUT.FEST — no amplo ginásio da SIRB – Os Penicheiros, traduz a identidade feita de sonoplastia das composições feitas por Costa Monteiro. Desde uma mesa de trabalho — que a passagem em revista no final possibilitou detalhar—, encontram-se molas, pequenos motores, osciloscópios e fontes programadas de sons contínuos. O campo sonoro emitido teve um caudal feito de emissões contínuas de “ruído” contemplativo a que se intrometiam discursos maquináramos como de uma obsolescência fabril. Soou como soa em contínuo de fundo o transcende e radical filme de Michelangelo Antonioni — Il Deserto Rosso. Também neste Barreiro há essa ideia de promessa mais tarde colapsada dum rompante industrialismo. Costa Monteiro trouxe à memória essas sonoridades pujantes mas já numa revisitação pós-industrial.
Era uma tarde feita de saltar de palco em palco — levando a preterir dois ou três concertos nisso. Alcançado a tempo e horas de novo a Biblioteca para (re)ver a actuação do hexafonismo vindo da guitarra de Jules Reidy. Da sua prestação no Jazz em Agosto de 2023, tínhamos estranhado a falta de um algo mais que as escutas em disco tinham prometido, o que inscreveu na Black Truffle em 2019 com In Real Life e World in World em 2022. A guitarra que põe alçada ao ombro tem um encanto à luz rasante — está cheia de múltiplos trastes. Essa guitarra preparada permite-lhe uma construção melódica feita de sucessivos harmónicos, tocando-a onírica, que belisca desde as cordas, dando uma expressão individual a cada uma delas — por isso hexafónica. A toda essa construção acresce uma voz, presente nalguns dos temas que traz alinhados. Dessa narrativa entendem-se melhor as neblinas que se instalam e que contam uma ideia de desaparecimento, e ressurgimentos. Que se presumem de forte cariz pessoal, num processo de esclarecido autoconhecimento. Entrámos na sua sintonia, compensados pela melancolia que se respirava na tarde que ia fugindo por entre as nuvens carregadas pelas chaminés de fábrica que já nem deitam fumo.
Com KAKUHAN veio o efeito surpresa. Temos relatado, como que um por dia, dos tais 11 nomes que “jurámos” imperdíveis, e aqui está mais um que escapou e essa lista. Ligam-se aos goat (jp), que recentemente visitaram o gnration e de que escreveu Jaime Manso. Dessa passagem por Braga deu-se conta que “o palm mute de Koshiro Hino tomou a liderança da base rítmica que conduziu o concerto”. Hino está aqui em igual função no referido idílico palco d’Os Penicheiros, não nas cordas — de uma guitarra inexistente, “apenas” há as do violoncelo de Yuki Nakagawa — mas aos comandos de uma electrónica pejada de ritmos programados. Há de pronto uma atmosfera dos campos da música que uns seminais Autechre e seus cultores ajudaram a definir como IDM — intelligent dance music. Mas isso é uma parca ideia deste presente, vem antes duma facilitadora descrição dos ritmos desconstruindo uma base cronológica e ajustável. Há antes um anacronismo aqui, um arco diáfano que liga um futurismo vindo das ideias de Hino ao vertical e orgânico som das arcadas desferidas por Nakagawa. Kakuahn em japonês que se entende como “mistura de diferentes elementos” como se apresentam no seu Bandcamp. Este duo de Osaka tem o primeiro registo de estúdio com Metal Zone em Abril deste ano. Encontramos uma música em palco que subscrevemos na integra o que a Boomkat recenseou do disco, apelidando-o como “um clássico do nosso tempo”. As cordas do violoncelo são gritantes nos staccatos e tornam-se dilacerantes nos legatos que percorrem o braço. Há um arco ancestral a operar as articulações, empregues por Nakagawa, com umas cerdas ora laças ora tensas, que ajusta de forma dinâmica, como sendo um elemento mais denotando essa organicidade ancestral. KAKUHAN trata de um manifesto sonoro que bem pode ser uma sonoplastia do colapso da era moderna amparada numa ideia de redenção — em tese — ainda possível no futuro. Um marco em palco deste festival e que ajudará a contar a sua história na versão 20.24.
É necessário e até imprescindível o espaço entre a palavra NU NO. É lugar de respiro, é o tempo do silêncio. Um hiato propositado que a grafia denota e importa descartar como erro. Nuno Marques Pinto vive na vertigem das palavras e encarna NU NO, no palco e em discos, como uma personagem da sua própria dramaturgia. Lançou-se com Turva Lingua para a 8mm Records, que retemperou com Rádio Afónica em edição exclusiva em fita magnética pela alemã Full Body Massage. E está por essa via ligada ao éter. Entre as colunas da ADAO surge desafiante em cândida figuração e liga-se à rádio, o transístor é posto emissor da sala colunar. Mais adiante do acto performático volta a razão de Rádio Afónica, para também aqui desconstruir da linguagem usando os princípios da poliglossia. É de trazer à baila a ideia sonora com que Suzanne Ciani — deusa dos díodos — se referiu à língua portuguesa, escutada com encanto por si por dela ouvir sons em murmúrio. Também em NU NO se retoma de Samuel Beckett o que chamou de “microphonic text, to be murmured”. Anda tudo ligado e em português nos entendemos, ou faz-se de conta. Há um ideário da prática de um Alberto Pimenta a rondar. A queda do poeta à custas de “uma mão cheia — mas cheia de quê? — de nada!” Nada, como bem convém, aliás, para se ser melhor. O aforismo do nada se ter para tudo se ser assenta-lhe como uma luva. Porque em NU NO se dão bofetadas e de luva branca. Valem as palavras (mal)ditas dos poetas omnipresentes no compêndio de NU, NO dado e preciso momento em que se ouvem. Sortilégios de estar presente e levar com elas em cima, de alto abaixo. Pum! Está dito, e foi ele — como NU NO — quem as disse. Diz quem o viu antes que nunca o viu assim tão melhor, no melhor se si mesmo, seguramente.
CAVEIRA assumiram o risco do gravar — ficar vivo que saiu, por fim, pela subsidiária Shhpuma neste ano da graça de 2024. Mas disse-nos o seu editor, Travassos, umas semanas antes da obra ver a luz do dia, que “aquilo ainda não estava do inteiro agrado deles, até que apuraram a masterização e o som até ao ínfimo detalhe”. Eles que são Pedro Gomes na mentoria e guitarra eléctrica, Pedro Sousa no saxofone tenor, Miguel Abras no baixo eléctrico e Gabriel Ferrandini na bateria. Ferrandini que acaba por ter assim uma dupla passagem em palco nesta edição do FEST, com a actuação tida na Rodrigo Amado Unity. Mas em número, as actuações deste quarteto, de entre as 20 edições, contam-se como três. Logo no segundo ano, em 2005, deixam marca no palco montado no GD Ferroviários, para depois voltarem já neste mesmo espaço da ADAO, em 2015, na extensa noite de estrelas cadentes, juntando-se no firmamento, entre outros, a Peter Brötzmann e Jason Adasiewicz. E para que conste, entre NU NO e CAVEIRA há uma fundamentada sucessão no espaço, há um anjo tutelar, o poeta Alberto Pimenta. Ninguém sabe, nem ele. Consta-se que foi Pimenta a centelha para formar CAVEIRA — ainda que noutra configuração de CAVEIRA, da que perdura Pedro Gomes. Há um registo para memória futura que ficou plasmado na entrevista publicada no Rimas e Batidas aquando do lançamento do registo para eternizar esta CAVEIRA — condição para escapar ao não ficar vivo e do cerebral ficar o osso. Lá vão fintando a ideia de se tornarem mitos deles próprios, para isso estão os palcos e a vertigem do momento. Em palco — como lugar próprio da sua existência — mostram sem querer revelar por inteiro, tão só o murmúrio abrasivo que trazem. Pedro Gomes e Abras recusam-se ao olhar, senão apenas para a fonte sonora, o mote da sua condição. Pedro Sousa define o espaço abissal onde se situam e Ferrandini promove o andamento diabólico, agrava os rumores sem os estilhaçar. É um chamamento feito de trovares fundos e que vêm a caminho. Camisas a ensoparem-se pela destilação da mescla sonora. Um sabor que se depura, pela via do caldo que se adensa na mescla por força da demora no preparado. Do mais que o cruzamento fugaz pelo aglomerado pode indicar isto é muito do um por um, feito amparo colectivo. É ir além da passagem vinda de “Portal” — faixa terminal em disco — para caminhar rumando para o destino vertiginoso da condição de ser e estar no pulsar da vida, sem cedências nas vontades.
Resta-nos algum espaço emocional por preencher, há que ter isso em conta e dosear a melhor das capacidades afectivas. Passagem curiosa pela dupla Lenhart Tapes e Tijana Stanković. Veneração feita de mutualismo, entre si e a herança dessa imensidão cultura balcânica e muito entre ambos em palco — uma vez mais transmutado entre colunas na ADAO. Tapes tem aos comandos um par de leitores portáteis de cassetes por um lado, e por outro um debitador de ritmos e batidas. Como num ringue, encara de frente — em constante olhar hipnótico e desafiante — Tijana para dar vivas à voz cantada. Voz que traz esse lugar do exótico que transforma a métrica das palavras em instrumento e melodia. Tijana Stanković é cantora e violinista, mas sobretudo etnomusicóloga, essa condição dota-a de um enorme propósito como convidada especial na música do produtor Vladimir Lenhart encarnado como Tapes. Tem em Dens uma segunda obra da sua discografia onde constam as vozes de mulheres balcânicas — para além de Stanković constam as de Svetlana Spajić e Zoja Borovčanin. Assim como no Maio de 68 de Paris se reivindicou que debaixo do asfalto havia a praia, em Lenhart Tapes há um ressurgir da música balcânica submersa também ela pelo industrialismo e os fantasmas disso, nuns anos 80 de Belgrado. Servem os registos em fitas que resistem ao tempo da desmagnetização. Delas se fazem ouvir e transmutar sobretudo as vozes de gaita de foles sérvias e as demais dos Balcãs — entre gaidas e dudas. São vozes inebriantes, timbres de drones e dos agudos que para mais Lenhart faz endiabrar manipulando os controladores fast forward, acelerando para o tumulto sónico sobre as malhas pré-gravadas da batida. Sobre esta sincope, encanta e brilha a presença, o instrumento voz humana. Lá mais para o final estava guardada uma versão sérvia de uma das músicas de maior emoção do repertório entnomusical que andam a reavivar na memória. Para intensificar a celebração, Stanković faz uso do seu moderno violino em corpo de S e quem os rodeava ficou magnetizado.
Restava o que reservámos por estratégia para a outra estreia nacional da noite, com a dupla Nídia & Valentina. Novo duo que teve em destaque no Rimas e Batidas com a entrevista concedida por Valentina Magaletti, que conjurava para este concerto: “Nós vamos fazer a nossa cena e exorcizar todas as bad vibes. Através da música, da dança”. Nídia Sukulbembe presente na sua área, crescida no Vale da Amoreira, a ter palco no Barreiro, a actuar em casa própria. Nídia da Principe Discos, produtora fundamental da cena de dança do hoje e na afirmação mulher, negra e libertadora. Ainda a celebrar o aclamado último disco 95 MINDJERES, que ecoa forte o papel de libertação decisivo das mulheres contra o império colonial português. E nos ritmos como processos libertadores doutros impérios estabelecidos está Estradas, o caminho tornado comum com a omnipresente percussionista Magaletti. Uma musicalidade construída pela acção conjugada dos dois sistemas de som que se encontram entre “beats, ritmos e polirritmos. […] Nós nem precisamos de falar”, como desvendou sobre o processo criativo de Estradas Magaletti a André Forte. Uma celebrada purga orgânico-digital estava em palco e em franca progressão. Estradas em palco cheio, de percussões visíveis, entre sets de congas e uma vistosa marimba ao dispor de Valentina, e as batidas, audíveis e ocultas nos decks comandados por Nídia. Um confronto do acústico com o processado e amplificado. Um salutar ecoar da madeira e peles por entre a batida codificada no algoritmo, mas também ela expressão do ancestral batuque. Todos dançam pelo que a música traz e por uma ideia de libertação efectiva — de expurgar. As linhas melódicas feitas na marimba são efectivos desenhos de beleza que descobrem vias condutoras e que se emaranham na destilação da batida produzida. Uma festa consciente do acto social de emancipação e libertação, que se expressa muito também em momentos assim — nessa alienação aparente pelo acto de dançar como se não houvesse amanhã.