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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/09/2024

A artista italiana criou uma linguagem própria ao lado de Nídia em Estradas.

Valentina Magaletti: “Nós vamos fazer a nossa cena e exorcizar todas as bad vibes. Através da música, da dança”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/09/2024

O mundo da música está em mudança desde que o conhecemos, e tem-se tornado cada vez mais interessante, crescendo a cada nova injeção de diversidade que lhe é reconhecida. Obviamente, parte integrante da mudança é quem carrega a peculiaridade e a diferença consigo, frentes onde Valentina Magaletti e Nídia Sukulbembe têm sido campeães. São elas mudança e fonte incessante de entusiasmo. Um universo em que as duas artistas não só coabitam, mas também se cruzam num momento singular de co-criação de expansão de horizontes é, sem dúvida, um em que devemos querer habitar.

Estradas, o álbum que ambas criaram em conjunto, entre o clima sideralmente tropical da ilha de Sicilia e o nevoeiro e fumo de Londres, é um documento sobre uma tangencialidade que não se traduz numa linguagem simplesmente igual, mas antes em algo novo, que nos leva um pouco além do que já conhecemos, para ver sonoridades novas. Não só de Nídia, de Valentina, mas do mundo.

Em conversa com o Rimas e Batidas, Valentina Magaletti explica como todo o processo com Nídia se desenrolou facilmente, pela simples realidade de assentar totalmente na principal expressão de ambas, a música: “Foi tudo muito natural, a forma como começámos a colaborar. Eu falo italiano e inglês. A Nídia fala português e francês. Não havia forma de comunicarmos em altura nenhuma, em [linguagem falada]. Então, a comunicação foi toda através de beats, ritmos e polirritmos. É isso que é mágico com a música. Nós não precisamos de falar.”

O resultado, um enorme Estradas, justamente epítetado, mostrando que há novos caminhos por trilhar na carreira de ambas, cruza na perfeição o que distingue o talento inquestionável de ambas. Da primeira à última das nove faixas, ouvem-se as melodias em gancho de Nídia, a sua amplitude de frequências e uma capacidade de transformar tudo em síncope, com Valentina a entrar dentro de cada faixa com texturas mais orgânicas, com expressões rítmicas naturais, mas nunca óbvias, e com territórios completamente novos em sonoridades de batida.

“Sicilia” e “Rapido” prolongam-se no tempo por via do ritmo, embora pudessem ser habitáveis de forma ainda mais perene (saber a pouco é a confirmação da qualidade), e “Nasty” faz jus ao nome com momentos de noise e negrume invasivos, a quebrar a cadência da percussão a puxar para a pista de dança — cria-se uma sobreposição quântica entre coordenadas frias e quentes num único espaço sonoro. O single “Mata” encapsula na perfeição todas as promessas que ficaram subentendidas com o anúncio da colaboração: melodias coloridas, simples, diretas e tão certeiras como só Nídia consegue fazer, entre-cotadas com a desenvoltura rítmica de Magaletti, que desdobra o beat em sensações de suspense, de furor e de pura alegria através da percussão.

“Eu acho que a colaboração entre mim e a Nídia neste álbum resultou num bom cruzamento. De certa maneira, tens todos os elementos das produções que ela tem feito para a Príncipe, mas, em última instancia, queríamos fazer algo que soasse inteiramente a uma colaboração entre as duas.” O principal desafio, por isso, passou por encontrar na criatividade de Nídia algo que rompesse com o contexto onde sempre se moveu, do clubbing, de produções limpas e super orientadas para sistemas de som de dancefloor. A escolha de Tom Halsted, assumida por Valentina, permitiu equilibrar forças e criar uma sonoridade mais experimental, o território natural da artista italiana, para as batidades de Nídia se propagarem.

“Todos os meus inputs no álbum foram para assegurar que havia muitos inputs acústicos. Acrescentei melancolia, com elementos de cordas e coisas mais experimentais que sempre quis fazer. Também quis que a produção tivesse muita granularidade e escuridão na produção, que é o que Londres traz para o disco. Gravámos tudo na Sicilia, com calor. Foi muito [à base de] beats africanos e percussão africana, urgência para dançar. Depois voltámos para a chuva, para o frio, e isso trouxe tanta coisa para a nossa sonoridade.”

Todo o processo na ilha italiana acabou por ser irmamente dividido, com “Nídia a fechar-se numa sala com um sub maciço a produzir os beats todos”. Terminada essa parte, ambas se juntavam numa sala e Valentina fazia a sua parte: “Acrescentava elementos, de secção em secção. Punha percussão, marimba, claro, porque era um som de que precisávamos e porque seria lindo ter esse instrumento no disco.”

Estes são, de resto, elementos que não são estranhos ao percurso de Valentina Magaletti. Durante a conversa, e sobre os trabalhos mais recentes que tem assinado, principalmente em nome próprio, sobressaiu a sua abordagem no álbum A Queer Anthology of Drums, objeto onde abriu espaço para ser, com uma segurança que partilha pela sua desenvoltura técnica. “Eu queria mesmo destruir aquela norma que associa tocar bateria a masculinidade e testosterona. Tipo brutalmente agressiva, de uma perspectiva humana. Quando eu estou no estúdio a tocar bateria, eu consigo explorar tantos outros ângulos do instrumento, sinfónica e melodicamente. Não me limito a bater-lhe. Obviamente que o adjetivo queer me serve por ser uma pessoa queer, mas neste contexto era um adjetivo de inclusividade, que mostra a masculinidade e feminilidade do instrumento. Eu acho que o uso de bateria na música moderna é muito limitativo e eu queria esmagar essa conceção.”

É algo evidentemente inquestionável no seu percusso, seja a solo, seja em projetos como Holy Tongue, Moin e, de forma ainda mais evidente em CZN, parceria com o músico e escultor portuense João Pais Filipe e o produtor Leon Marks, onde a ideia de mudar conceitos ganha forma na disposição do instrumento. “O que mais ganhas com conhecer ritmo é criatividade, e nunca deves interromper o teu fluxo criativo, sabes? Sacrificá-lo por causa de convenções e do que as massas querem? Toda a gente vai acabar a soar ao mesmo.” Nunca tal se manifestou na sua música.



[QUEM ME MATA]

O conceito por detrás de Estradas, espelhado em todos os seus elementos, dos títulos à pintura que lhe serve de capa, é espelho de tudo até agora dito, de um esforço de sonoridade, irmamente dividido e com um objetivo claro de trilhar, abrir, desbravar, e de reconhecer o caminho feito até agora.

“Adoro o conceito de Estradas, como algo com duplo significado. Significa estradas, um caminho vindo de diferentes contextos, geografias, linguagens, como eu e a Nídia nos conhecemos, mas também o som de rua, de urbano, e acho que isso descreve bem o trabalho.” Da mesma forma que Estradas acaba por espelhar a natureza orgânica desta colaboração, grande parte dos títulos escolhidos por Magaletti funcionam em português, italiano e espanhol, mas refletem a natureza direta de Nídia na altura de definir a abordagem. Uma palavra, muito sentido. A exceção no processo foi “Mata”. “Isso foi a Nídia. Eu gosto tanto desse. Quem me mata, sim! Como quem diz ‘you’re not gonna fucking kill us’ [não nos vais matar]. Não nos vais mandar abaixo. Nós vamos fazer a nossa cena e exorcizar todas as bad vibes. Através da música. Através da dança. Adoro isso, o som motorizado de o repetir. Nada me mata. É tão bom.”

A natureza poderosa de Nídia foi, claro, um elemento essencial no desenrolar da colaboração, principalmente atendendo à atenção que Valentina sempre prestou às movimentações da Príncipe. “Adoro as coisas deles desde o primeiro dia, mesmo. Era um sonho poder fazer alguma coisa com eles, principalmente com uma artista feminina da editora — porque acho que são apenas a Nídia e a Xexa, salvo erro. Fiquei muito feliz por poder pegar na parte feminina de uma editora tão incrível como esta, mas eu tenho grande parte das coisas que eles lançam.”

Não é inusitado que o som da batida seja apenas um dos fascínios de Magaletti, que reconhece nas raízes africanas um portento impossível de conter, sem barreiras “ocidentalizadas, em que tudo é quantificado, medido e escrito, e onde o ritmo tem sempre algo de rígido.” A música africana, na sua interpretação, “é sobre o corpo, sobre a urgência de dançar e de ser xamãnico em relação a isso.” Esta “ligação primitiva” é, para a artista italiana, “o que de mais especial por aí anda”, com manifestações um pouco por todo o continente e vindas de fora. Na nossa conversa não faltaram elogios a editoras como a Príncipe, claro, mas esforços de outras latitudes, como é o caso da Nyege Nyege ou da subsidiária Hakuna Kulala.

Este é um caminho, passe-se a referência fácil, que torna a colaboração com Nídia ainda mais premente, mas que descreve bem a sua abordagem a todas as vertentes do que é a expressão pela percussão. O elemento ritualistico de tudo o que tem feito, tão presente em Estradas quanto nos seus demais projetos, carrega sempre esta natureza de haver algo maior a ser feito, longe de ser a performance pela performance, a técnica pela técnica. “A parte ritualistica do que faço denuncia-se durante os concertos. Tentas ler a sala e transmitir uma certa energia. Quando eu dou um concerto, eu estou-me a cagar se as pessoas me vão ver a tocar. ‘Oh ela sabe mesmo tocar bateria.’ Claro que sei, faço isso há bastante tempo. Eu quero é comunicar, transmitir algo bom, mau, alguma coisa. Chegar ao outro é o meu objetivo principal.”

O que nos vai chegar desta colaboração acontece já em breve, a propósito do OUT.FEST, que na sua vigésima edição vai receber a colaboração pela primeira vez em Portugal (ao lado de um cartaz de luxo, diga-se de passagem). “Toquei lá o ano passado com Holy Tongue e foi incrível. De certa maneira, lembrou-me Salvador da Bahia. Tinha uma vibe muito particular, atravessar para a outra margem, ser tudo um bocado sombrio. A noite era uma loucura, o sítio onde fiquei era estranho. Senti-me assim no Brasil. E a música era incrível.” Este ano há uma dimensão extra, que é tocar na terra de Nídia: “Ela contou-me que vive lá. Deve ser tão fixe. Eu quero ver a Nídia em casa, porque ela já esteve em minha casa. Já tocámos em Roma, em Milão. Ela esteve sempre com italianos. Por isso, sim, é tempo de ir a Portugal e de estar em casa dela. Isso vai ser muito fixe.”

Ainda que territórios novos tenham sido explorados, há sempre alguma familiaridade na forma de Valentina Magaletti estar — um lugar comum é o seu motor criativo não ficar sem combustível. Fora Estradas, como Nídia & Valentina, há novos álbuns de Holy Tongue com Shackleton, que “está muito bem feito”, e um novo output com Moin, desta feita com Valentina a ser mais do que uma artista convidada e a assumir parte da composição. Este último, na sua opinião, “está uma bomba.” Aqui, a sua confiança ressurgiu, sempre inabalável. “Claro que estou feliz com todos os meus álbuns. Não se trata de desonestidade intelectual, porque eu adoro genuinamente tudo o que faço. De outra maneira não o faria. Mas este disco é muito especial para mim, ficou muito bonito.”

Estradas de Nídia & Valentina foi recentemente editado pelo selo francês Latency e já se pode ouvir em todo o lado. A sua expressão ao vivo pode e deve ser testemunhada no Barreiro, a propósito do OUT.FEST, no dia 5 de Outubro.


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