LP / Digital

Nídia

95 MINDJERES

Príncipe Discos / 2023

Texto de Maria Carvalho

Publicado a: 09/10/2023

pub

Compreender Nídia ficaria incompleto se colocássemos de parte as suas noções de ancestralidade e desenraizamento. Tendo em conta todo um passado contado sob a luz da dispersão, em 95 MINDJERES a artista de traços divididos entre Cabo-Verde e Guiné Bissau conta-nos uma história que vem de dentro da resistência e de uma luta que tem vindo a ser não só mas também a sua. Por esta lógica, a compreensão do seu novo disco só fica coesa se nos debruçarmos sobre a seguinte questão: afinal, quem são estas 95 MINDJERES sobre quem Nídia conta uma história através do seu terceiro e mais recente álbum?  

Num crescimento progressivo e experimental que nunca abandonou as sequências de ritmo idiossincráticas no seu trabalho artístico, pelas mãos da produtora da Príncipe Discos tem-nos vindo a ser entregue cada vez mais uma faceta consciente e madura que se manteve encoberta no início dos seus primeiros trabalhos lançados. Em 95 MINDJERES é evocada uma história que muitos de nós ainda não tínhamos ouvido ser contada e que nos chega sob a alçada de muita força e vontade. Através da música, da polirritmia, de uma pista de dança que se abre fugaz mas que, porém, abraça temas mais graduais até chegar à nostalgia, abre-se um caminho em Nídia que passa a ser ainda mais colectivo, familiar, histórico e político. É quase como se conseguissemos ouvir ao longo de todo o álbum a milícia que Guiné-Bissau e Cabo Verde viram nascer nos anos 60. 95 MINDJERES é sobre uma dança militar que transforma a tormenta da memória numa obra sonante completa e irrevogavelmente política. Vocalizadas as palavras anteriores, procuremos as respostas.

Nos anos 60 vivia-se o apogeu de uma militância que se debruçava sobre a Guiné-Bissau e Cabo Verde e que, pela primeira vez, viu crescer de dentro para fora a luta e a manifestação feminina. A partir da UDEMU (União Democrática das Mulheres), altamente impulsionada pelo líder marxista Amílcar Cabral, Cabo Verde e Guiné-Bissau convocaram mulheres para que se juntassem aos valores defendidos pelo movimento de libertação PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) e, armadas ou não, lutassem ao lado da oposição ao sistema. Algumas destas mulheres muniram-se para seguir na frente de combate da oposição ao regime e, as que não entraram no campo de batalha, manifestaram-se através de toda uma comunidade assombrada que impôs limites através da própria organização.

Perante este olhar crítico sobre um passado que parece ter sido escondido de alguns de nós (pelo menos das gerações mais novas), 95 MINDJERES torna-se um elemento essencial no processo de construção nacional, através do qual Nídia se torna uma narradora sonora que reescreve a história da independência de dois países fulcrais na sua vida e no seu crescimento pessoal e artístico. Entre a tradição e a autenticidade, foi através do respeito pela sua própria ancestralidade que Nídia nos trouxe uma viagem ao epicentro político da sua existência e da sua cultura sonora. 

No arranque evocado pela retórica de “É COMO?”, os BPM’s entram a velocidade cruzeiro numa viagem mental e corporal e, a juntar-se à luta, o salto torna-se maior em faixas como “Deep” para culminar em “Sukuku” e aterrar numa nostalgia profunda imanente que se faz ouvir no fim do álbum. “Paradise”, que peca por não ter sido o single que antecipou o lançamento do álbum, prova ser uma utopia sonora em que Nídia parece querer contar como seria o lugar onde todas estas 95 Mulheres se juntariam para contar a sua história, e não a história que se foi contando ao longo das últimas décadas.  

Ana Maria Gomes Soares, Aua Cassama, Biloni NhamanaTamba Nhassé, Bintu Nanqui Seidi, Brinsan Nassentche, Carlota Sanca, Hortensia Francisco Cá, Isabel Leal, Lissa Na Faioye, Mamae Barbosa, Maria Inácia Co Mendes Sanha, Maria Isabel Mané, Maria Osvaldo, Nena Na Fona, Nhima Dabo, Nhaga Cassama, Paulina Cassamá, Sara Luisa Monteiro, Sugunda Na N’Kabna, Suzy Barbosa, Tambura Na Canté, Tchadi Sambu, Titina Sila38… Quantos de nós ouvimos falar delas? Muitas ainda eram menores quando se  juntaram ao PAIGC e, outras tantas, viram o seu nome encoberto até aos dias de hoje.

A suceder Não Fales Nela Que A Mentes, editado em 2020 e depois de diferentes assinaturas noutros trabalhos e colaborações marcantes na indústria da música, como a que fez com Yaeji e Lafwandah, a artista membro da label Príncipe Discos tornou-se um elemento central fora e dentro de Portugal nas discussões sobre a música eletrónica. Mestre na arte de mesclar todas as diferenças, Nídia faz com que toda a boémia portuguesa abra os braços para soltar um regozijo que desce até à anca. De Cabo Verde até à Guiné, da Quinta do Mocho para o Mundo, a Príncipe Discos tem vindo a lacrar o seu valor incontestável — e a apoteose disso é Nídia, que já é membro das maiores listas de música eletrónica da vanguarda. 

Numa mistura ativa dentro do espectro do kuduro, tarraxo e do afro-house, toda a linguagem da artista é urbana e global, num resultado que vem da rua para casa, da casa para o estúdio, do estúdio para todos os lugares. E, como a sua editora afirma: “As coisas estão prontas, os corpos alertas, a mente afiada com o calor e o companheirismo, desintoxicados, podemos agora ouvir o tom geral do álbum, uma visão clara sobre a autoeducação, a liberdade e a responsabilidade.” 

95 MINDJERES é uma ode que merece louvor e que representa a resistência do amor face a todas as injustiças, cuja espera será curta até que o possamos ouvir ecoar nas melhores pistas de dança do Mundo.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos