A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.
[Hidden Horse] Opala / Holuzam
Os Hidden Horse são João Branco Kyron e Tony Watts, dois companheiros com longo percurso em comum que remonta a Hipnótica e que tem a sua mais duradoura etapa nos Beautify Junkyards, grupo que, obviamente, continua em plena actividade. Há, como é natural inferir, uma forte relação entre os universos musicais explorados pelos Beautify Junkyards e estes Hidden Horse. Os primeiros — com ligação à britânica casa-forte da hauntologia, a Ghost Box, desde 2016 — ergueram uma sólida discografia que se estende já por quatro álbuns carregados de exercícios de cruzamento entre os universos da pop de recorte mais psicadélico e da folk igualmente lisérgica, com tangentes adicionais às cenas mais exploratórias da música electrónica e da library music. O imaginário que rodeia o grupo que o ano passado nos deu o belíssimo Cosmorama tem uma vincada componente pastoral e evoca uma particular visão arcadiana do mundo através da lente da hauntologia que propõe extrapolações a partir de difusas memórias (re)construídas (?) através do cinema, televisão e outros veículos de cultura. Ora, como João Branco nos explicou em entrevista publicada esta semana em antecipação do concerto de estreia dos Hidden Horse, os “lugares” explorados na música dos Hidden Horse são algo distintos: “Os Hidden Horse habitam um mundo mais urbano, dos espectros que se movem nas imagens de CCTV, dos poetas sonambulistas, das vidas paralelas que habitam uma cidade. A cidade vista como um organismo em constante mutação e as fronteiras das suas luzes com a escuridão, os limites da cidade”. E para lá dos lugares, há a moldura mais psicológica ou política: “Além dessa vertente mais onírica, há também, na música dos Hidden Horse, elementos de resistência e tentativas de expansão da realidade, que nos é cada vez mais toldada e formatada. A revolução electrónica do Burroughs, que vemos retratada em filmes como o germânico Decoder ou o ritualismo de comunicação com o invisível, que vemos por exemplo nas transmissões da Psychic TV, são algumas das referências que nos inspiram e que para nós assumem um papel muito relevante nos tempos que vivemos”. Musicalmente, isso traduz-se numa música de vincado pendor rítmico – afinal de contas, Watts é baterista – e com um vibrante pulsar electrónico de ecos industriais do arranque dos anos 80: pense-se em Throbbing Gristle e Cabaret Voltaire, por exemplo. Pontuada por “found voices” que acentuam a presença dos tais “espectros” referidos por Kyron, esta é uma música de sombras, que não tem espaço para o sol que ofusca tantas das melodias dos Beautify Junkyards, com os instrumentos a soarem como se tivessem sido captados nas entranhas da própria cidade, em túneis, garagens, naves industriais abandonadas. Para construir esse som, os Hidden Horse usaram um conjunto particular de ferramentas: “O Tony criou um setup a la Tony, diferente dos Beautify Junkyards, mas igualmente polivalente, entre peças acústicas (encontradas nas velharias) que são amplificadas e processadas e a bateria electrónica para onde carregamos sons criados por nós ou samplados. Do meu lado recorri muito ao sampler, ao cut up, fundir numa mesma música elementos de procedências muito distintas em termos de tempo e espaço, como por exemplo, uma linha de baixo de um filme porno dos 70s com um beat coldwave e um spoken word de um documentário americano dos 80s. Além disso usei alguns sintetizadores que gosto muito como o Polysix e o Arp Odyssey”, especificou João Branco na já referida entrevista. O que os posiciona algures entre a cold wave e a já referida música industrial que emanou da tape culture dos anos 80 e uma versão mais lo-fi e urbana dos Boards of Canada. Faria pleno sentido escutar esta música no catálogo da Ghost Box, mas é igualmente estimulante encontrá-la enquadrada na Holuzam, etiqueta com ligações à loja de discos Flur que tem acompanhado, através de reedições de material dos Telectu ou DWART e de lançamentos de novas matérias de Polido, Molero ou, entre outros, Luís Fernandes, Joana Gama e Ondness, um estimulante continuum electrónico português para que contribuem ainda selos como a Favela Discos, Discrepant, Sonoscopia, Crónica ou Variz.
[Niagara] Parva Naturalia / Ascender
[Niagara] 1807: Músicas Retiradas dos CDRs / Discrepant
“Free house” poderia ser um designativo apropriado para o trio de Alberto e António Arruda e de Sara Eckerson caso não deixasse de fora tanto quanto o que ainda assim inclui. Estes novos registos que aqui focamos fazem-se de material disperso por edições múltiplas. No caso do acabado de lançar Parva Naturalia, que traz marca da Ascender, selo do próprio trio, o alinhamento ergue-se a partir de peças retiradas de CD-Rs de circulação extremamente limitada como Orbital, Ninho do Açor e Félix, Fernando e Constantino (pontos de origem de, respectivamente, “Tribunal”, “3” e “Félix 3 (Guarda Costas)”), do single de 7” Comboios (de onde sai o tema “Calor”), dos maxis de 12” Ascender e 37 (de onde são retiradas, respectivamente, as peças “SEE” e “Jordão”) e da cassete Canas (“Islington Inn”, “Orion”, “Icendiada”). Ou seja, múltiplos formatos lançados entre 2015 e 2018 agora convenientemente reunidos numa edição disponível em cassete, vinil e formatos digitais. No caso de 1807: Músicas Retiradas dos CDRs,que a Discrepant lançou em vinil e formatos digitais em finais do ano passado, é aos CD-Rs 506 (“Espuma”, “Lanterna”, “Corsa”, “Egyptiu”, “Mégane”, “7”), Orbital (“Dácia”), Escola de Condução (“Esc1”, “Esc 4”, “Esc8”, “Esc10”, “Esc12”) e Felix, Fernando E Constantino (“Pombal”, “A8”, “Pena”, “Ponta Delgada”) que se subtrai a matéria originalmente lançada entre 2014 e 2018. Ou seja, antologias complementares e extremamente úteis para se entender o total alcance da obra de um grupo que também lançou abundantemente na Príncipe (entre maxis e LPs, os Niagara somam já cinco títulos na etiqueta lisboeta).
Em ambos os casos o que se escuta é uma abordagem extremamente criativa e inventiva às margens mais distantes da música pensada para dançar. Nalgumas das faixas ainda se sentem ecos desse pulso que empurra para a pista (como acontece em “Jordão” de Parva Naturalia ou “Mapas” de 1807), mas na maior parte do tempo estamos em terrenos pejados de fragmentos e estilhaços resultantes da implosão desses edifícios do house, techno, electro ou até dub que os Niagara se divertem a armadilhar, explorando-os por dentro, dinamitando-lhes as fundações e depois observando com o detalhe próprio da câmara lenta a chuva de detritos. Essa abstracção é tanto mais extrema quanto concretos são os títulos que o trio escolhe para nomear as suas criações e que traem uma óbvia obsessão por automóveis baratos (“Dacia”, “Corsa”, “Megane”…) e pelo próprio acto de condução (toda a série retirada de Escola de Condução ou peças como “A8”) e ainda lugares ou objectos específicos (“Pombal”, “Ponta Delgada”, “Lanterna”, “Pena”). O carácter improvisacional da sua música – parecendo que é a tecnologia eleita para gravar em cada momento que lhes guia os gestos performativos intuitivos – aliado a um horizonte vasto de referências tanto estéticas (para lá das coordenadas de pista já nomeadas poderemos aqui adicionar o lado mais angular do pós-punk, a dureza brutalista da música industrial, a obsessão motorik do kraut e a vertigem lo-fi da cold wave) quanto temporais (vale tudo o que se estende do presente até ao passado pioneiro dos Silver Apples) rendem uma música profundamente personalizada que recusa alinhamentos fáceis com tendências de fundo e busca antes um lugar singular que é, também por isso, altamente recompensador e estimulante para quem nele decida repousar os seus ouvidos. Os títulos podem, de facto, ser mundanos e desarmantemente comuns, mas a música dos Niagara é tudo menos mundana e comum.