Em 2018, os Beautify Junkyards puxaram-nos para dentro de um mundo invisível, feito de sons luxuriantes, de portais que se abriam para dimensões paralelas de tempo e espaço. Agora, à entrada de 2021, desafiam-nos a abrir os olhos para nos rendermos ao espanto: Cosmorama referencia no seu título o assombro da era vitoriana alcançado nos Cosmorama Rooms, uma demonstração de “modernidade” através da ilusão pré-catódica que transportava os visitantes até um exótico mundo feito de luz, espelhos e projecções de múltiplas maravilhas: as pirâmides do Egipto, os estranhos animais de terras distantes, obras de arte resguardadas em inalcançáveis museus.
A música dos Beautify Junkyards traduz, desde sempre, essa atracção incontrolável pelo desconhecido, pelo exótico, pelo que se esconde atrás do tempo e se revela de forma mais nítida na imaginação, quando os olhos se fecham e, enfim, se vislumbram claramente os mundos invisíveis. Como nos vitorianos Cosmorama Rooms que arrancavam “ahhhs” de espanto a damas e cavalheiros através de artifícios de que resultavam ilusões feitas de luz, é também no estúdio Electric Garden que João Branco Kyron conjura fantasias, não de imagens, mas de sons, não de luz, mas de frequências, alterando, através de uma cuidada e imaginativa gestão dos diferentes recursos tecnológicos e humanos de que dispõe, as nossas próprias percepções de tempo e espaço, de escolas e estéticas.
Kyron toma a dianteira conceptual e ainda assume vozes e teclados, tendo ao seu lado os companheiros de sempre João Moreira nos dedilhados acústicos e também em teclados, Sergue Ra no baixo e António Watts na bateria e percussões, além de, tal como já sucedia em The Invisible World Of Beautify Junkyards, Helena Espvall (a multi-instrumentista que em tempos integrou os Espers e que é já há mais de 10 anos parte activa na mais exploratória cena musical lisboeta). Novidade é a vocalista Martinez que assume nesta delicada equação humana o papel anteriormente entregue a Rita Vian, cantora que entretanto se lançou a solo. Para lá deste núcleo maleável há ainda que referir as participações de Nina Miranda (a voz dos Smoke City com que os Beautify Junkyards se cruzaram pela primeira vez em Londres, antes de a recrutarem para um par de concertos na capital) no tema título e ainda em “Reverie” e “Parangolé”, Alison Bryce, voz dos nova-iorquinos Lake Ruth, que surge em “Deep Green” e ainda do harpista Eduardo Raon que adiciona poeira de sonhos a “A Garden By The Sea” e “The Fountain”.
É nítido que em Cosmorama, tão importante quanto o que se escuta, o tal mundo invisível, é também o que se “vê” porque o lastro conceptual que prende os Beautify Junkyards à terra (ou que não os impede de viajar pelo espaço…) é importante: faz-se de um atento estudo do passado – musical, obviamente, mas também político e artístico, com a sua música a sustentar-se num complexo labirinto de referências em que se encontram artistas plásticos brasileiros, cinematografia da antiga Checoslováquia e respectivas bandas sonoras, uma reconstrução arquivística da história apoiada em livros, jornais e revistas, sobretudo das décadas de 1960 e 1970, da leitura de manifestos que apontavam para diferentes abordagens à relação com a natureza, às convenções sociais, etc. Quem porventura siga João Branco no Instagram, além de obter preciosas pistas sobre a expansão do seu arquivo de livros, discos e revistas (ajudando aliás a entender um tema como “The Collector”, presente no alinhamento deste novo álbum), já se terá maravilhado com as suas colagens analógicas (e João também não se escusa a equiparada criação plástica digital), tudo pistas preciosas para se descodificar as recombinações musicais propostas pelo seu projecto, o mesmo impulso de que Simon Reynolds fala quando se refere à hauntologia: “géneros de tempos idos recuperados e renovados, material sónico vintage reprocessado e recombinado”, como, de resto, já se sublinhava a propósito do álbum anterior.
É portanto de matéria caleidoscópica que se compõe Cosmorama, com dois vectores fundamentais a orientarem a acção estética: por um lado o tropicalismo dos Mutantes, herança que o grupo tem reclamado desde o primeiro registo, que data já de 2013; por outro, a fundacional e particular visão artística dos Broadcast, grupo da malograda Trish Keenan que escreveu o manual de, lá está…, recombinação de folk psicadélica com electrónica pioneira, construindo uma discografia assombrosa que terminou, precisamente, quando os Beautify Junkyards começaram a registar os seus primeiros passos.
Com a ajuda de Artur David, engenheiro de som de longa data do grupo, a operar no estúdio Bela Flor, Kyron e restantes companheiros de aventura refinam a visão que já haviam aprimorado em The Invisible World of…, trabalho que em 2018 sucedeu a The Beast Shouted Love, e cimentam a sua posição no particular ecossistema artístico da britânica Ghost Box, assumindo aliás a importante pole position na proposta de dilatação de catálogo de 2021 do selo operado por Jim Jupp e Julian House, o responsável, uma vez mais, por dar moldura gráfica cuidada à música dos Beautify Junkyards.
“Dupla Exposição”, o tema que abre o alinhamento de Cosmograma, é também o seu manifesto: abre com sample de excerto de tensão orquestral que imediatamente nos remete para outra era, adiciona-lhe flauta de toada folk, e prepara o caminho para a voz de Kyron que ao murmurar palavras como “musgo na pele”, “seiva nos lábios”, “terra nos pés”, “cabelos ao vento”, imediatamente evoca um mundo natural de que nós, confinados entre quatro paredes, parecemos cada vez mais alheados; “presságio”, “galáxia”, “labirinto”, “sonho em câmara lenta”, um “sol submerso” que “desfoca o sentido”… são os Beautify Junkyards a fazer-nos, com as ferramentas da poética, o que os prestidigitadores vitorianos faziam aos visitantes dos Cosmorama Rooms com as ferramentas da óptica. Um menu de psicadélicas sugestões que nos coloca no comprimento de onda ideal para podermos captar tudo o que se segue.
O álbum desenrola-se depois, sempre em “câmara lenta”, por entre as coordenadas em que o grupo se sente mais à vontade, nunca se detendo, no entanto, num único ponto cardeal: se “Zodiak Klub” referencia directamente o laboratório berlinense em tempos operado por Conrad Schnitzler e Roedelius, logo de seguida “Vali” propõe dedilhado acústico e sopro de flauta sobre idílica gravação de campo que combina água que corre fresca e pássaros que cantam livres. E à deriva “stereolabiríntica” de “Reverie”, pode sempre opor-se a cadência “pernambucana” de “Parangolé”, à vénia “broadcastiana” de “A Garden By The Sea” pode responder-se com a fantasia para filme de Dario Argento que “The Fountain” poderia muito bem ser. Os Beautify Junkyards recombinam com autoridade escolástica, reinventam com experiência funda de quem já leva muitos anos a explorar a magia que o som pode traduzir. E logo no arranque do ano deixam uma marca tao forte que, certamente, será lembrada por muitos meses. Havendo justiça, quando se fizer o balanço do ano que apesar de arrancar confinado desejamos que seja diferente do que há pouco terminou, lá se encontrará Cosmorama entre os trabalhos que mais se destacaram em 2021 (e sim, deste lado há pressa para que o futuro chegue o quanto antes…).