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Fotografia: Lois Gray
Publicado a: 15/02/2020

Acompanhados por Nina Miranda, voz dos Smoke City, os portugueses mais assombrados do presente arrumaram o passado recente e prepararam o futuro que está para chegar com um concerto de requinte absoluto.

O mundo invisível dos Beautify Junkyards fez-se ouvir no CCB

Fotografia: Lois Gray
Publicado a: 15/02/2020

As delicadas e complexas tapeçarias sonoras urdidas pelos Beautify Junkyards precisam de espaços especiais que permitam a sua melhor fruição. Espaços que sejam confortáveis para o corpo e para os ouvidos. Escutá-los no pequeno auditório do CCB era, por isso mesmo, proposta irrecusável, sobretudo quando se propunham a aí encerrar um ciclo, na companhia de uma convidada especial, Nina Miranda, a voz de “Underwater Love” dos Smoke City.

Já se sabe que 2020 deverá trazer novo registo à discografia dos Beautify Junkyards estando o sucessor de The Invisible World of…, que já data de 2018, a ser actualmente preparado para a Ghost Box. O concerto de ontem pretendia, por isso mesmo, arrumar uma fase, explorando-se aí o percurso feito desde a estreia em 2012 (“Fuga Nº 2”, tema originalmente incluído no single que marcou o arranque da discografia do grupo no selo da etiqueta britânica Fruits de Mer Records, fez parte do alinhamento) com paragem pontual em The Beast Shouted Love de 2015 (de que se ouviu “Pés na Areia na Terra do Sol” e “Valley of Wonders” )e um mergulho mais fundo no trabalho mais recente que cedeu ao concerto boa parte do seu reportório (“Sybil’s Dream”, “Aquarius”, “Ghost Dance”, “Shelter” e “Manhã Tropical” foram todas interpretadas).

Em palco, começaram por posicionar-se Helena Espvall (guitarra eléctrica e violoncelo), Sergue Ra (baixo), António Watts (bateria), João Pedro Moreira (guitarras acústicas de 6 e 12 cordas) e ainda os vocalistas João Branco Kyron e Rita Vian (ambos a assumirem também os sintetizadores). O que em disco é talvez uma dimensão mais subtil, o lado rítmico e sobretudo o mais percussivo do grupo, em palco ganha novo fulgor ou pelo menos beneficia de uma mais nítida exposição. O kit de António Watts é tudo menos convencional, com um timbalão, woodblock, bombo, címbalos e samples a serem explorados de forma inteligente num deliberado desvio dos típicos timbres rítmicos do rock para se partir em busca de outro tipo de cadências (com assomos tropicais evidentes), funcionando ali a bateria não como mera ferramenta de imposição de tempo, mas como mais uma fonte de coloração sónica nos exuberantes quadros que cada canção dos Beautify Junkyards pinta. E há de facto uma preocupação oposta à do legado “philspectoriano” da “parede de som” com o grupo a entrelaçar-se harmonicamente com algumas bases pré-gravadas expondo os detalhes dos seus arranjos como pequenas jóias que merecem, cada uma delas, apreciação individual.

Atrás de si, os Beautify Junkyards vão tendo imagens que funcionam como sugestões para um universo particular que se faz de uma visão extática da natureza oposta a uma ideia de sobrenatural, combinando, em colagens declaradamente psicadélicas, marcas de um tempo passado com efeitos visuais que afectam os nossos sentidos.

Quando por aqui escrevi sobre o mais recente álbum dos Beautify Junkyards mencionei a ideia de “recombinação” para ilustrar a forma como diferentes fontes saciam a sede criativa deste grupo: da folk pastoral à electrónica mais orientada para o cosmos, do psicadelismo universal às pioneiras experiências sónicas de colectivos como o Radiophonic Workshop que ilustraram documentários e filmes mais ou menos obscuros numa época em que tudo era passível ainda de ser descoberto. E a esses pilares da identidade hauntológica tão bem representada no catálogo da Ghost Box, esta banda junta ainda uma assumida paixão pelo lado mais esotérico da música popular brasileira. No concerto do CCB houve lugar a uma homenagem ao cinema de Glauber Rocha através do tema “Pés na Areia na Terra do Sol”, para a assumida vénia tropicalista que é o tema “Manhã Tropical” e ainda, já em tempo de encore, para uma passagem pelo clássico “Água Viva” de Pedro Santos, autor do clássico de culto Krishnanda (no Discogs podem escolher entre uma rara cópia do original assinada pelo artista e listada por singelos 10 mil euros ou então pela mais recente reedição da londrina Mr. Bongo com um preço naturalmente mais “razoável”).

A ligação a esse Brasil tropical foi tornada ainda mais veemente com a presença de Nina Miranda, vocalista dos (pelos vistos…) tão amados Smoke City de quem se trouxe para o concerto o clássico “Underwater Love”, ontem despido das suas datadas vestes trip hop e reapresentado em tons mais psych folk que a tornaram numa apropriada adição ao alinhamento do concerto. Nina tem uma exuberante e sensual presença de palco que contrasta com a bem mais comedida veia performativa de João e Rita e pode até, por breves momentos, ter por isso mesmo soado ligeiramente deslocada naquela viagem que se apresentou como intimista e recatada, mas a verdade é que a sua voz se encaixou como uma luva (de cetim, claro) no corpo sonoro do grupo, não beliscando nunca, pelo contrário, a integridade sónica do mural erguido pelos Beautify Junkyards.

Houve outras versões evocadas para ajudar a pintar o universo particular deste grupo: do “Coração Vagabundo” a que Gal e Caetano um dia se entregaram ao comoventemente belo “Que Amor Não Me Engana” de José Afonso e ainda à eterna “Song to The Siren” de Tim Buckley por via clara dos This Mortal Coil. Cada uma delas uma espécie de declaração de sérias intenções por parte do grupo: de respeito por quem antes deles fez canções de amores encantados, mas sobretudo de formativa identidade do som que o sexteto tem vindo a solitariamente explorar no nosso país.

A obra que os Beautify Junkyards espalharam por três álbuns e dois singles, inscrevendo diferentes momentos da sua discografia em editoras internacionais de culto, a cuidada apresentação de palco que conseguiram levar até espaços com programação de inegável qualidade como o Café OTO de Londres ou a ZDB de Lisboa culminando agora com esta passagem pelo pequeno auditório do CCB,  e a assinalável atenção de uma imprensa que não deixando de ser de nicho é de referência (da Wire à Electronic Sound e daí até à Shindig!, para dar apenas três exemplos no plano internacional) são tudo claros sinais de um empenho sério que num mundo perfeito deveria ser garantia de futuro. O mundo dos Beautify Junkyards pode ser invisível, na verdade, mas nada nos impede de o escutarmos com a atenção que merece. Fecha-se então um ciclo – aplausos! Venha de lá agora o novo álbum que é importante continuarmos a ser assombrados por esta música mágica e sem tempo.


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