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Fotografia: Paradigm Disc
Publicado a: 05/05/2022

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica Série II | #10: Russian Library / Ondness

Fotografia: Paradigm Disc
Publicado a: 05/05/2022

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[The Twelve Hour Foundation, Stellarays, Ondness, Pulselovers] L Series # 1 / Russian Library

[Listening Center, Aural Design, Demónio António, The Heartwood Institute] L Series # 2 / Russian Library

Nos últimos anos, um constante fluxo de reedições (e, na verdade, talvez o termo “edições” até seja mais apropriado já que em grande parte os originais nunca foram lançados para o público em geral) de library music de vários quadrantes tem exposto uma ideia essencial, que passarei a explicar. Esta música de “produção”, como era também conhecida, era bastas vezes encarada como “menor”, de criação mais ou menos anónima e resultante de orçamentos muito contidos que implicavam sessões rápidas por ensembles de dimensão reduzida. Só dessa forma poderia esta música ser opção para quem, podendo estar a produzir um filme ou um documentário e a ser pressionado por um budget apertado, estivesse necessitado de uma banda sonora barata. Esse poderá, de facto, ter sido o caso, mas o que resultou dessa indústria que nos anos 60, 70 e 80 do século passado respondeu a uma verdadeira explosão da produção audiovisual criando música evocativa, por um lado, mas, por outro, vaga o suficiente para tanto ser capaz de ser encaixada num qualquer policial barato situado algures no bucólico countryside britânico e produzido para a Thames Television, como passível de ilustrar um documentário sobre a produção de cutelaria numa qualquer fundição de Sheffield ou até de suportar um programa educativo para crianças acerca da rede ferroviária na Escócia, o que resultou, escrevia, foi uma sucessão de gerações marcada por essa música “invisível” e anónima, radicalmente distinta dos sons pop que se escutavam na rádio e que escalavam os tops. Décadas mais tarde, o reencontro com essa música finalmente disponibilizada em convenientes edições que chegam às lojas (ao invés dos originais que eram apenas enviados para estações de televisão e rádio ou para produtoras cinematográficas) tinha mesmo que gerar efeitos. A Russian Library é um deles.

A hauntology, como se tem designado esta música que editoras como a Ghost Box, Castles in Space ou, agora e por cá, a Russian Library têm vindo a lançar, vive, precisamente, dessa ideia de assombração permanente por esses espectros da memória que habitam o nosso subconsciente. A discografia da editora comandada por João Paulo Daniel tem vindo a expandir-se paulatinamente, tendo, recentemente, inaugurado uma nova série. Ao Rimas e Batidas, Daniel confirmou a maior proximidade da novíssima L Series com a música acima descrita, explicando também o foco diferenciado em relação à série que inaugurou o catálogo da sua editora: “A nova L Series não substitui a H Series. As duas irão ser editadas em paralelo. A H Series foi fundamental porque ajudou a definir o espectro de acção da Russian Library e vai continuar a sê-lo, em parte devido à sua maior elasticidade formal e estrutural, que se reflecte nas diferentes propostas das suas edições. É, sem dúvida, mais ampla no seu raio de acção. A L Series é um pouco mais rígida nesse aspecto, e talvez a sua característica mais distintiva seja o facto de se tratar de uma série temática, ainda que os temas/ambientes sejam apenas sugestionados a partir de uma imagética difusa. Nesse sentido, podemos encontrar aqui uma relação mais vincada com a library music, e foi por essa razão que não vimos qualquer inconveniente em incluir quatro faixas por edição, diminuindo significativamente o tempo disponível para cada participante. De resto, o mote para a L Series, que constitui um elemento gráfico permanente das edições desta série, é o seguinte: 

‘Sounds to evoke the uncanny and strange reverberations of misremembered imagery and faded cultural memories, not exactly soundtracks for imaginary films, but imagined soundtracks for the half-forgotten and the half-remembered‘”.

Claríssimo, portanto. No primeiro volume da nova série cruzam-se então os The Twelve Hour Foundation, Stellarays, Ondness e Pulselovers (que já tinham inscrito o seu nome na H Series), com cada uma das entidades a entregar um tema com cerca de 2 minutos e meio. E entre a fantasia de tons psych folk dos Twelve Hour Foundation que poderia, de facto, ser uma peça perdida do catálogo da KPM do arranque dos anos 80, o synth pop pastoral dos Stellarays que se faz de uma melancolia pesada, a mais granular experiência conduzida por Bruno Silva, aka Ondness, que soa a incisivo estudo em cima dos ensinamentos do Radiophonic Workshop e, finalmente, o mais pronunciado pulso sintetizado de Pulselovers que por aqui deixa um imaginário lado B para um single dos primórdios da carreira de John Foxx, ficam explicitas as tramas dessa memória assombrada pela música que existiu sempre em fundo e nunca, até agora, tinha ascendido ao primeiro plano. Todos os filmes, documentários e imagens que aqui se evocam existem apenas na imaginação dos criadores destas peças e não numa emissão qualquer recuperada dos arquivos e exibida na RTP Memória. Esta não é, portanto, música acessória.

O segundo volume desta L Series junta no mesmo single o projecto Listening Center (que também já tinha contribuído para a H Series) e ainda Aural Design (João Paulo Daniel), Demónio António (outro nome repetente da H Series) e The Heartwood Institute. Desta vez, escuta-se, respectivamente, uma fantasia de toada motorik que poderia ter resultado de uma sessão para um selo de library do arranque dos 80s em que o compositor, britânico, tivesse recebido um briefing com apenas uma palavra – “Kraftwerk”; mais uma diáfana fantasia folk movida a névoa electrónica, luz reflectida em cordas de aço e um subtil groove desenhado no baixo; outra granular investida pelos terrenos da música de colagem concreta que não destoaria na banda sonora de um filme de terror de baixo orçamento (se tivermos mesmo que ser assombrados que seja por um Demónio António – sempre fala a nossa língua…); e ainda uma mais ambiental peça de paisagismo sépia movida a electrónica distorcida pelo tempo. Tudo pérolas que insistem em quedar-se pelos dois minutos e meio, uma vez mais.

Com nomes com ligações à Ghost Box, Castles In Space ou Polytechnic Youth, a Russian Library reforça aqui nesta nova série a sua posição relevante no mapa astral da hauntologia internacional, mostrando-se tão capaz de apresentar argumentos válidos no plano musical, quanto no do design gráfico que lhes continua a garantir uma muito distinta marca de identidade.



[Ondness] Megadawn / Holuzam

Por esta altura já não restam dúvidas de que Bruno Silva é um dos mais inquietos, desafiantes e estimulantes criadores da nossa mais abrasiva e exploratória cena musical electrónica. Colaborador generoso e participante em múltiplos projectos, Silva também é prolífico criador em modo solitário e dessa forma tem assinado trabalhos como Serpente ou Ondness e espalhado música por importantes catálogos como a Ecstatic, Alien Jams, Discrepant ou Holuzam. Neste último selo lisboeta ligado à loja de discos Flur, Silva lançou em 2019 o fantástico Not Really Now Not Any More a que agora sucede com este Megadawn

Trata-se de duas peças de um mesmo ciclo criativo, facto reforçado pela ligação directa entre os títulos da última faixa do registo anterior, “Torre”, e a primeira do novo, “Torre Revival”. Sobre Not Really Now Not Any More escreveu-se por aqui aquando da sua edição: “há farrapos de techno, texturas abrasivas de espessura industrial, ecos de dub, fragmentos diversos que parecem surgir, livres de contexto, dos restos destroçados de uma colecção de discos erguida entre meados dos anos 80 e finais da década seguinte. Poderia, esta música inquietante, sombria e misteriosa de Ondness, funcionar como a banda sonora para um filme que explorasse essa dimensão paralela dos sonhos, de tons cinza-nocturnos captados na orla da grande cidade…”

Megadawn prossegue a direito pelos mesmos terrenos, mas talvez vinque ainda mais a marca autoral de Silva, um criador que nunca esconde que é igualmente um explorador, no sentido de deter um profundo conhecimento de múltiplas vertentes da música, conhecimento esse que é ferramenta tão importante para a sua produção quanto as DAWs que possa usar para criar as suas obras. E apesar de quebrada e fragmentada, como se reagisse ao que Mark Fisher descrevia como “poluição semiótica”, referindo-se aos incontáveis estímulos, visuais e aurais, que constantemente nos submergem, a sua música vive também de uma evidente carga emocional e de uma inesperada doçura, talvez decorrente da melancolia que a atravessa. O cliché das “saudades do futuro” poderá ter cabimento aqui. Mas o futuro para que a música de Ondness nos impele, essa intrigante Megadawn, embora aceitando todos os passados possíveis, também os recusa enquanto matéria de passiva e marquetizável nostalgia, preferindo tomá-los como ecos que o tempo vai baralhando através dos indescortináveis portais onde os lugares e as Histórias se baralham e misturam. Porque há sempre a possibilidade de Detroit e Mineapolis e Kingston co-existirem num mesmo ponto do mapa quântico, algures entre 1975 e 2042. Bruno Silva parece já lá ter chegado.

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