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Ilustração: Riça
Publicado a: 17/01/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #5: Ondness / Moreno Ácido + Diogo / Luís Fernandes

Ilustração: Riça
Publicado a: 17/01/2020
A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.
[Ondness] Not Really Now Not Any More / Holuzam A terceira entrada no catálogo da Holuzam, primeira parte de uma segunda vaga de edições que sucedeu à apresentação deste selo em 2018 com a reedição de Belzebu dos Telectu e da recuperação de material inédito do projecto DWART de António e Manuela Duarte, é também a primeira investida no presente deste selo ligado à loja de discos Flur. Ondness é uma das dimensões artísticas do prolífico Bruno Silva (que também responde, igualmente em modo solitário, ao nome Serpente ou que é, ao lado de  Carlos Nascimento, parte de Sabre) que, sob esta identidade, conta já com uma dilatada discografia (que em 2019 teve ainda mais uma manifestação, o LP Meio Que Sumiu, lançado na Souk Records). Not Really Now Not Any More inspira-se, refere-se nas notas da editora, na “noção de que estamos constantemente a flutuar em torno de ideias inacabadas”. Essas notas apontam-nos ainda para The Weird and the Eerie, colecção de ensaios do já desaparecido Mark Fisher, em que surge o texto “Eerie Thanatos: Nigel Kneale and Alan Garner”. Nesse ensaio, Fisher explica como Red Shift, de Garner, se inspirou num graffiti, vislumbrado numa estação de comboios, em que se liam as palavras “not really now not any more” por debaixo dos nomes de dois apaixonados. O ensaísta, que também assinou vasta obra como k-punk antes de desaparecer em 2017, explora aí o conceito de “eerieness” (que se pode traduzir por “inquietação” mas que descreve igualmente o que é sombrio ou misterioso), concluindo que a ficção de Garner se foca no poder – “inquietante e misterioso” – dos sonhos e das histórias. Como as que se imaginam poder estar por trás do que por vezes podemos ler de relance escrevinhado numa parede. Percebe-se, escutando este Not Really Now Not Any More (que a Holuzam lançou em cassete e em formatos digitais no Bandcamp) que também a música de Bruno Silva existe, como os sonhos, num estado algo difuso, entre a concretização e a sugestão, numa deriva que percorre as margens entre o que é ambiental e o que ainda vive de um pulsar rítmico, ainda que estilhaçado, que é uma espécie de reflexo distante do continuum que a música electrónica tem erguido a partir da pista de dança: há farrapos de techno, texturas abrasivas de espessura industrial, ecos de dub, fragmentos diversos que parecem surgir, livres de contexto, dos restos destroçados de uma colecção de discos erguida entre meados dos anos 80 e finais da década seguinte. Poderia, esta música inquietante, sombria e misteriosa de Ondness, funcionar como a banda sonora para um filme que explorasse essa dimensão paralela dos sonhos, de tons cinza-nocturnos captados na orla da grande cidade…
[Moreno Ácido + Diogo] Roçadas EP / Holuzam A expressão “record collector’s rock” foi a dada altura usada para tentar descrever a música que certas bandas criaram a partir do impulso oferecido pela cuidada curadoria (e, por uma vez, esse hoje tão esvaziado termo faz real sentido neste contexto) das suas colecções de discos: a música como manifestação de uma paixão específica por outras músicas, por uma era ou por uma determinada corrente. Uma ideia que tanto permitiria entender parte da obra dos Sonic Youth, como praticamente todo o output dos Pavement ou, mais recentemente, o trabalho de bandas como Vampire Weekend ou LCD Soundsystem, por exemplo. A música de dança tem vivido de outro tipo de impulso, muita mais presa a cada momento da sua história, com o contexto agudamente presente da pista de dança como a sua mais vibrante e permanentemente renovada inspiração. Mas nos últimos anos tem surgido, nomeadamente por cá, uma nova geração de criadores que não esconde a sua visão panorâmica da história da música de dança e que explora nas suas obras a inspiração oferecida pelas discografias dilatadas que se podem ter criado a partir da música surgida em cidades como Chicago ou Detroit em meados dos anos 80, na Nova Iorque dos anos 90 e, claro, nas mais contemporâneas Londres ou Berlim. Nomes como Violet, Lake Haze (ambos já por aqui abordados na Oficina Radiofónica), Shcuro ou Photonz podem encaixar-se nesse perfil. Ou a dupla que assina esta edição da tripartida segunda leva de lançamentos da Holuzam, Moreno Ácido e Diogo, com Roçadas EP a merecer prensagem em vinil. Observando vários pontos do longo devir house, Roçadas EP inclui quatro temas que apontam para as experiências acid ensaiadas na Trax Records a partir da descoberta da 303 da Roland (“Roçadas”), ecos dos pioneiros exercícios de imposição da ideia de rave em Inglaterra por agentes como os Orbital (“Verde Grama” tem algo do clássico “Chime”), resquícios do pulsar tribal assumido pelas pistas de Nova Iorque nos anos 90 (“Be Quicka or Be Dread”) e até uma abordagem a ideias mais abrasivas defendidas por gente como Aphex Twin (como sugerido pelas texturas mais graves de “Coisa LEVE”). Dessa forma, a dupla criada por Diogo Vasconcelos e Mário Vinagre traduz, a partir da sua perspectiva agudamente presente e contemporânea, a massa sonora resultante dos sets que desde 2016 foram assinando, separadamente ou em conjunto, em festas em que a memória da pista de dança era sempre uma das coordenadas exploradas.
[Luís Fernandes] Seis Peças Sintetizadas / Holuzam Luís Fernandes tem uma bagagem considerável que se estende a projectos colaborativos, como os mui celebrados Peixe:Avião, e se traduziu, no campo vasto da electrónica, numa primeira existência como The Astroboy (nome com o qual assinou três trabalhos, o último dos quais, Flow My Tears, no já distante ano de 2013) e, posteriormente e já em nome próprio, num percurso que tem estado sobretudo permeável a colaborações (principalmente com a pianista Joana Gama com quem se cruzou três vezes em disco), mas que em 2019 lhe permitiu assinar o belíssimo Demora na australiana Room40 de Lawrence English além de contribuir para um ambicioso projecto ao lado de Black Bombaim, Jonathan Saldanha e Pedro Augusto. E tudo isto, claro, entre apresentações ao vivo e a condução dos destinos do festival de referência SEMIBREVE e da sala gnration, epicentros de uma inegável modernidade bracarense. Seis Peças Sintetizadas fecha o tríptico de que se fez o segundo bloco de edições da Holuzam, conhecendo edição em CD. Nas notas que acompanham esta edição, explica-se que as seis peças referidas no título deste trabalho foram realizadas com um sistema modular (o mesmo utilizado em Demora) e um órgão e que, embora com espaço para a improvisação tal como o anterior registo, estes exercícios são o resultado de uma mais demorada reflexão que foi impondo transformações ao longo do processo de composição, gravação e misturas. As peças, cujos títulos simples com números não abrem espaços para interpretação para lá da compreensão do seu eventual lugar numa sequência criativa, oscilam entre um ambientalismo de colorações profundamente abstractas (“4”), estudos da capacidade hipnótica de arpégios pulsantes (“1”), abordagens ao legado de aventureiros como Conrad Schnitzler no lado mais cósmico da electrónica (7”) e até mergulhos em oceanos de mais abrasivos drones que vão revelando preciosos detalhes texturais quando escutados repetidamente (“5”). E o que se entende nestas criações numeradas de Luís Fernandes é a sua generosa abertura às possibilidades que o desconhecido oferece, quando a voltagem que percorre a máquina é devolvida num conjunto de frequências, assomos melódicos, pulsares rítmicos e texturas sónicas de estranha familiaridade que, afinal, traduzem no seu conjunto a incondicional devoção que o seu autor tem à própria história mais exploratória da música electrónica.

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