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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 23/02/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #115: Total Refreshment Centre

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 23/02/2023

[Vários Artistas] Transmissions From Total Refreshment Centre (Blue Note Records)

Podem as vozes mais “conservadoras” (“teimosas” seria outra palavra adequada) dizerem o que quiserem acerca deste tempo presente do jazz continuum londrino, mas há três factos que são inegáveis quando se pensa nessa “cena” específica: em primeiro lugar, o seu fôlego – devotámos o nosso primeiro artigo a este moderno panorama britânico em 2018, mas as suas raízes são ainda mais fundas, claro; em segundo lugar, a sua capacidade inspiradora – os ecos desta localizada revolução estendem-se de Roma a Melbourne, do Porto a Lisboa, de Paris a Bruxelas, da Cidade do Cabo a Helsínquia e mais além; e, em terceiro lugar, a sua força renovadora – não será, certamente, coincidência que duas das mais respeitadas “marcas” históricas do jazz como a Blue Note e a Impulse! tenham encontrado em solo britânico argumentos para equilibrarem nos seus catálogos os tesouros resguardados do passado e os vibrantes documentos do presente, com a casa que Trane fez a encontrar em Shabaka Hutchings um autêntico dínamo gerador de novas energias e o selo octagenário a avançar já para a sua terceira compilação essencialmente focada no que Londres está neste momento a oferecer ao mundo.

Depois de dois volumes de Blue Note Re:Imagined eis que a editora actualmente comandada por Don Was apresenta Transmissions From Total Refreshment Centre. Em Make Some Space – Tuning Into Total Refreshment Centre (edição de autor de 2019), a jornalista Emma Warren responde a uma pergunta auto-colocada: “O que é, afinal de contas, este Total Refreshment Centre?” A resposta integral consome-lhe as 130 páginas do livro, mas o parágrafo seguinte é eloquente e elucidativo: “Nós já sabemos o básico: trata-se de um edifício industrial na zona em que Dalston se encontra com Stoke Newington e que foi um local de música de grande influência, intermitentemente e de forma quase oficial, durante seis anos. É também um anti-escritório amigo dos artistas, uma tela em branco, uma comunidade, um emblema e um sintoma de gentrificação, uma rede de segurança, um problema, um sobrevivente. O espaço está no centro desta história (…). Vou defender o espaço, argumentando que precisamos de lugares para reunir tanto quanto precisamos de comida, sono, segurança e amor”. Sem dúvida.

Foi por reconhecer o carácter aglutinador desse espaço e, sobretudo, a energia que daí emana, de cada vez que artistas se cruzam no seu palco ou no seu estúdio ou espaços de ensaio, que a Blue Note decidiu avançar para mais uma compilação que toma Londres como a sua mais vigorosa propulsão. Escreve, uma vez mais, Emma Warren nas notas de lançamento deste projecto: “É uma colecção ecléctica e eléctrica que se inspira na nova escola do jazz, mas também no hip hop, dub, soul, funk, e drill: sons que se poderão ouvir a sair dos carros enquanto eles rodam pela Kingsland Road ou a sair em espiral das portas como tanto fumo. Aumente o som para ouvir os jovens parentes do Guru de Jazzmatazz em ecrã panorâmico e em pleno efeito: os melhores músicos de Londres, Chicago e Melbourne procurando novas colaborações, novas formas de trabalhar, ou apenas novas músicas, voltando sempre a essa verdade central – que todos nós precisamos uns dos outros”.

Será dessa constante mistura, dessa benigna contaminação de ideias, de partilha de diferentes heranças culturais, de distintos percursos – uns mais próximos da academia, outros com etapas mais informais – que resulta este som que aceita sem pruridos a ideia da repetição insistentemente explorada nesse outro continuum, mais electrónico e dito hardcore, que fez e continua a fazer a banda sonora dos clubes, da era da explosão acid house até aos híbridos dias presentes em que o pulsar do techno se pode cruzar com cadências da África Ocidental sem que uma única anca deixe de se mover na pista de dança.

A compilação arranca com o destilar contemporâneo do mais cristalino jazz de fusão pelo projecto que une dois dos três elementos dos The Comet is Coming, os Soccer96 de Maxwell Hallett e Dan Leavers, que aqui recrutam o rapper Kieron Boothe que tem o condão de se encaixar como mais um instrumento no denso arranjo em que uma orgânica secção de metais consegue brilhar por cima da nuvem de sintetizadores que envolve a peça que vive de vincada tensão rítmica. O decano desta contida compilação (são apenas sete faixas) é Byron Wallen, trompetista com mais de 30 anos de carreira, que tocou com os Loose Ends e Cleveland Watkiss, Izit, Courtney Pine e tantos outros nomes: pertence-lhe aquele que é talvez o mais espiritual momento do alinhamento – “Closed Circle” mostra-o em emocional deriva, a dialogar com um saxofonista (não identificado nas notas para já disponíveis) sobre arranjo de cordas que chega a acercar-se de modos melódicos que sugerem uma subtil vénia à folk de tonalidades celtas. O mais disruptivo dos momentos, por outro lado, pertencerá ao baterista Jake Long (membro dos Maisha), que nos propõe tensão dub no seu tema “Crescent”, uma densa câmara lenta de tonalidades nocturnas em que brilha o saxofone de Tamara “Colluctor” Osborn e que sugere que a mesa de mistura pode muito bem ser o novo espaço de invenção do jazz.

“Eloquence” dos Matters Unknown de Jonathan Enser (que há dias mostrava no Instagram a sua extraordinária recuperação da amputação a que foi recentemente sujeito e de que nos tinha já falado em Dezembro último) mostra-o a misturar jazz de elegante recorte clássico com os estilismos neo-soul da cantora Miryam Solomon. Já Isa, com Noah Slee, coloca pressão na pista de dança com uma infecciosa clave latina que suporta uma dose de inventiva efervescência, em que o protagonismo é todo entregue a uma muito bem oleada secção rítmica. Os Neue Grafik parecem querer reescrever o clássico “Journey in Satchidananda” de Alice Coltrane a partir da icónica linha de baixo de Cecil McBee procurando na urgência do rap drillado de Brother Portrait e na sua reflexão sobre a negritude uma ligação a este prismado presente. Resta a versão do clássico “Plight” de Charles Tolliver a cargo dos Resavoir de Will Miller, músico e produtor com ligação à International Anthem: é a mais dilatada faixa do álbum, pulsante, espiritual como o original que Tolliver lançou em 1969 no fantástico The Ringer e servida por elegantes solos de sopros sobre orquestração de múltiplas camadas.

A Blue Note sabe que o futuro não se alcança a olhar exclusivamente para o passado e no espírito livre, comunitário e colaborativo do Total Refreshment Centre pode muito bem ter encontrado argumentos adicionais para sustentar a conquista de novos públicos ao longo das próximas décadas.


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