Há quem sustente que uma orquestra de improvisadores deve ter um maestro, dado o número de músicos envolvidos – esse entendimento levou às conductions de Butch Morris e ao projecto Cobra de John Zorn. Em 12 anos de realizações, foi normalmente com este formato que o Ensemble MIA se apresentou no Encontro de Música Improvisada da Atouguia da Baleia (Peniche), com desfechos desiguais entre o brilhante e o menos interessante.
Por outro lado há quem ache, seguindo os princípios anarquizantes (“nem deuses, nem mestres”) da livre-improvisação, que tal opção é um retorno às hierarquias da música clássica e do jazz. Terá sido isso o que pensou Derek Bailey num concerto fronteado por Morris em Londres, abandonando o palco por não aceitar as indicações que lhe iam sendo dirigidas.
No passado dia 11 de Fevereiro, a organização do MIA optou por este último modelo, ainda que com a pré-definição “menos é mais” de ter os sopros (Paulo Chagas, José Lencastre, Michel Stawicki, João Pedro Viegas e Fernando Simões) e a electrónica (Luís Guerreiro, por meio do trompete) a tocarem ao mesmo nível de volume das cordas (Miguel Mira e Maria do Mar), que têm uma projecção sonora menor. Nem sempre esse objectivo foi cumprido, mas abriram-se espaços e os músicos envolvidos souberam quando deviam sair das tramas que colectivamente se iam construindo, para depois entrarem novamente nos momentos certos. Estávamos a assistir a um jogo de adições e subtracções.
Neste âmbito estiveram muito bem os restantes membros da formação, designadamente o baterista Mário Rua, a cantora Maria Radich, o percussionista Carlos Cañao e Guerreiro com as suas máquinas, sempre fiéis à abordagem decidida. Assim foi,também, com Patrícia Domingues, que privilegiou uma intervenção performativa (foi descendo pelas cadeiras da plateia, lentamente e deslizando por entre as pessoas sentadas, até chegar ao palco da Sociedade Filarmónica de Atouguia da Baleia) ao canto, este surgindo apenas quando era oportuno, ou seja, quando tinha algo a “dizer” de pertinente.
O espectro de timbres era imenso, abrindo-se a todas as possibilidades, mas com tantos recursos houve um foco a que poucas vezes se fugiu, a exemplo do que fizeram Chagas no oboé e na flauta, Simões no trombone, Viegas no clarinete baixo ou Radich na voz, quase sempre discretos, mas essenciais para o que ia sendo tecido. Em desvantagem, porque se definiu que não haveria amplificação (com a excepção das electrónicas, muito obviamente), estavam Mira com o seu violoncelo e Mar com o violino, mas foi lindo ouvi-los a furar as ocasionais subidas de intensidade por parte das palhetas e dos metais. Quando havia o risco de se formar uma parede de som conseguiram, até, “convencer” os outros intervenientes para situações mais pausadas e calmas.
A produtora Zpoluras tem por hábito programar concertos ao longo de cada ano para além do festival que se realiza no início de Junho, como se fossem extensões do mesmo. Nunca, porém, com o Ensemble MIA. Tal deveu-se, agora, porque na mesma noite teve lugar a antestreia do filme documental Formas de Silêncio, sobre o MIA de 2022, realizado por Bruno Amaral.
Extractos de alguns concertos do ano que passou são, no filme, intermediadas por entrevistas com Santana (que foi quem, no seu depoimento, falou sobre a música como “forma de silêncio”), Radich, Maria Dybbroe, Elisabetta Lanfredini, Lorena Izquierdo, Guerreiro, Viegas, Paulo Lamas Pimentel, Nuno Rebelo, Carlo Mascolo, Manuel Guimarães, Samuel Hallkvist, Noel Taylor e Yoram Rosilio, habitués do igualmente chamado “congresso dos improvisadores”. Com uma estrutura simples e despretensiosa, o doc não só dá a conhecer as especificidades do MIA como se revela didáctico relativamente ao que é isso que se designa como “música improvisada”, merecendo uma inclusão em festivais como o Indie Lisboa ou o Curtas de Vila do Conde.
No que a cinema diz respeito, é de sublinhar a participação de Olivier Perriquet na actuação do Ensemble MIA. Idealizado e construído por si próprio, o set de projecção compreendia uma pequena caixa de leitura de película, um laptop e um interface de leitura óptica que era dirigido ao ecrã do computador para manipular em tempo real o que os olhos viam na parede. Entre o analógico e o digital, e entre o previamente preparado (hardware e filmagens prévias) e o que acontecia espontaneamente com este processo/sistema, a “invenção” de Perriquet foi uma mais-valia para tudo o que ia sucedendo.