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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 02/03/2024

Um homem do tamanho do seu Burning Desire.

MIKE no B.Leza: um desejo ardente de ser e fazer feliz

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 02/03/2024

No que depender da nossa parte, à terceira não terá sido de vez. Contrariamos, por isso, a máxima que nos aconselha a não voltar onde fomos felizes. Mas quem é que se foi lembrar dessa… Claro que lá voltamos, todas as vezes que pudermos. Pelo menos quando a felicidade se confunde com um concerto de MIKE, voltar tem sido mesmo o melhor remédio. Sobretudo depois de confirmarmos em pessoa tudo aquilo que havíamos dado por garantido na sua música: que Michael Jordan Bonema tem sorrido para a vida tanto quanto ela lhe tem franzido sobrolhos. Seja fé no universo, crença nas leis da atracção ou superstição karmiana, parece que essa vida tão sisuda, cruel muitas das vezes até, lhe tem vindo finalmente a retribuir à medida do seu bom carácter.

Porque em três diferentes discos o apanhámos com a mesma leveza de espírito que o leva aos palcos expurgar dores: no Siroco, deu luz a uma obsoleta cave madrilena a partir de Disco!; no Jardim das Galerias Municipais, deu vida às Noites de Verão de Alvalade, no meio dos seus, à boleia de Beware of the Monkey; já no B.Leza, na passada quarta-feira (28 de Fevereiro) regressou à capital portuguesa — uma cidade que tanta influência teve no seu último álbum (de tal forma que por cá filmou o vídeo de “Ipari Park”), como haveria de nos confessar nesta casa ribeirinha — com o velho desejo ardente de mostrar novo trabalho.

Burning Desire, longa-duração que editou em Outubro passado pela sua 10k, motivou nova digressão europeia, desta vez com paragem dupla em Portugal (Braga seguiu-se no dia seguinte, com concerto agendado para o gnration). Trouxe consigo o já habitual companheiro de estrada, o londrino Jadasea — com quem o vimos, também, das três vezes —, particularmente espirituoso neste terceiro encontro, de inspiração combustível na ponta dos dedos e pálpebras em repouso na maior parte do tempo. Impressionante como, mais presente em espírito do que em corpo, se manteve lúcido o suficiente para, praticamente debruçado sobre a primeira fileira, debitar toda a extensa matéria que planeou trazer ao acto de abertura. Ainda que abafado pelos seus próprios instrumentais — volume escalado em demasia a pedido do próprio —, fez valer a sua mensagem predominantemente contemplativa por entre beats avassaladoramente impróprios para cardíacos que padecem de melancolite.

Com eles veio ainda a irlandesa Salimata (sabe-mo-lo, a sua origem, porque nos disse ela na hora anterior por trás da banca de merchandising oficial do MC sediado em Nova Iorque), por sua vez de espírito bem mais desperto. Não conhecê-la deu azo a uma bela surpresa em noite de favas contadas, sobretudo pelo contraste que impôs à actuação do seu antecessor. Enquanto o primeiro, por muito expressivo que por vezes pudesse ser, não escapou à sua própria carga nebulosa, a segunda optou por não se levar nada a sério perante uma plateia alheia à sua discografia. Apresentou-nos, seguramente em primeira mão para a grande maioria dos espectadores, uma série de temas de OUCH e Mo’Shit, desprovida de DJ, ela própria em controlo das suas pistas, manualmente coordenadas sem grande cerimónia. Mas ver uma pequena figura, de longas e grossas tranças coloridas, a rimar ao estilo (e ao nível…) de gente bastante considerada da era dourada — sobre não gostar de lavar a loiça, ainda por cima — foi o melhor preliminar que, a uma quarta-feira, já para lá do recolher recomendável, nos poderia ter calhado (a menos que Earl Sweatshirt tivesse vindo novamente “fazer presença” a Lisboa…).

É que, na realidade, e sem desprimor para as actuações, apesar de tudo, irrepreensíveis de ambas as partes, o público — bem diferente daquele que habitualmente vemos neste tipo de concertos de hip hop — estava lá para ver MIKE. Será redundante dizer que quem vai a determinado concerto espera ver o respectivo protagonista, mas MIKE configura em si um daqueles casos com asterisco. E isso era palpável na forma como a sala se ia manifestando, não necessariamente eufórica, mas visivelmente sentida, a espaços comovida (em especial aquando do repto em homenagem à sua falecida mãe) com a entrega por parte de um dos mais genuínos a fazê-lo. Quase teatral na sua performance, MIKE não deixou por isso de, mais uma vez, quebrar a quarta parede ao encontro dos seus fiéis ouvintes, que trouxeram de casa a lição estudada precisamente porque a matéria lhes (nos, em boa verdade) diz muito. E as múltiplas declarações de amor à nossa cidade, e à sua gente que nela habita, não chegaram para saciar quem tanto ansiava por vê-lo. Uma, duas ou três vezes.


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