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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Maurus
Publicado a: 12/06/2022

Em Espanha a sentir o peso da caneta.

MIKE no Siroco: promessa adiada mas cumprida

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Maurus
Publicado a: 12/06/2022

Faltavam seis dias para a passagem de MIKE por Paris, quando a fatídica mensagem chegou:

“MIKE ne fait plus partie de la programmation le 29/11/21 à LA PLACE. Tes billets restent valides pour cette date.”

Traduzido para qualquer coisa como “a pandemia voltou a apertar e nem com zaragatoas o MIKE vai poder entrar na Europa. Esse bilhete serve para ver os rappers parisienses que vão actuar no lugar dele, mas há desculpas melhores para vir a Paris”. Pardon my french.

Bom, bilhetes comprados, malas feitas e um concerto de Joe Lucazz & Eloquence (com uma série interminável de convidados) para assistir no centro cultural de hip hop de Paris. A dupla de MCs gauleses tinha reportório bastante para manter as cabeças do público em movimento pendular constante, mas não suficiente para colmatar a falta inesperada de uma das vozes mais carismáticas da nova vaga do underground nova-iorquino. Ainda assim, há coisas piores, convenhamos.

No entanto, uma segunda mensagem entrou logo a seguir à primeira:

“Pour échanger tes billets pour la nouvelle date de MIKE le 11/06/22 ou obtenir un remboursement, contacte aide@dice.fm avant le 26/11/21 18h.”

Très bien… E como uma boa notícia nunca vem só, caso houvesse a eventual — ainda que remota — possibilidade de um regresso à capital francesa (como se uma ida propositada para o efeito não bastasse), o cosmos haveria de conspirar novamente contra este fã inconsolado. Mais uma vez, da descodificação da língua iluminista retiravam-se números tudo menos radiantes. Nova data anunciada numa missiva que rezava algo como: “Olha, esse bilhete vale para ver o MIKE daqui a meio ano, mas ele vem no dia em que o Earl Sweatshirt vai actuar em Portugal pela primeira vez.”

Adivinhem. Bilhete para o último dia do NOS Primavera Sound, no Porto, já comprado à data das infelizes coincidências. Trocar Earl a 300km pelo seu protegido no rap a 1700km? De remota passou a nula a possibilidade. First world problems, rightBien sûr.

Entretanto, foram passando por Portugal nomes periféricos a MIKE, tais como The Alchemist, Navy Blue, Lord Apex ou Fly Anakin; também de Nova Iorque aterrou há dias Masta Ace, acompanhado por Marco Polo, depois da falsa partida de Bishop Nehru, que tinha chegada prevista para o Dia das Mentiras; das passagens de históricos como os Slum Village (em dose dupla) e, directamente de Paris, DJ Cut Killer (figura icónica do clássico La Haine), até às confirmações agendadas por Oddisee ou, mais recentemente, Pink Siifu. Toda esta conjuntura (em grande parte concretizada graças à Versus), que parece ter finalmente aberto, sobretudo, a capital portuguesa às tours europeias de um circuito alternativo dentro do rap, parecia favorável a uma possível escala de MIKE em Lisboa. Seria pedir muito?

Alinhadas as novas datas do autor de Disco! para a primeira digressão do outro lado do Atlântico, Portugal continuou fora da lista de destinos. A primeira paragem — e a mais próxima de casa — passava por Madrid, dia 5 de Junho. E querem ver que…

À terceira é de vez. Novos bilhetes comprados, travessia low cost programada (com ida e volta marcadas para os dias em que Dua Lipa actuava, respectivamente, nas capitais espanhola e portuguesa — para aqueles que, até agora, não acreditavam em coincidências desconexas), e dedos cruzados em orações como “que seja desta…” repetidas até à última.

A hora prometida lá se cumpriu. Primeiro domingo do sexto mês do ano, noite quente no centro de Madrid já atolado de turistas. Portas do Siroco com abertura a apontar para as 21 horas. Ou seja, chegar 15 minutos mais tarde. Dúzia e meia de gatos pingados à espera, sem grande frenesim.

Num país onde se dobra a Velocidade Furiosa (aconteceu na noite anterior e não foi bonito de se ver, especialmente em voz-off castelhana), em que o inglês é língua escassa — e o próprio português se revela imperceptível —, o que se espera de um concerto de MIKE, numa noite de domingo, numa sala de área equivalente à da Galeria Zé dos Bois (espaço que lhe assentava bem melhor, francamente)? 

Descemos à cave dos concertos, corrida a passo lento para a primeira fila, sem grande pelotão atrás. MIKE já está na pequena sala, lateral ao palco, que serve de camarim para toda a comitiva: Jadasea fica encarregue da primeira parte, perante uma plateia — a princípio — tímida e adormecida. O rapper britânico que deu entrada em discos como War in my Pen weight of the world (e a quem King Krule, sob o alter-ego Edgar the Beatmaker, produziu o EP half-life, em 2019) lá vai ganhando a atenção do parco público que, aos poucos, dá alguma força à insegurança e inexperiência do, apesar de tudo, capaz MC. Loops familiares — um deles do célebre Navy Blue, the truest — e letras sofridas preparam o ambiente para o que todos (aqui, poucos) querem assistir.



Das trinta cabeças (contagem confirmada sem grande esforço) — todas elas caucasianas, assinale-se —, abre-se espaço para um à-vontade entre artistas e espectadores atípico. Estranho até. Recorde-se o percurso que nos trouxe à escura e absorta cave do Siroco: uma viagem frustrada, outra abortada e a terceira concretizada. Tudo isto para ver MIKE — não propriamente uma estrela, é certo —, que durante a performance de Jadasea… desce do palco, a meio metro do chão, e se junta aos trinta (com ele, 31 da vida airada) para ser o fã número um do seu convidado. Sorridente, interactivo, brincalhão e até dançarino. Postura que leva, de novo, para o palanque, já com uma turma o mais compacta possível, visivelmente entusiasmada com o arranque da sessão principal.

Talvez Madrid só tenha 28 ouvintes de MIKE, mas, desses poucos, todos eles são, seguramente, bons. Sem dobragens, a maioria acompanha as deixas de temas como “nothin2say (Never Forget)”, “No, No!”, “Evil Eye”, “Crystal Ball”, “Aww (Zaza)”, ou “World Market (Mo’Money)”. Quando o rapper não é abafado pela turma que grita em uníssono frases dos melhores samples costurados em nome de dj blackpower e atirados, na hora, por Taka — “Honey, I love you so/ oh, oh, ohhh/no, no/no, no!”, “Don’t you know I need you to get trhough the light/ Evil eye”, ou “A Rosa ainda é uma menina” —, deixa-se exorcizar pelos versos que canta sem encenações. Suor a escorrer por toda a face, olhos ora cravados para dentro, ora fixados, à vez, em cada um dos espectadores, mão a bater no tecto (novamente, sala pequena para um homem tão grande), e uma performance irrepreensível frente a tão pouca gente. E, mais do que respeito por cada uma das pessoas que apareceu para o ouvir, MIKE mostra que está aqui para se divertir — e que quem quer que seja que se junte é bem-vindo.

No relógio, segunda-feira já se aproxima, mas ninguém quer que a noite acabe. Difícil dizer quem está mais surpreendido: se o público, pela proximidade, entrega, boa disposição e carisma que MIKE transparece, se o próprio MIKE, confrontado com um inesperado calor humano e um carinho especial da parte das três dezenas de pessoas que apareceram para vê-lo na segunda maior cidade da União Europeia. É à ínfima amostra da população madrilena que Michael Jordan Bonema se dirige — rendido: “Madrid, te amo! ‘Mucho’ gracias!

Nós também, MIKE. Até à próxima — se possível, em Portugal.


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