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MIKE

Disco!

10k / 2021

Texto de Paulo Pena

Publicado a: 05/01/2022

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Em 2021 cumpriu-se mais um solstício marcado por MIKE no calendário. Em Nova Iorque, o Verão já não começa sem o aval de Michael Jordan Bonema, ele que desde 2017 — a partir de MAY GOD BLESS YOUR HUSTLE, passando por Renaissance Man (2018), tears of joy (2019) e weight of the world (2020) — tem vindo a inaugurar as épocas estivais com novos discos. E o ano passado não foi excepção: 21 de Junho foi dia de Disco!.

Nascido em Nova Jérsia, mas fragmentado um pouco por todo o lado, MIKE é, como todos nós, um produto das suas circunstâncias — e a sua música é um reflexo nítido disso mesmo. Entre raízes superficiais — de quem conheceu várias houses mas nenhuma verdadeira home — e laços familiares distantes e irregulares (substituídos em sLums, junto de alguns igualmente inadaptados amigos), a depressão, potenciada pela falta de estrutura e estabilidade, e pela consequente desorientação nos anos-chave para o desenvolvimento do carácter e sedimentação da personalidade, sempre sobressaiu como pano de fundo da sua música. E, mais recentemente, a morte da sua mãe também. 

Há, por isso, um continuum na música de MIKE, com a constante vincada nos versos monocórdicos e confessionais, de timbre grave, anasalado e arrastado (com os heyyyyeahhhuhhhhmmmahhh inconfundíveis); nos temas predominantemente introspectivos, em registo de auto-análise permanente, na urgência de uma descoberta interior pacificadora; na produção (assinada em nome de dj blackpower) apoiada em samples emprestados pela soul mais nostálgica, por vezes recolhida da música brasileira, resultando em loops curtos, de pitch elevado, com frases reveladoras do seu estado de espírito.  

Porém, apesar de toda essa compacta estrutura que diferencia a música de MIKE, próxima da linha de Earl Sweatshirt mas, ainda assim, singular ao ponto de merecer, desde cedo, o olhar atento da crítica e o estatuto de rapper de culto em Nova Iorque — cidade onde, finalmente, se fixou —, Disco! foge dessa regra para tons inéditos na sua discografia.

Também à semelhança de Earl, que desceu da posição de “mestre” para estender a mão a MIKE e, mais tarde, o encontrar como par em “allstar” (faixa que fecha o antecessor de Disco!weight of the world), o rapper que estiliza as quatro letras do seu nome artístico em maiúsculas, por referência a uma incontornável influência sua (MF DOOM, pois claro), transparece, neste último álbum, a tal paz (ou, pelo menos, sinais de algo próximo disso) que mostrava procurar nos trabalhos anteriores. 

Para Thebe Kgositsile, esse momento foi em Some Rap Songs, o último LP do ex-Odd Future, de 2018, onde no lugar da amargura se sentiu alguma esperança; uma luz a afastar alguns demónios, que nunca deixaram de pairar sobre estes dois artistas. Já para MIKE, esse momento parece mesmo ter chegado na hora de Disco!, quer por uma aceitação própria que se vai manifestando nesse tom mais pacífico — “Stuck in the midst of it all/ Struggling? Hmmm nah, but I’m recovering/ Soon just to see where you huddling, aww” —, quer pela forma como recorda a mãe — “It’s for my momma when I make raps, dummy, when I pray/ ‘Cause I know she gon’ pray back for me” — em “Aww (Zaza)” e “Evil Eye”, respectivamente. Mas também em “Leaders of Tomorrow (Intro)”, “Center City”, “Babyvillain (in our veins)”, “Endgame”, “World Market (Mo’Money)”, “Crystal Ball” (em especial) ou “Airdrop” há uma resolução denunciada, primeiro, pelos instrumentais uptempo e, depois, pelo fôlego dos versos, explorados em diferentes (e, de certa forma, improváveis) cadências. E, verdade seja dita, estão aqui algumas das melhores canções que o MC e produtor já concebeu.

O próprio título — uma exclamação festiva — antecipa um vislumbre dessa leveza que parece ter invadido MIKE. E a própria capa de Disco! ilustra o rapper com uma reluzente bola de espelhos nas mãos, elevada acima da cabeça, como um sinal de que encontrou alguma luz interior no seu reflexo. “Don’t you know I need you to get me through the light” — uma cura que nos vale a todos.


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