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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/02/2019

Massive Attack no Campo Pequeno: é preciso contar o lado negro da história

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/02/2019

O muito ansiado regresso dos Massive Attack a Lisboa deu-se ontem, dia 18 de Fevereiro, no Campo Pequeno. A primeira de duas datas em solo nacional trouxe o mítico terceiro disco do grupo, Mezzanine, tocado na íntegra, mas não só.

Com ambas as datas esgotadas, provou-se que o disco ainda se quer ouvido fora dos nossos quartos, dos nossos auscultadores ou aparelhagens. E percebe-se até pela fama que os Massive Attack (e mais especificamente 3D) têm de agitar o que nos vai na cabeça, com espectáculos sempre muito políticos, pensados e conceptuais em que a vertente visual se mostra sempre acutilante. Já assim era antes. Desta vez a promessa chegou a outras dimensões, com a intervenção do documentarista e jornalista Adam Curtis, com quem o grupo já tinha colaborado em 2013. A cargo da parte visual de Mezzanine XX1, Curtis expressou com exactidão os conceitos explorados tanto para esta tour, como para o que foi feito há 21 anos.

Em entrevista ao Público, Robert Del Naja, homem do leme do colectivo, confessava a preocupação de não cair na nostalgia de reproduzir ordenadamente o disco na íntegra para celebrar o marco que foi. Mezzanine XX1 é uma reflexão “sobre a nossa história comum das duas últimas décadas”. Olhando para o álbum e para os alicerces da sua produção (nomeadamente nos samples que o fundam), o espectáculo é pensado sonicamente por esse prisma. Mas já lá vamos.

Com pontualidade britânica, o duo de Bristol entrou acompanhado de alguns instrumentistas (que em número crescem ou diminuem consoante as necessidades ou vozes de cada faixa) com os cintilantes flashes de luz dos ecrãs, enquanto se ouvia a intro do espectáculo. Seguiu-se a adaptação de “I Found a Reason” dos The Velvet Underground. Uma sonoridade bem mais soalheira que aquela que pontua o disco que os Massive Attack vêm reinterpretar. Tal como 3D disse: não há lugar para nostalgias, não é disso que se trata. No vídeo de Adam Curtis surgiram cenários que retratam a fama, a alienação social hedonística de olharmos para o entretenimento e para as coisas boas da vida num mundo com um lado tão negro. “Em tempos os dados iam libertar-te”, apareceu no ecrã, introduzindo assim uma das temáticas mais relevantes para este espectáculo: a tecnologia, o mundo dos algoritmos e da vida online. No meio de tudo isto entra “Risingson”, tema que sampla a faixa do grupo de Lou Reed que foi tocada antes.



Esta forma de antecipar as faixas pelos samples preconizou a estrutura geral do concerto: adaptar a faixa que é samplada, e de seguida a música que usa o mesmo sample. Del Naja assumiu a dianteira e a sua voz foi usada para estas adaptações. “10:15 Saturday Night” dos The Cure prometia o aparecimento doutro muito famoso sample de Mezzanine: John Bonham na bateria de “When The Levee Breaks” de Led Zeppelin IV. O mesmo aparece com a frase “agora é o teu mundo”. “Man Next Door” trouxe-nos a primeira intervenção de Horace Andy, o cantor de reggae que acompanhou toda a discografia de Massive Attack. E veio enquadrado com mensagens de teor orwelliano, sugerindo que a data nos persegue, que nos calcula todos os passos. “If you liked that, you’ll love this”. Adam Curtis e todo o colectivo identificaram, sem grandes dificuldades, elementos e contornos da nossa sociedade manipuladora.

Elizabeth Fraser (Cocteau Twins) cantou pela primeira vez na hipnótica “Black Milk”. A constituição da banda, chegou a ter 9 elementos em palco, demonstrou a complexidade que está na reprodução deste álbum, considerando as várias camadas de produção, instrumentos e samples que o constituem. O refinadíssimo trabalho de som deste disco ainda é fonte de estudo — e é justificadíssimo.

Com palavras e expressões que apelam constantemente ao mundo virtual, as letras e temáticas de Mezzanine — e mesmo do sucessor 100th Window — previram onde estaríamos em 2019. “Shared”, “Augmented”, “Connect”, “Join”… tudo palavras com que lidamos diariamente. A falta de capacidade de saber o que é real e fictício rodeia o tema desta faixa e é uma dinâmica comum aos nossos tempos que o grupo pretende aqui expressar. O ambiente transe de “Mezzanine” terminou numa explosão percussiva catártica que ganhou força no registo ao vivo.

“O passado preencheu a nossa visão e começou a tapar o futuro”, mostrou-nos o vídeo ao som de “Bela Lugosi’s Dead” de Bauhaus, com um dos momentos mais misteriosos e cativantes proporcionados pelo documentarista inglês. “Exchange” puxou o baixista para um contrabaixo eléctrico, com imagens violentas paradoxalmente interpoladas com outras ostensivas em que a dança e diversão predominavam. Assim repetiu: ao lado de um vídeo de um leilão de escravos, apareceu a serenidade do campo. Esta dicotomia foi explorada constantemente no concerto, mas também sentida na música. Querem lembrar-nos que o mundo está cheio de coisas erradas. Mas somos informados disso mesmo da mesma maneira que consumimos tudo nos nossos dias: os vários cenários chegam-nos com tanta facilidade que é difícil interiorizar tudo. Facilmente olhamos com indiferença as imagens que vemos.



Reforçando sem pausas o conceito do espectáculo, “Dissolved Girl” começou através do motor de busca que se via em vídeo nas costas da banda. Ao executar a pesquisa, os instrumentos surgiram inteligentemente com imagens de pessoas aleatórias a tocar versões da música que figurou no clássico Matrix.

No meio de todo o mundo digital alienado, o grupo trouxe de volta das mensagens mais importantes que tencionou passar: “Fora da cúpula do prazer, as guerras intermináveis continuaram”. Ao som da cover de “Where Have All The Flowers Gone?” de Pete Seeger, e com a voz de Liz Fraser, víamos imagens de guerra, ao lado do Feiticeiro de Oz, e ainda de Putin e Trump (este último recebe uma reacção negativa mais efusiva que o anterior…).

O estado passivo e alienado da frase “It can cause a ‘nod’; sedated, dream-like state” referiu-se, claro, tanto a “Inertia Creeps” como aos efeitos causados pelos inúmeros comprimidos para atenuar a dor que são enumerados nos ecrãs do Campo Pequeno. A cover da punk “ROckwrok” dos Ultravox (samplada na música anterior) foi acompanhada por imagens relativas à autoridade e ao controlo.

Foi curioso vermos menos telemóveis neste espectáculo, considerando tanto o tema abordado, como o contexto de concerto que conhecemos actualmente: grande parte das audiências vêem música ao vivo a partir de um ecrã, com excessos de Insta Stories, tweets, partilhas, seja o que for. Claro, os gadgets tiveram de surgir em dois momentos: Horace Andy regressou para a “Angel”, uma das mais celebradas do concerto, e seguiu-se logo “Teardrop”, clássico em que quem brilhou foi Elizabeth Fraser. Apesar da falta de vontade de criar a sensação de nostalgia, foi impossível não notar na exactidão com que algumas das faixas foram reproduzidas no concerto, como que as ouvíssemos nuns auscultadores.

E tivemos direito a uma surpresa completamente imprevisível: a banda tocou “Levels” do produtor sueco Avicii. Talvez tenha sido em memória do artista, talvez tenha sido tocada ironicamente – até porque vem acompanhada de animações de futebol, sugerindo a intensidade do entretenimento e da publicidade. Concluiu, no entanto, com a expressão “Endless Freedom”. Fica aberto para a interpretação de cada um.

Entrava a última música do concerto, “Group Four” e fechava-se o espectáculo com vozes divididas entre 3D e Liz, mas também com uma das premissas da tour. A ideia de que a realidade, o presente e o passado, e a nossa imaginação se fundem e confundem. A eterna alienação intensifica-se quando o mundo virtual também ganha mais e mais espaço nas nossas vidas. Daí a indiferença… Após centenas de imagens a fervilharem para, uma vez mais, expressarem os contornos do mundo contemporâneo, o som acabou: “Estamos presos numa espiral”, concluindo que o futuro ainda está por construir.

“See a Man’s Face”, a música de Horace Andy cantada pelo próprio, trouxe Massive Attack às suas origens com o dub e a música de soundsystem, de volta aos tempos de Blue Lines, com o começo do trip-hop. Foi acompanhada pelas várias frases prometidas ao longo dos tempos, desde “Yes We Can” a “Liberté, Égalité, Fraternité”, evidenciando as motivações (honestas ou não) de políticos, altas figuras da religião, e tantos outros. A faixa apareceu a seguir a “Exchange”, versão com a voz do cantor de reggae. Encaixaria bem como final do concerto, com o ambiente mais tranquilo e alegre da música, mas Robert Del Naja avisou: não era suposto esperarmos por um fim à Hollywood!

21 anos depois, os Massive Attack ainda querem contar o lado negro da história.


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