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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 27/08/2024

A pop na canção de protesto.

Luca Argel: poesia no espelho da sociedade atual

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 27/08/2024

[O Amanhecer da Humanidade]

Luca Argel nasceu no Rio de Janeiro, no dia 5 de junho de 1988. Como tantas aves migratórias, voou do Brasil para Portugal, onde se instalou no Porto, cidade que acolheu a sua arte como se acolhe um pássaro exótico numa árvore centenária. Cantautor, poeta e contador de estórias, Argel construiu uma obra multifacetada, entrelaçando música e poesia com um fervor de intervenção que reverbera como um eco distante, mas persistente, das canções de protesto de outrora. Mas Luca Argel não é apenas um músico de intervenção; é também uma voz da pop, uma voz que canta e grita as verdades incómodas que preferimos silenciar. Com uma poética que ressoa James Joyce na fluidez das palavras e Gertrude Stein na estrutura repetitiva e quase hipnótica, Argel insere-se numa nova geração de músicos que usam o palco como arena de contestação, onde a palavra é a arma e a melodia o escudo.


[Intervenção #01: “Lampedusa” — O Mar Como Espelho de Desespero]

Nas ondas de “Lampedusa,” Luca Argel navega com a precisão de um marinheiro que conhece bem o mar e os seus perigos. A letra, construída em versos que ondulam como as marés, evoca uma travessia que é tanto física quanto espiritual. “Quantos olhos te vigiam / E escorres das mãos / Que tentam te agarrar / Não tens porta nem janela / Com que te possam fechar”. A música transforma-se numa espécie de elegia para os migrantes, os perdidos, aqueles que o mar leva e devolve, ora em vida, ora em morte. É uma canção que não esconde a dor, que se entrega ao desespero, mas que, ao mesmo tempo, busca na profundidade das águas um reflexo de paz inalcançável. Argel utiliza timbres marítimos, com sons que parecem vir das profundezas de um piano oceânico, para criar uma atmosfera sonora que é ao mesmo tempo envolvente e inquietante, uma narrativa submersa na melodia. O vídeo que acompanha o tema é uma interpretação em estúdio — um piano e uma voz — num cenário a preto e branco que amplifica o tom melancólico e trágico da canção.


[Intervenção #02: “Gêmeos” — O Duelo Interno que Todos Enfrentamos]

Em “Gêmeos,” Luca Argel mergulha numa batalha interna, um combate entre dois eus que coexistem, mas que se rejeitam. “Vivem dentro de mim / Dois demônios rivais / Um vai ao botequim / O outro à casa dos pais”. A duplicidade, a dualidade de ser e não ser, de querer e não poder, é capturada em versos que são tão lúdicos quanto sombrios. A música é construída sobre uma base de ritmos pulsantes, quase como o bater de dois corações que não se conseguem sincronizar. A instrumentação é constituída basicamente por um piano eléctrico e percussões, e reflecte essa luta interna, com acordes que se chocam e se entrelaçam, criando uma tensão que nunca é resolvida. O vídeo, com suas imagens fragmentadas e espelhadas, reflecte essa dualidade, criando uma experiência visual repetitiva num estilo escheriano de escadas e muros num cenário urbano, que é tanto desconcertante quanto cativante.


[Intervenção #03: “Sabina” — O Sussurro da Resistência]

“Sabina” é uma canção que se insinua como um sussurro, uma melodia que fala de resistência, de força silenciosa. O título remete-nos a uma personagem que, embora aparentemente frágil, carrega em si a força de uma tempestade. Argel constrói a canção sobre uma base minimalista, onde cada nota é escolhida com precisão cirúrgica, como se cada som fosse uma palavra não dita, uma resistência implícita. A letra, ainda que simples, é carregada de uma poesia que fala mais do que aquilo que está à superfície, sugerindo uma profundidade que apenas os atentos conseguem captar.


[Intervenção #04: “Peça Desculpas, Senhor Presidente” — A Voz que Não Se Cala]

Nesta canção, Luca Argel não se contém. “Peça Desculpas, Senhor Presidente” é uma denúncia directa, uma acusação envolta em melodia. A letra, afiada como uma lâmina, corta através das mentiras e hipocrisias dos poderosos. A música é um reggae, um avanço inexorável que não permite recuo. Argel mistura elementos de samba com ritmos mais contemporâneos, criando uma fusão que é, ao mesmo tempo, familiar e inovadora. O vídeo é um ballet entre dois corpos masculinos num bar e reflecte a urgência da mensagem, uma urgência que é amplificada pela força da música.


[Intervenção #05: “O Rio Que Passa” — A Vida Como Fluxo Constante]

“O Rio Que Passa”, uma colaboração com a cantora Jacque Facheti, é uma meditação sobre a impermanência, sobre a vida que flui como um rio, sem parar, sem olhar para trás. Com base num poema de Fernando Pessoa, Argel constrói a canção com uma fluidez que reflecte o movimento constante da água, uma melodia que corre suavemente, mas que esconde uma correnteza poderosa. A letra, com a sua simplicidade aparente, é uma reflexão profunda sobre a passagem do tempo, sobre o que deixamos para trás e o que levamos connosco. O vídeo, com imagens do rio Tejo e suas correntes, é uma metáfora visual que complementa perfeitamente a música, criando uma experiência que é tanto auditiva quanto visual.


[Intervenção #06: “Países que ninguém invade” — A Utopia da Paz Interior]

Em colaboração com A garota não, “Países que ninguém invade” é uma canção que sonha com um mundo onde a paz é possível, onde as fronteiras são invisíveis e onde o amor dissolve todas as zangas. “A fala curta como um mantra / E os cabelos longos de cometa”, canta Argel, numa letra que mistura o sonho com a realidade, a poesia com a política. A música é etérea, quase como um mantra, uma repetição hipnótica que nos leva para um lugar onde os conflitos desaparecem e a harmonia prevalece. O vídeo, com imagens íntimas numa casa onde corpos repetem gestos do dia-a-dia, reforça essa utopia, criando um cenário onde a paz não é apenas um ideal, mas uma realidade.


[Intervenção #07: “Direito de Sambar” — A Dança Como Ato de Resistência]

“Direito de Sambar” nasce de uma canção composta por Oscar da Penha e é uma afirmação de liberdade, uma declaração de que, mesmo em tempos de repressão, ainda temos o direito de dançar, de expressar alegria. A música é um samba enérgico, com ritmos que convidam ao movimento, mas que, ao mesmo tempo, carregam uma mensagem de resistência. “É proibido sonhar / Então me deixe o direito de sambar”, canta Argel, numa letra que é tanto um lamento quanto um grito de guerra. O vídeo, com imagens de protestos e danças de rua, captura essa dualidade, mostrando que, mesmo na adversidade, ainda podemos encontrar formas de expressar a nossa liberdade.


[Intervenção #08: “Agoniza Mas Não Morre” — O Samba Como Símbolo de Persistência]

“Agoniza Mas Não Morre” é uma homenagem ao samba, uma declaração de amor a um género que, apesar de todas as dificuldades, continua a viver, a respirar, a inspirar. Esta nova versão do original de Nelson Sargento é construída sobre uma base de samba tradicional, mas Argel adiciona-lhe elementos contemporâneos, criando uma fusão que é, simultaneamente, reverente e inovadora. A letra, com a sua simplicidade poética, é uma celebração da resistência, da capacidade de continuar, mesmo quando tudo parece estar perdido. O vídeo minimalista ilustra o cantor em frente de uma parede que funciona como uma folha em branco onde vai sendo escrito um poema, e é uma celebração visual que complementa perfeitamente a música, criando uma experiência que é nostálgica e contemporânea em doses iguais.


Luca Argel // Sabina

[Última Contestação]

Luca Argel é mais do que um cantautor; é um poeta, um contador de estórias, um videasta, um artista conceptual, um ativista que usa a música como arma de contestação. As suas letras, carregadas de poesia e intervenção, são espelhos da sociedade em que vivemos, reflexos das lutas e dos sonhos de uma geração. A sua voz, suave e tranquila, contrasta com a intensidade das suas palavras, criando uma dualidade que é tanto desconcertante quanto cativante. Os seus arranjos musicais, idiossincráticos e belos, são uma prova do seu talento como compositor, enquanto os seus videoclipes, arrojados e inovadores, mostram o seu compromisso com a arte em todas as suas formas. Luca Argel é, sem dúvida, uma voz indispensável na música portuguesa contemporânea, uma voz que canta, protesta, e nos faz refletir sobre o mundo em que vivemos.

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