Vezes há onde se cumpre um passado, mesmo quando parece haver um lugar sem tempo. Os nocturnos funcionam como peças estilísticas para piano solo tocadas nos seus primórdios no lusco-fusco na passagem para a noite em diante, inspiradas e destinadas a evocar os seus mistérios. Séculos passados após surgirem, os nocturnos ainda se ouvem como peças musicais nesses desígnios dos movimentos entre silêncios que melhor sustêm os solitários e delicados sons noctívagos.
A compositora e pianista Kara-Lis Coverdale sentou-se ao piano na blackbox do gnration para uma prestação sublime, elevando-se nos seus nocturnos, devolvendo uma estreia de peças que hão-de constituir o seu futuro registo discográfico lá para os finais do ano. Caía o dia, imaginávamos que fora sumia a luz, afinal pelo relógio seriam umas seis e muito pouco da tarde, nesse anoitecer de sábado marcado como 18, num Janeiro até aí deveras luminoso.
“Delicadas teias, tecidas sem pensar, se nessa apanharmos o jantar, amanhã levantaremos voo.” Palavras de uma tradução livre daquelas utilizadas por Kara-Lis para fazer acompanhar a beleza dos sons no nocturno “Fireflight” como contribuição para a compilação Piano Day Vol. I em 2022. Foi (a)final, feito desígnio sem mácula do concerto que se haveria de escutar, em grande medida feito de estreias absolutas de peças inéditas. Afinal as vindas de Coverdale a Braga trazem essa aura do lugar do novo. Já na anterior passagem, aquando da edição atípica do Festival Semibreve em 2020, confinada ao Mosteiro de Tibães, apresentou a nova peça “In Charge of the Hour”, que se tornou efémera no escutar. Permaneceu inédita, sobeja fortuna de quem a ouviu no momento. Igual sorte para quem esteve presente na repleta sala escura do gnration, neste dia, um dos primeiros do programa do longo ano da Braga 25 – Capital Portuguesa da Cultura.
Kara-Lis Coverdale, que acedeu ao nosso convite das perguntas, partilhadas a tempo, e disso feitas como que duma folha de sala ao concerto. Deixou antever o que se iria ouvir, segredou em voz alta o seu eu noctívago: “Sinto-me mais viva e em paz como uma criatura nocturna, em comunhão com tudo o que sai para soar na escuridão”. A música que se vai escutando a transparecer as palavras ditas. Ouvem-se centelhas luminosas, que ascendem nesses voos colunares desde o fogo, ou noutras peças que evocam a fosforescência dos seres luminescentes, por terra, ar ou nas águas. Surgem como que vivazes quando Coverdale aborda as notas mais cimeiras na escala dos sons, e são processos recorrentes como que a tenderem para o infinito do tempo. Ficamos elucidados quando diz sair da escuridão, havendo aí “uma visão inversa que acho bela; mundo invisível completamente imperturbável”.
Em palco, os movimentos das peças vão sendo encadeados e apenas o desfolhar das partituras — postas de par-em-par — ousa interromper a descrição da paisagem sonora que assim se apresenta como numa suite integral. Também nisso houve mistérios, ficámos sem saber como designar cada movimento. Houve sim a dinâmica dos momentos do som, como referia em relação ao seu processo composicional. Tratando-se afinal como que “coisas de pássaros”, em que “sons como estes não podem ser constantes e têm de estar em movimento”. Coverdale demonstrou estar a percorrer graciosamente os trilhos que são os seus, mas o melhor disso é que o faz nesta generosa e franca partilha em palco. Ouvimos, vendo ali diante, uma fabulosa parte dessa observação, complementada com a revelação “desses mistérios que menos se vêem”, mas que estão aí em nosso redor. Kara-Lis Coverdale é por este tanto uma dessas imprescindíveis mediadoras disponíveis neste inestimável, porém efémero, presente.