Jim Black. Asger Nilssen. Julius Gawlik. Felix Henkelhausen. Quatro cabeças pensantes, capazes de controlar músculos, membros, órgãos e tudo o resto que emprega estes quatro corpos ao serviço de uma gloriosa e intensa massa sonora que, como seria de esperar, entusiasmou de sobremaneira o público que voltou a lotar a plateia (e respectivo espaço circundante) do Largo Dr. Martins Lima, em Barcelos, mesmo em frente ao Theatro Gil Vicente, Barcelos, cidade onde decorre a 9ª edição do festival Jazz Ao Largo.
Um par de horas antes do concerto, ao jantar, o veterano baterista norte-americano (actualmente baseado na Suíça) explicava, em conversa franca e aberta, que este colectivo nasceu da sua actividade docente em Berlim: “Lembro-me de um dia vir a subir um lance de escadas e de escutar a prática deste tipo”, recorda, apontando para Asger Nilssen, “e de pensar: ‘não é o melhor saxofonista do mundo, mas tem aqui algo de distinto, um fogo que é verdadeiro e que realmente queima’”.
Terá nascido nesse momento o impulso para criar um novo quarteto, com recursos humanos recrutados directamente nos corredores do Jazz Institute de Berlim. Sem instrumento harmónico em primeiro plano, este quarteto com secção rítmica clássica e dois saxofones — alto e soprano — na primeira linha teria sempre que viver de destilação energética pura, fórmula já muito rodada, mas que, ainda assim, rendeu um belíssimo trabalho inscrito no catálogo da incontornável Intakt em 2023, Ain’t No Saint. Jim & The Schrimps. Há outra história por trás do nome, que passa pelo tamanho dos jovens membros do grupo — “they’re tall as shrimps”, disse Jim Black — e por uma irónica “germanização” da palavra em inglês, mas não vale realmente a pena relatá-la aqui, para lá de mencionar que Black tinha perfeita consciência do quão “errado” o nome poderia soar nos círculos do jazz. Resquícios de uma atitude algo punk, certamente.
O concerto que Black e os seus Schrimps ontem assinaram em Barcelos pode ter tido um arranque tremido, devido a alguns problemas técnicos com um dos pickups do contrabaixo e também com a captação da tarola da bateria, mas após alerta vindo do palco a coisa foi rapidamente resolvida e os nossos ouvidos puderam concentrar-se no que era realmente importante: a música.
O som de Jim & The Schrimps vive de um óbvio peso rock, de uma empatia afinada de forma séria e de um real espírito de aventura que permite ao quarteto soar, a um tempo, coeso e capaz de providenciar espaço para que todos se estiquem até onde a imaginação dita. Jim Black é um líder generoso, que não se esquece que tem por principal missão providenciar uma fundação sólida para que os solistas possam brilhar, o que faz com a elegância musculada que há muito é sua imagem de marca, mas que também oferece a segurança e a inventividade que inspira em tempo real os seus companheiros. Ele é o Pepe desta selecção.
A estrela é, indubitavelmente, o saxofonista alto dinamarquês Asger Nilssen, jovem ruivo que se apresentou com braço direito engessado, facto que não pareceu limitar-lhe o ímpeto. Nilssen sola com admirável desenvoltura técnica, em franca combustão que incendeia os restantes companheiros, apresentando discursos arrojados, com ecos dos mestres que importam, mas também com nervo que só pode ser do presente. O alemão Julius Gawlik, saxofonista tenor, pareceu demorar a aquecer, mas quando atingiu a temperatura de fusão foi capaz de ombrear de igual para igual com o companheiro do lado, gizando uníssonos de perfeita sincronia, e partindo para derivas pessoais quando importavam que também arrancaram justificados aplausos. O walking bass de Felix Henkelhausen, músico que passou o dia com uma t-shirt dos Death Grips que só trocou para subir ao palco, depois de resolvido o seu problema técnico, apresentou-se com a sinuosidade necessária, envolvendo as figuras alternadamente complexas e simples de Jim na bateria como uma espessa geleia sonora.
Tudo isto acontece no coração de uma cidade onde ainda é possível voltar o olhar para cima e apreciar o firmamento, sem grande poluição visual, numa praça rodeada de história e de vida presente, moldura perfeita para o som de um grupo que também vive da experiência acumulada pelo líder em múltiplos contextos ao longo das décadas, por um lado, e da sede de amanhã do jovem trio de companheiros que, percebe-se rapidamente, souberam largar o lastro do cânone apreendido na academia. Tudo certo. Ficamos nós a ganhar.