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Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/03/2020

No conforto do lar com Afonso Cabral, Cassete Pirata + Joana Espadinha, Bispo, Mirai, Marta Carvalho, Prodígio e DJ Ride.

Festival Eu Fico em Casa – Dia 3: primeiro estranha-se, depois entranha-se

Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/03/2020
Bem perto da câmara, Afonso “You Can’t Win Charlie Brown” Cabral, com a planta no canto da sala a dar aquele ar cozy ao enquadramento, vai-nos entregando, de guitarra acústica em punho, algumas das canções da sua estreia em nome próprio, Morada. Canta “Inércia”, por exemplo, uma canção sobre o dolce far niente do Verão que nos faz pensar, precisamente, em quão distantes parecem esses dias agora. Afonso também cantou uma canção que escreveu para Cristina Branco que, ressalva, “deu ontem uma lição de canto aqui mesmo, apresentando-se acapella“. Totalmente verdade. E, claro, a Cristina também o aplaude, através dos emojis criados para o efeito. Mas o Afonso também nos dá lições, à sua maneira: “rodeado” de amigos que se revelam no feed de comentários, ele canta como quem está cara a cara com as pessoas de quem gosta, sem problemas em expor a sua voz mais íntima que se espraia nas canções como um corpo na toalha num dia de sol. “Isto é tão estranho”, repete ele. Mas ninguém diria, vendo-o assim rendido às suas canções, cantando como se soubesse que nos pode salvar a todos. E salvou mesmo. Durante meia hora, pelo menos, salvou. E trocou-nos o passo e apertou-nos o coração. Também é preciso.

– Rui Miguel Abreu


Cassete Pirata e Joana Espadinha iluminados por velas, mais uma planta no canto da sala, uma guitarra e um teclado e canções e harmonias. E enquanto o senhor Pirata canta, a Joana vai rindo dos piropos dos amigos, criando assim uma atmosfera de cumplicidade e reforçando, uma vez mais, a ideia de que estamos todos juntos. E estamos mesmo, que o mundo é bem mais pequeno do que o Instagram às vezes deixa crer. “O melhor ainda está para vir”, harmonizam eles. Claro que sim. Curiosamente, há dois telefones, um para cada artista, a transmitir a apresentação nas respectivas instacontas, e, portanto há dois conjuntos de amigos que somados ultrapassam as duas mil almas. Que todos caibam ali na sala, eles e a Arlinda, a gata que derruba um dos telefones e que acaba ao colo da Joana, é que é extraordinário. Num dia em que Anthony Hopkins se mostrou ao mundo ao piano com o seu gato, faz sentido a Arlinda também querer aparecer. Só torna tudo isto, aliás ainda mais ternurento. E lá se enchem os nossos corações… os nossos e os da família que está na Vidigueira e que certamente não deve ter contido uma lagriminha quando a Joana deu voz a um lindo amor. Bem bonito.

– Rui Miguel Abreu


Quem já seguia Bispo nas redes sociais certamente estaria a par do lançamento do seu último álbum. Mais Antigo está disponível desde sexta-feira passada e este foi justamente o primeiro teste a um trabalho que o próprio artista revelou ao Rimas e Batidas estar ansioso por testar junto do público. Respeitador da quarentena e do relógio, fomos recebidos às 19h30 numa espécie de escritório/adega lá de casa – a horas e com um copo de vinho na mão. Como a grande maioria dos outros artistas, este foi o seu primeiro concerto em directo para as redes e, mais importante, sem plateia. Talvez por isso mais descontraído. A setlist não era difícil de adivinhar e começou mesmo com “NÓS2”. Um “golo”, como ele gosta de dizer. E não fez por menos. Bispo não se limitou a declamar as suas rimas, entrou na vibe e, com a voz que tem, cobriu o refrão de Deezy o melhor que pôde para entretenimento do público. “’Tou a virar cantor hoje. Quem não tem cão caça com gato”, disse. Mais Antigo é um álbum pessoal, e isso viu-se na estreia ao vivo de “Aviola II”. Sobre o tema disse somente que “aquilo que não se fala, hoje estou a falar contigo”, e preferiu não adiantar mais remetendo-nos para a letra da música, que é melhor ouvirmos por nós próprios. “Com fome” – palavras suas –, Bispo seguiu disco adentro aprofundando um pouco o contexto de cada faixa e o próprio disco. Golo a golo, entre o copo de vinho e os singles, a audiência foi subindo até aos 18 mil “dinâmicos” numa actuação que prova que este artista é como o vinho – quanto Mais Antigo, melhor. “Lembrei-me” foi um dos pontos altos da actuação. “Fiz este som no dia de anos da minha cota (…). Liguei aos meus dinâmicos e às 2h30 estávamos no estúdio”, contou depois de confessar o papel fundamental do vinho no processo criativo. Há que reconhecê-lo, este rapper adora o seu “sumo d’uva”. Mas isso não foi tudo o que houve de bom. Para fechar a meia hora de transmissão, “Essa Saia” contou com o feat e solo de Ivandro através do telemóvel. Um momento para recordar no concerto mais descontraído do dia do festival.

– João Daniel Marques


Enfrentar uma grande audiência não é fácil, principalmente quando a “janela” só permite observar num único sentido. O live de Mirai arrancou às 20 horas e o contador do público foi subindo rapidamente até estagnar próximo dos 2000, um número bastante grande para quem tem um percurso ainda tão curto. A entrada em cena foi sublime, com um rosto meio de espanto, como quem não esperava ter uma adesão tão forte ao showcase. Para quebrar o gelo, “Traplife” fez-se ouvir logo de seguida e não pararam de chover corações e comentários, alguns mais insistentes do que outros vindos de quem convive e/ou apoia afincadamente um dos talentos em bruto que militam numa das camadas mais profundas da nossa cena musical alternativa. “Estás tímido”, lia-se já na recta final do primeiro tema. Mesmo com a voz ao natural a não suportar o alcance do que ficou registado em estúdio, com o apoio do auto-tune, Mirai levou a tarefa até ao fim e terminou a faixa com um sorriso e disposto a agarrar a multidão que decidiu acompanhá-lo durante a meia hora que se seguia. Falou do momento crítico em que nos situamos e deixou palavras de força e conforto àqueles que, tal como ele, estão impedidos de trabalhar depois da declaração do estado de emergência. Sozinho num sótão, voltou a virar-se para o computador portátil e disparou “Marca”, tema que lhe valeu a continuidade na competição O Game, ganha por si e Nedved. No curto live act pelo Instagram não coube um alinhamento à medida do jovem da Linha de Sintra. Ouvimos pouco mais do que uma mão-cheia de temas mas tivemos direito a conteúdo exclusivo à ocasião, um par de faxias ainda em arquivo para editar entretanto. Não faltou no final, claro, “Iris”, uma das faixas — e vídeos — mais bonitas que colhemos do ano passado e constantemente requisitada na caixa de comentários. Boa disposição, entrega e uma atitude irreverente, típica da idade. A Mirai só falta mais material na rua e o amadurecimento in loco num palco suficientemente grande para o talento que emana.

– Gonçalo Oliveira


Já sorveu o glamour sentada ao piano. Agora, volvida uma vitória no Festival da Canção e com uma quarentena em curso, Marta Carvalho tem à sua frente um prato de sopa. Está à lareira, mas joga um cold open bizarro: “Jura que não vais ter uma aventura…” A sua brevíssima discografia (se é que dois singles são elegíveis como tal) fá-la parecer a resposta portuguesa ao formigueiro r&b que tem no streaming a sua praia, isto é, o espectro desde Kehlani até Khalid. Assim sendo, talvez seja comportamento desviante para uma análoga de Ariana Grande cumprimentar o mundo com um acappella de Rui Veloso. Mas não nos devemos surpreender. A artista do Porto teve a chance de se fazer cavalo de Tróia para deixar entrar o r&b no certame da RTP. Não o fez, em virtude da baunilha pop de “Medo de Sentir”, interpretada a meias com Elisa — balada que terá estado nas bocas do país por minutos, improvável de reclamar para si o apogeu do Festival em 2020 (bonsoir, “Passe-Partout”). Nesta casa aberta de Marta Carvalho, é o disco mais pedido, replicado com uma ternura que redime a pouca potência melódica. Nesse departamento, “Chama”, guardada para o final, excede os mínimos olímpicos da canção orelhuda, mas é “Deslizes” que tem o maior arcaboiço. Números nascidos para a rádio, que sobrevivem à translação para o “acústico”, independentemente dos momentos de entropia quando Carvalho cospe versos débeis como se fossem barras. Ainda haverá tempo para Pedro Abrunhosa, uma bonita música sobre luto com refrão à Keyshia Cole e, sim, “Valerie”. “Assim até é fixe, começamos a fazer mais lives uns com os outros, conectamos muito mais”, encoraja a cantautora, que vai lançar álbum este ano e tem no Festival Eu Fico em Casa um tubo de ensaio. “Cantem comigo”, exclama a certo ponto, estalando os dedos. Portugal não verá — pelo menos em 2020 — este rouxinol pisar o palco da Eurovisão, mas até nova oportunidade, ela aproveita para calejar. Um comentário recorda-a da sopa a arrefecer. Responde prontamente: “Pois está, mas eu quero estar convosco. Depois aqueço”. Segundos após terminar, faz o que muito poucos conseguem neste Festival: desligar o vídeo sem fricção e olhares de confusão. Os nativos digitais também rondam o r&b.

– Pedro João Santos


Se o Festival Eu Fico Em Casa fosse um evento exclusivamente dedicado ao hip hop, o terceiro dia representaria o vigor da Linha de Sintra. Durante uma hora seguida, Bispo e Mirai vestiram a camisola para, mais tarde, verem uma das suas referências a assumir a responsabilidade de ser uma espécie de main act: Prodígio, um dos membros da poderosa Força Suprema, era o escolhido para essa missão. “Isto não é propriamente o Coliseu, vamos trabalhar com o que temos”, atirou, porém, 11 mil pessoas chegaram a entrar na casa do rapper, algumas delas caras conhecidas como Boss AC, Harold e Monsta. De facto, não é o Coliseu, mas havia números para encher mais do que um. Sem mise-en-scène nem espalhafato, o autor de Castelos “perdeu” os primeiros cinco minutos a receber a “família” e a pedir que as pessoas se resguardassem neste “mau bocado”. Numa fase em que muitos de nós se adaptam a estes novos horários e estilos de vida, nada melhor que começar a actuação com um tema que nos localiza no tempo: ontem celebrou-se o Dia do Pai, a “desculpa” para interpretar “Homens Não Choram 2”, uma “música bué especial” com participação de Anna Joyce, revelando, no fim, que o filho não lhe tinha ligado. “Eu não ligo a essas cenas, também não liguei para o meu cota, ele é que me ligou, mas ya, ’tá tudo bem, desde que haja amor”. Sentimos ainda a presença da companhia invisível mas bem audível de Gson e Mike11 (em “Down” — com um “ganda beat” do segundo), Deezy (“Máquina do Tempo” — música que demorou cinco ou seis a concretizar) e Nininho Vaz Maia, a voz do refrão de “Sozinho”, o título de canção que mais faz sentido nesta altura. No final, depois de cantar “Playa”, um “clássico” nas palavras do próprio, agradeceu o apoio de quem o acompanha e, antes de terminar com um acapella, deixou uma mensagem em tom de desafio: “Para os meus colegas rappers, apertem na caneta, se faz favor, porque este ano a Dope Muzik não vai facilitar”. Em tempos de outras guerras, Prodígio continua de rima em punho.

– Alexandre Ribeiro


O remate da terceira noite do festival #EuFicoEmCasa chegou-nos pelas mãos de DJ Ride. Munido da sua apetrechada consola que reúne um extenso leque de alternativas para a mistura, o artista das Caldas da Rainha trouxe a “palco” uma colecção de músicas que nos propôs uma valiosa viagem no tempo. Há momentos em que o passado se confunde com o presente, como acontece em “Nunca Pares”, canção retirada do Bairro da Ponte de Stereossauro, onde é possível ver a voz de Slow J, um dos artistas mais importantes da actualidade da música nacional, a ser cortada pelos uivos de KRS-One, magno professor da velha escola norte-americana – o tema é “Sound of da Police”, de 1993. Mais à frente é a vez de “Superstition”, de Stevie Wonder, ganhar contornos contemporâneos, garantidos pelo scratch de Ride na parte que é habitualmente dedicada à expressão dos metais. Há ainda uma fase em que o inconfundível timbre de James Brown se mistura com a cama já existente, relembrando-nos o incontornável papel que o padrinho da soul desempenhou nas fundações do hip hop, género que será novamente evocado por Ride com os temas “Lemon” dos N.E.R.D, “Alright” de Kendrick Lamar, e “Hip Hop” dos Dead Prez. É notável a forma como DJ Ride oscila entre os diferentes géneros e épocas sem nunca perder a solidez e o fio-condutor. Nos primeiros instantes do set, depois de ter servido uma “Verdes Anos” de mão ao peito, como gesto de respeito e orgulho (não esquecer que foi esta releitura de Carlos Paredes que catapultou os Beatbombers, duo que partilha com Stereossauro, para a ribalta), o artista passou “Intro” dos XX, seguida de “Touch the Sky” de Kanye West (o rapper de Chicago já havia marcado presença com “Power”). Tudo isto com enorme destreza nos decks — e nem mesmo com a cabeça enfiada numa carnavalesca máscara de cavalo Ride parece vacilar (o disfarce, esse, tira-lo-á algures em “You & Me”, remistura de Flume para o original dos Disclosure). Até ao final há uma recta drum & bass iniciada em “Come Together” dos Beatles e terminada momentos antes da entrada de “You Don’t Love” de Dawn Penn, já em cadência reggae — a ligação entre Dawn Penn e Bob Marley aconteceria momentos depois com “Get Up Stand”. O ponto final da actuação veio com “Flor de Maracujá”, que partilha a mesma morada de “Nunca Pares“ e “Vontade de Deus”, também ela repescada para o alinhamento. Percorrer tantos pontos cronológicos e tantas texturas sem que pareça que as músicas estão a ser inseridas à força na mistura não é tarefa fácil. Para que tal aconteça de forma fluída e natural, pedem-se sublinhadas habilidades na execução e consciência dinâmica. Ver Ride a misturar ao mesmo tempo que faz scratch e dispara samples do seu pad – chegando, inclusive, a cortar e colar a própria música que está em rotação – não deixa qualquer dúvida quanto às suas valências. Uma veloz máquina do tempo com braços robotizados e extremidades que alternam entre umas implacáveis tesouras e mãos humanas que procuram a máxima aderência em superfícies de acetato.

– Manuel Rodrigues

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