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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/04/2020

Há muito em jogo no Grande Prémio da Pop Retrofuturista.

Dua Lipa e The Weeknd: o futurismo fora de horas

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/04/2020

(Re)emergência no campeonato da pop:‌ uma semana após Abel Tesfaye ter estrangulado as tabelas de vendas com After Hours, Dua Lipa ligou o turbo néon e persegue o troféu. Future Nostalgia, o segundo álbum da inglesa em voga imperial, concorre com o déjà-vu cinemático do niilista-hedonista The Weeknd. Quase a chegar à meta, espreitam o equipamento um do outro. Só agora perceberam que fazem parte do mesmo clã retrofuturista.

A primeira liga é, por inerência, uma disputa: Lipa e Tesfaye, que dão a cara por estratégias de marketing sofisticado e impulsos de última hora para garantir o número um, não são dissidentes do regime. Também as vias em que cada um entronca são paralelas. Mas ambos deixaram as impressões digitais num golpe de estado que tomou as rádios pré-pandemia. “Blinding Lights” começou a sua escalada em Dezembro: um cruzamento lancinante entre Phil Collins e Depeche Mode, equidistante do pôr-do-sol de “I Feel It Coming” e do trap áspero de “Heartless”. Fevereiro viu Lipa assumir o papel de vice através da cardíaca “Physical”, que reposiciona Olivia Newton-John como musa de John Carpenter.

Em confronto directo ou tag team, agora escolha. Tesfaye veste a pele de cordeiro, numa admissão atípica de vulnerabilidade — pelo menos, sem menções a cocaína ou felácio. Lipa é o lobo de olho na presa, a falar de adrenalina sexual como se a pudesse inocular na veia — ou será ao contrário? Não são reinvenções, porque “boémia depressiva” já é a categoria de The Weeknd desde a trilogia, e “mulher de armas” o sub-género dos maiores êxitos de Lipa (“New Rules” e “IDGAF”). O primeiro perdeu o cepticismo quanto ao amor; a segunda converteu a frontalidade na húbris necessária para conquistar o zeitgeist mundial. Má altura para ser suplantada por umas moléculas fatais de ácido nucleico e gordura.



[O álbum pop perfeito?]

A proeza de Lipa não é comandar a atenção do mundo em quarentena, mas sim deliciá-lo. É intuitivo: Future Nostalgia é um trilho de pepitas de ouro e platina, certeiro no ritmo com que liberta serotonina — e inadvertido sinal dos tempos, sempre que Lipa a) lamenta não ter ficado em casa, b) proíbe o ouvinte de sair à rua. O que há meses seria banal, torna-se hoje um mote vital; pena nenhuma música conter metáforas com sabão. Pontos extra para uma campanha que, apesar dos obstáculos mirabolantes, se agarra ao amuleto imprescindível de uma coroação: o perfeito álbum pop com que podemos contar nos nossos mantimentos.

“Perfeito” é um arredondamento funcional, aplicado a um projecto sem grandes planos de concertar um debate ou ser pioneiro, embora forje ambos os percursos. “Boys Will Be Boys” —  um anti-clímax orquestral no fim de um autêntico suadouro disco — deixa experimentar o temor de qualquer rapariga no caminho para casa; pode ser um catalisador para a sociedade deserdar os predadores a que chama homens e deixar de lhes desculpar a baba. Meia hora antes, Lipa usa a imaculada faixa-título como manifesto de mão pesada e funk sintético: seduz, anuncia o seu poder, e assevera trazer a vanguarda.

Cheque sem cobertura não é: afinal, ajudou a desovar um novo velho som em 2020. Mas o oxímoro da futura nostalgia vem de trás para a frente. Lipa sabe que pediu emprestado a Rodgers e Moroder este delírio disco que é a espinha dorsal do álbum, sublimado na vencedora “Don’t Start Now”, na sucessora “Break My Heart” ou na lampejante “Love Again”. Também Kylie Minogue — a pedra-de-toque mais óbvia, ao lado das Madonnas de 1983 e 2005 — importou dos Daft Punk o quatro por quatro da house francesa. “Hallucinate” lembra “Voyager”, de Discovery, segundo álbum dos capacetes franceses: malha de baixo em loop, batida a chocalhar em estéreo, sintetizador pianíssimo na secção final; só lhe falta o brilharete de guitarra rítmica.

Menos oráculo, mais expedição cautelosa para dançar sem cuidados. Future Nostalgia é uma colagem sónica suave, no limiar de dissolver os referentes e as décadas aonde vai beber; “Cool” e “Physical” mostram que os anos 80 hoje falados são uma adulteração pós-moderna sem significado. Esconde o trabalho que lhe exigimos: entre 10 e 12 concorrentes a êxitos, variedade q.b. com tempero para a coesão, refrões engendrados para a posteridade. Lipa supera esse triatlo do “álbum pop perfeito” como se demonstrasse um teorema, com uma facilidade que torna impossível a escassez de espécimes no mainstream. Falso. Há mais vida além de Carly Rae Jepsen e Lorde, mas não é um mar, especialmente na arte de fundir o paradigma com uma visão própria.

O seu primeiro registo, de 2017, será uma boa cápsula do tempo para entender os finais da década: tropicalismo vago, baladas r&b, arranques supersónicos para captar a atenção no Spotify, colaborações com produtores/DJs requisitados, sem ostracizar os refrões. Era um produto em que Lipa sintetizava com autoridade as tendências; da segunda vez por cá, define-as. Dua Lipa é, neste inenarrável momento, uma miragem.



[Quando cai a noite na cidade]

Ser regalo para a vista é a última prioridade de The Weeknd. Tem aparecido ensanguentado, de smoking, a uma linha do colapso: a extensão lógica do filme Uncut Gems, em que leva um murro de Adam Sandler. A estética midnight movie de Drive e a cacofonia de Delírio em Las Vegas unem-se numa identidade visual da escola “Thriller”,  com inspiração e assinatura, ciente do seu propósito numa campanha pop.

Não obstante o cocktail homicida dos vídeos, After Hours é mais contido no seu banquete de terror. A soul descarnada de “Alone Again”, toda ela 808s e desgosto, antecipa os três capítulos desta anti-epopeia pop: confissões a seco, clarividência em êxtase, perdição final. O primeiro bloco constitui a sua melhor prova de aptidão e consistência desde o malogrado Kiss Land: uma curva exponencial de tristeza e falsetes, com início no purgatório de “Too Late”, um simples, pegajoso, paciente bordado melódico. Paragem na infusão de drum’n’bass para a elegia amorosa de “Hardest to Love”, as lamúrias de “Scared to Live” são uma declinação da power ballad clássica (com Elton John pelo meio). A atmosférica “Snowchild” é a autobiografia do rebelde venal, reabilitado, na esperança de que a vida de penthouse lhe remende o coração partido.

Tropos mais que mastigados, a mulher irrecuperável e as lágrimas de caviar, mas o poder diegético engana o estômago. Tesfaye assume tudo isto como parte da caricatura que quis lapidar. Com narrativas propriamente ditas Lipa não brinca, o traço comum às faixas de Future Nostalgia é aquilo que subordina todo o prazer: o seu controlo declarado. Coisa que a personagem deste lado perde num segundo momento. Passada a bombástica autoflagelação de “Heartless”, em linha com a recaída de “Faith” (lá está a cocaína), a escuridão cede lugar à luz estroboscópica. Chegou-lhe finalmente ao sangue —  anunciam os teclados pornográficos em fúria, a glória pastiche em modo aeróbico. Num disco de The Weeknd, não soa a alucinação? 

A violenta “Blinding Lights” abre uma sequência de sonho: devaneio hiperativo, insuflado por um saxofone à Kenny G em “In Your Eyes”, antes de entrar em remissão na dócil “Save Your Tears”. Uma secção lateral de três faixas, a que acresce “Hardest to Love”, onde The Weeknd abre espaço para a cátedra de Max Martin. Ao seu terceiro encontro, excedem a ambição de Starboy, com pupilas ainda mais dilatadas. O problema é que, mesmo com a caneta mais valiosa na indústria, Tesfaye não escreve canções pop de tamanho adequado à produção expansiva do álbum. Por oposição, o novo repertório de Lipa é embalado a vácuo, sem um passo em falso na moldura verso-ponte-refrão: o esqueleto das composições em simbiose com o sonoro, a que fazia falta mais um pouco de espaço para respirar. Por insistentes que sejam as melodias de Tesfaye, é frequente faltar-lhes músculo (a débil base de “In Your Eyes” é um embaraço para as ondas hertzianas) e convicção (embora as nuances dramáticas possam justificar que a imaculada “Blinding Lights” ainda soe a performance).

Felizmente económico, After Hours dá pouca margem de manobra a insucessos que não sejam o do protagonista — e esse vê os seus pecados expiados na aleluia synthwave da faixa-título. No fim, é demasiado tarde para que não se esvaia, letárgico e destituído de amores; ao ponto em que Lipa acorda da fantasia disco (e um desvio à Lily Allen) para defrontar o seu repressor. Nada de novo sob a lua.

Duas almas em exílio no enclave saudosista da pop (desde que não perguntem a opinião a Simon Reynolds, está tudo bem). É uma causa que fazia cócegas ao videojogo Grand Theft Auto V: num pequeno passeio num veículo roubado, sintoniza-se o auto-rádio na satírica estação pop. “Contemporary nostalgia is the best”, diz o locutor. “Music Sounds Better with You”, celebram os Stardust, a partir de 1998; na calha vêm os Pet Shop Boys, que trazem a fria paranóia das suas “West End Girls” de 1985. Enquanto o tempo se esbate fora das nossas janelas, parece que temos de escolher se dançamos ou desabamos. Em 2020, o retrofuturismo de Lipa é um bálsamo, e o de Weeknd mata o dilema.


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