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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/01/2020

Um diamante bruto, nervoso e operático — para ouvir, pura e simplesmente.

O que têm Oneohtrix Point Never e Adam Sandler em comum?

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/01/2020

Oneohtrix Point Never e Adam Sandler juntos? É mais comum do que se possa pensar. Se coabitam na mesma frase, não é pela rima toante dos nomes, nem por terem ambos vivido no bairro de Brooklyn, em Nova Iorque. Mas aí reside a pista para aquilo que os tornou convivas em 2019: ambos guardam coisas especiais para o mesmo par de sortudos. As suas oferendas coincidem num filme nervoso, que esculpe uma Brooklyn tolhida pelo crime, e amealha ovações por onde passa. Bem-vindos a Uncut Gems.

Diamante Bruto, assim se traduz no lançamento nacional pela Netflix, é o último filme de Joshua e Benjamin Sadie, irmãos e paladinos do thriller fervente de ansiedade. Na The Quietus, lê-se que prosperam em “ambientes de alta octanagem, com heróis caóticos” que “lutam para manter a cabeça à tona, enquanto as suas maiores fraquezas ameaçam arrastá-los ao fundo”. Um talhe que formou tanto a nova película dos realizadores Safdie como a sua obra anterior: o alucinatório Good Time (2017), uma concatenação de estratagemas cada vez mais imprudentes e perigosos, por um amor fraterno mas imaturo. Sai Robert Pattinson desse lugar incauto e entra Adam Sandler. Sandler, o tecelão de tralha amável como A Minha Namorada Tem Amnésia ou Click, é a estrela no “filme com maior potencial de ansiedade” do ano, escreve Jamie Lauren Keiles no estrondoso perfil que fez de Sandler para o The New York Times. Sandler, também o surpreendente coração dramático de Punch-Drunk Love ou Spanglish, é um actor pleno — que amiúde se sacrifica pelo riso fácil da comédia corporal. Uncut Gems é material probatório de uma prestação que Sandler dá com parcimónia, mais recentemente para os irmãos Safdie.

O capital cultural do duo transborda para a música: tem sido a seu mando exclusivo que Oneohtrix Point Never se activou como compositor de cinema. Em Good Time, atendeu aos fustigantes delírios dos Safdie com um acompanhamento musical em tudo correspondente, como se lhe tivessem pedido para tocar um pesadelo num teclado Akai. Um cocktail de electrónica cortante e psicotrópica, luminescente quando não totalmente sádica, que traz à audição a clara vista de perseguições, chantagens, violência. Daniel Lopatin (como consta na cédula) fê-lo em homenagem aos filmes de série B que, nos anos 80, alavancaram o sintetizador para obter uma paleta expressiva — e barata — de efeitos sonoros.  Após arrecadar um galardão em Cannes, a parceria entre Lopatin e os Safdie tem novo capítulo no picaresco Uncut Gems. A música para a corrida-contra-o-tempo de um adicto do jogo é uma obra de Lopatin — que, qual actor sob método, se iniciou nas apostas online para degustar essa excitação (mas não a recomenda).  Estivessem ausentes os trechos de diálogo e a banda sonora passaria por um álbum de tese. Uma ópera sintética que bebe de Jerry Goldsmith (designadamente a sua banda sonora descartada para o filme Alien Nation) e a “alucinação de uma orquestra por via de um sintetizador”, como quem diz Vangelis. Uncut Gems bruxuleia entre movimentos de grandiosidade, nervos à flor da pele e pressão lancinante. O estado normal é o de suspense, é evidente, embora dispense na maior parte a percussão. “Windows”, o momento mais gritante e orelhudo, tem a base mais táctil, um frémito implacável com a mão do virtuoso Eli Keszler — apesar de ser um empréstimo pouco subtil do tema do anime japonês Akira. De resto, o compositor executa uma auditoria psíquica do esquivo, do perdido, do homem desafiado e barricado, numa primeira pessoa que anula o voyeurismo. Atenção: “Viagem aos estados de alma de um homem condenado” não é sumário suficiente para a trilha, ou seria só uma mera componente da experiência fílmica — e, essa, para quê ouvi-la, se a podemos ver? É que a banda sonora de Lopatin há-de cumprir todas as funções diegéticas, de continuidade ou unidade a que se destina por definição. Mas essa análise será posterior a uma escuta desenraizada — a única possível de momento, visto Uncut Gems só chegar ao catálogo da Netflix a 31 de Janeiro — e faz pouco por validar a sua dimensão emancipada. Lopatin concebeu um disco com valor independente, para fruição sem referente, e o fruto é quase uma sobrecarga sensorial.

“The Ballad of Howie Bling”, a abertura de oito minutos, parece contar três; é o teorema pelo qual Lopatin demonstra a sua sensibilidade espacio-sonora. O sintetizador veste uma pele galáctica, da qual se gazeta para cair em fundo. Cai a cortina, torna-se uma marcha compassada, como um tracking shot: um plano que a câmara progride por um corredor, afastando-se fixamente de um ponto de fuga, pondo nas margens, como paredes sónicas, bátegas e urros tribais. Um tema “evolutivo e dinâmico”, assim o desejava o compositor no documentário feito pela Moog, a fabricante dos míticos sintetizadores (alerta para spoilers) — mas nunca “demasiado fofo”. Ouvi-lo é bom motivo para crer que nunca se colocou essa hipótese em primeiro lugar. Essa germinação inaugural entrega o púlpito às frequências pianíssimas de “Followed”, depois às flautas febris de Mario Castro em “Pure Elation” e “The Bet Hits”, que se cerca também do saxofone. A compensar pelo fim prematuro de “No Vacation” e da prosódia cintilante de um “Smoothie” cedo abortado, vem a longa incursão techno de “School Play”, um ataque nervoso, magistral, sem mão pesada. “Fuck You Howard” irrompe como versão convulsa e demente do “Hino da Alegria”; “The Blade” é puro ideário de John Carpenter. “Mohegan Suite”, ou a acupunctura via sintetizador, faz dos fumos da psicose uma estase confortavelmente inquietante — antes da assombrosamente bela melodia que carrega a titular “Uncut Gems”. Como se aguenta Lopatin enquanto compositor de cinema moderno? O que perde em subtileza e espaço negativo para Mica Levi, comunga da sua estase psicótica; desprende-se do impressionismo premiado por Nicholas Britell, sem deixar o seu engenho para transfigurar frescos para o reino auditivo.  Enquanto variável independente na fórmula dos Safdie, o músico revelou-se um trunfo da titilação psicológica como arte sonora. O rubi de Uncut Gems ainda não se pode ver, para testemunhar a atlética performance de Adam Sandler, mas pode ser ouvido numa glória total. Assim se emancipa dum filme, sem perder a ligação umbilical, uma banda sonora — e é assim que Daniel Lopatin vence.

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