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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/02/2021

A primeira pedra de uma das grandes mentes artísticas da sua geração.

De Lonny Breaux a Frank Ocean: como tudo começou com nostalgia, ULTRA. há 10 anos

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/02/2021

Falar de Frank Ocean em 2021 é falar de um artista liberto de todas as amarras, longe do extenuante e carente foco das redes sociais, que deixa a sua música falar bem mais alto do que a sua personalidade – que é por si só magnética o suficiente. Olhamos agora para alguém totalmente estabelecido no mundo da música, que faz a sua carreira de maneira independente e, a este nível, praticamente sem paralelo, com uma discografia de output muito esporádico, mas de qualidade ímpar.

Como todos, Frank Ocean teve de começar por algum lado, e até ver a sua credibilidade respeitada, percorreu um longo caminho, que teve o seu ponto de viragem, sem retorno, a 16 de Fevereiro de 2011, sensivelmente há 10 anos. Esse ponto de viragem foi nostalgia, ULTRA.. Hoje em dia é por muitos visto como um clássico que marcou uma geração de músicos e ouvintes, que interliga a edição independente, o r&b, o complexo universo das editoras major, o hip hop, entre tantas outras nuances.

Antes de Frank Ocean havia Christopher “Lonny” Breaux, um artista que havia fugido de Nova Orleães durante o furacão Katrina e esperava ficar apenas seis semanas na Califórnia para gravar algumas faixas, já que o estúdio em que trabalhava ficara inundado. Seis semanas tornaram-se em vários anos a viver na Costa Oeste, na qual Christopher começou gradualmente a estabelecer contactos e a fazer amigos produtores com quem começou a trabalhar numa muito mencionada “tape”. Nesse período, Breaux estava na verdade a compor para cantores pop tão sonantes como John Legend, Brandy ou Justin Bieber, e não havia sinais ou a intenção de assinar como artista a solo. Isto pelo menos até ao contacto de Tricky Stewart, que consegue assinar Christopher com a Def Jam. O produtor acreditou no potencial e no talento de Ocean, e achava que as músicas que compunha deviam ser cantadas pela sua voz.

Durante este período, a Def Jam ignora Christopher Breaux e engaveta-o, sem qualquer intenção de iniciar um trabalho com ele. Frustrado, o cantor não se deixa abater e continua a compor e a fazer música, criando um percurso paralelo com a ajuda (maioritariamente pro-bono) do duo MIDI Mafia, de TROY NōKA ou Red Vision, para nomear apenas alguns dos seus aliados dessa fase.

Além destas colaborações, quando falamos de Frank Ocean em 2011 é imprescindível falar também de Odd Future. O colectivo liderado por Tyler, The Creator chegou a Ocean, que viu no grupo uma saída mais descontraída para continuar a conhecer-se musicalmente – exercitando cada vez mais a sua liberdade criativa, algo que emanava de todos os membros à época –, mas também uma possibilidade de fazer mais contactos e estabelecer uma audiência interessada.

A “tape” tornou-se nostalgia, ULTRA., que viu a luz do dia em Fevereiro de 2011 através da sua página de Tumblr, partilhada depois pela crew de Odd Future que contava já com seguidores devotos, uma geração faminta por nova música que os representasse. De acesso livre, esta mixtape ganha tracção imediata, chegando até a Drake, mas também a MGMT ou Eagles – que reagem de maneira bem diferente à aparição dos seus samples no novo trabalho.

nostalgia, ULTRA. é assinada por um nome desconhecido na altura: Frank Ocean. A ideia do nome surgiu a Christopher num sonho e serviu para não corromper esse laço legal com a editora, podendo mesmo assim apresentar-se ao mundo artisticamente, finalmente. Os colaboradores do projecto receberam mensagem do artista a dizer que a mixtape estava lançada, e até para eles o nome era novidade. A Def Jam ouviu falar sobre o lançamento e, curiosa, quis saber e imediatamente assinar com o misterioso artista com o nome sonante, até perceberem que o mesmo já fazia parte dos seus quadros… A indignação até aí sentida e a hostilidade – mais que justificada – levou posteriormente a tréguas e ao lançamento do marcante Channel Orange, que viu o seu processo bem mais acelerado com a editora. Cerca de 17 meses depois, o álbum laranja é editado, e é uma história bem diferente, com nuances díspares do inocente e despreocupado nostalgia, ULTRA. que, sendo intrinsecamente Lonny Breaux ou Frank Ocean, é incapaz de perder a qualidade de storytelling emocional do músico. Quanto à relação com a Def Jam… já vos contámos a história sobre Endless/Blonde, certo?



[O ultra nostálgico de olhos postos no futuro]

“Eu aprecio fotografia num disco”, dizia já na altura. As passagens cinematográficas entre faixas já evidenciavam um gosto por discos que contam uma história que não termina no milissegundo que separa uma música da seguinte. Os sons que revelam um gosto pelo analógico, de tirar cassetes a alarmes, transportam-nos até ao universo vulnerável de Frank, algo que foi repetido em Channel Orange e aperfeiçoado até ao ponto de total originalidade em Blonde. Essa vontade pela construção de um trabalho conectado e coeso em si era sentida, um sentimento bem diferente do tipo de mixtapes feitas no início dessa década, que tinham o mero propósito de apresentar um artista, as suas capacidades – o seu skill mesmo, já que a mixtape está bem mais associada a um universo hip hop.

Era já bem evidente que Christopher Breaux criava floreados e apontamentos de voz brilhantes e emocionalmente cativantes, que tinham tanto de influência pop como de total liberdade e competência artística ecléctica para um músico em tão tenra idade. No entanto, olhando para nostalgia, ULTRA. 10 anos depois, podemos bem dizer que “Novacane” é um tesouro mal escondido num oceano de vários temas mais estéreis a nível criativo, nos quais o artista americano pede emprestadas linhas de voz (rítmica e melodicamente falando) muito próximas das versões originais várias vezes — conseguimos sentir isso em “Strawberry Swing” e a sua simples adaptação para uma nova letra do tema homónimo dos Coldplay; em “American Wedding”, com o instrumental problemático de “Hotel California” dos Eagles, que chegaram a ameaçar Frank com um processo judicial pelo uso do mesmo; e em “Nature Feels” que importa o instrumental de MGMT – dos três, o mais bem-sucedido dos remixes, com uma criação melódica mais interessante.

Ao mesmo tempo, a mixtape não deixa de ter temas como “We All Try”, “Songs For Women” ou “Lovecrimes”, esta larga e injustamente esquecida da discografia de Frank, que tem uma batida groovada, samples de Eyes Wide Shut – deixando bem clara a influência que os filmes têm para si, aqui canalizada pelo olhar de Stanley Kubrick – e uma melodia inesquecível, uma que aponta para um futuro risonho de grandes temas. Sinal dos seus tempos, ainda oferece originais como “There Will Be Tears” e “Swim Good”, inadvertida e despreocupadamente pop, que embora algo celebrados entre os fãs mais devotos, são faixas que remetem muito directamente para a influência (assumida) que Frank tem de Kanye West, ouvida na composição melódica, na estrutura e no uso do auto-tune (o mesmo que “critica” na letra de “Novacane”).

Se esta avaliação de nostalgia, ULTRA. parece injusta… é porque é. Este tipo de considerações tardias sobre a mixtape, embora nos pareçam válidas, têm de ser sempre contextualizadas e compreendidas à época para entender o trabalho como parte do momento em que é lançado. Esta obra é a de um princípio de carreira, e é importante entender que – embora o músico tenha referido e afirmado nostalgia, ULTRA. como o seu primeiro álbum [em entrevista com Zane Lowe, por exemplo] –, este projecto não é realmente um álbum, mas uma mixtape.

O diluir das noções de formato não nos impedem de conseguir delinear algumas limitações e nuances vigentes em cada corrente ou universo musical, de modo a entendermos melhor as suas características e dinâmicas. Ou seja: mesmo que um EP, uma mixtape e um álbum tenham cada vez mais em comum e limites cada vez mais ténues, podemos abraçar essas categorizações para nos guiarmos na complexa rede que é isto de discutir música. Nesse sentido, é preciso perceber nostalgia, ULTRA. como um trabalho que, sendo uma mixtape, serve para apresentar o artista, e não afirmar necessariamente uma linha artística e conceptual forte e coerente.

Por exemplo, para além do que já foi referido a nível de composição, podemos olhar para o variado tratamento do material sonoro por alguns produtores e engenheiros de som diferentes que é sentido, originando uma falta de coesão até nas misturas deste trabalho. No entanto, uma vez mais, correndo o risco de (utilmente) nos repetirmos, devemos ter em conta que essas características fazem parte do formato mixtape.



[O antes e o depois de nostalgia, ULTRA.]

É importante reconhecer que todas estas considerações surgem 10 anos após o lançamento de Nostalgia, ULTRA. Bem mais relevante do que falar da qualidade do que lá existe musicalmente, é falar do impacto que essa mesma música tem – para a carreira de Frank Ocean, para os ouvintes e colegas de profissão e, consequentemente, para toda a indústria.

Embora trabalhando neste formato, que à época seria mais típico de um rapper, este é de todos os trabalhos de Frank Ocean aquele em que há menos sinais de rap na forma como se entrega com a voz. Em Channel Orange, Endless ou na fase de singles e participações pós-Blonde, Frank Ocean assume mais essa faceta de rapper. Em 2011, um artista ecléctico, que abraça influências rock, r&b, hip hop e indie, que rejeita a categorização fácil (e muito provavelmente racial) de ser um músico r&b quebra barreiras pela liberdade nos formatos e géneros que abraça, assim cortando a fita e inaugurando a passadeira para que muitos sigam esses passos nos anos que se seguem. Pouco mais de um mês depois, The Weeknd aparece com a sua mixtape House Of Balloons, escancarando mais a porta para os que vieram a seguir.

A Internet trouxe inúmeras possibilidades para o mundo da música, entre as quais a tão falada democratização que existe na facilidade de carregar uma faixa para todo o mundo ouvir à distância de um clique. Não era novidade em 2011, mas permitiu a Frank Ocean lançar a sua mixtape para descarga gratuita no seu Tumblr. Isso levou nos anos que se seguiram a própria Beyoncé a imitar este tipo de lançamentos sem campanha publicitária por trás da música, que na esfera digital ganham uma tracção própria, não muito moldável ou fácil de controlar. A relevância cultural de Odd Future no início dos 2010s fez multiplicar o interesse num artista que se soube ali que dificilmente seria ignorado. Tanto não foi, que apenas meio ano depois, sai Watch The Throne, o glorioso disco colaborativo de Kanye West e Jay-Z, no qual Frank Ocean assina composição e featuring em dois temas, incluindo o icónico “No Church In The Wild”.

 O artista já se demonstra na altura de nostalgia, ULTRA. algo afastado do mundo online, dando também poucas entrevistas e falando apenas quando necessário. Essa distância aumentou no período pós-Channel Orange, quando apaga o Twitter. “Intuição”, é como o justifica. O resto é história, não é? Um percurso que vai de “Street Fighter” até “Dear April”. Frank Ocean, no processo de se afastar o máximo possível de rótulos, influenciou e manobrou as regras da indústria conforme quis desde cedo. Afinal, o segredo é só seguir a intuição.


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