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Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 18/10/2022

Um princípio feliz, um meio feliz... e um final feliz.

Dança, amor e comunhão segundo Moullinex: a história em três actos de um Discodrama no Coliseu dos Recreios

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 18/10/2022

Amor, camaradagem, comunhão, comunidade. Palavras que, de certa forma, se intersectam no léxico da música de dança, formando o seu ethos, o núcleo de onde as batidas irrompem para inundarem clubs, salas e pistas aparentemente infinitas no espaço e no tempo.

Quando pensamos no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, esse não é o primeiro local que nos vem à cabeça como o mais adequado para o som direccionado para o clubbing brilhar. Mesmo assim, foi o ringue de combate escolhido por Luís Clara Gomes, mais conhecido por Moullinex, para Discodrama, uma festa com quase seis horas de duração, dividida em três actos: Flora, o seu álbum de estreia a celebrar uma década de existência, Requiem for Empathy, o seu mais recente longa-duração, e DJ sets para fechar a noite em festa.

Discodrama – que teve muito de disco, mas pouco de drama, na passada noite de sábado (15) – serviu como uma celebração da carreira do co-fundador da Discotexas e foi uma espécie de reencontro de família entre o artista, camaradas de longa data do meio e, claro está, os fãs, sem os quais a festa não seria possível. Mesmo que o Coliseu dos Recreios não estivesse totalmente lotado, quem veio a estes festejos deixou tudo o que tinha para dar, espalhando um pouco de amor pelos recantos da sala lisboeta entre reencontros, abraços e beijinhos partilhados, tudo debaixo de uma bola de espelhos a rodar ad eternum, iluminada pela música de Moullinex, o verdadeiro factor união aqui presente – afinal, foi por ela que nos dirigimos ao Coliseu, não é?

Quando entrei em contacto com a música do Luís pela primeira vez, num dos meus primeiros anos de faculdade, Hypersex, o seu terceiro longa-duração e um disco pelo qual continuo a guardar muito carinho, acabava de ser lançado. Corria o ano de 2017 e, daí para a frente, entre mim e as canções deste Moullinex, a relação só se foi estreitando com o tempo; a sua música tornou-se banda sonora de festas de amigos, celebrações solitárias durante a pandemia, constante admiração pela sua capacidade de se reinventar a cada trabalho, expandindo cada vez mais o seu universo musical.

Até Agosto de 2022, nunca tinha conseguido ver um concerto de Moullinex ao vivo, fruto de falta de convergência entre a minha disponibilidade e os seus espectáculos. No espaço de pouco mais de dois meses, tive a sorte de o encontrar três vezes em três locais diferentes e, de cada vez, apreciar algo de totalmente diferente no seu live act. Em Paredes de Coura, o espanto de observar o seu espectáculo ao vivo convergir em plena amplitude com o ambiente do habitat natural da música, os visuais a elevarem a música de Requiem for Empathy a um patamar superior; no Kalorama, mesmo com a adversidade do slot de final de tarde, não totalmente adequado ao espectáculo do seu último disco, a sua capacidade de conquistar o público. 

Agora, neste Discodrama, o seu condão quase megalómano de fazer render um espectáculo com múltiplos atos – uma espécie de Alive 2007 servido à moda lisboeta, se o podemos dizer – sem nunca perder a energia nem a capacidade de surpresa. Ouvir as canções de Flora ao vivo em pleno 2022 levam-nos a concluir que o Moullinex de Requiem for Empathy certamente não é o mesmo Moullinex de 2012, mas também nos surpreendem pelo quão bem continuam a soar. As nuances daftpunkianas e o universo tecnicolor de Flora continuam a soar aguerridos, e em formato banda – Gui Tomé Ribeiro (aka GPU Panic) na guitarra, Guilherme Salgueiro (aka YANAGUI) nas teclas, Luís Calçada no baixo e Diogo Sousa a cargo da percussão –, as canções só ganham na sua energia punk e na demonstração enquanto fórmula eficaz na arte nobre do abanar a anca – como a música diz, “Let Your Feet (Do The Work)”. O resgatar de convidados também ajudou ao manter da energia em alta neste primeiro ato, como bem demonstrou Da Chick ao ajudar a interpretar “Hypnotize”, e a oferecer um certo carisma extra à performance com a presença da voz de Iwona Skv a adornar faixas como “Deja Vu” ou “Darkest Night” – com Xinobi na guitarra – e de Peaches para interpretar a versão do produtor de “Maniac”, canção icónica de Michael Sembello para Flashdance, que termina Flora e, por consequência, terminou também o primeiro acto deste Discodrama.



Se o universo de Flora é marcado pela cor e pela diversão, o de Requiem for Empathy, segundo acto deste espectáculo, é praticamente o oposto. A disposição da banda, agora reduzida a quarteto (saiu Luís Calçada de palco), altera-se de uma formação que permite a deambulação pelo espaço para uma praticamente estática, em linha, “quais Kraftwerk lisboetas”, como bem se descreveu aqui nestas páginas o ano passado, em que os sintetizadores e a bateria são a artilharia necessária para recriar estas canções ao vivo. Todo o espectáculo de Requiem for Empathy é montado para, simultaneamente, consagrar os passos de dança, mas também para garantir – e está no nome – uma certa empatia pelo outro, uma certa sinceridade encontrada no trabalho textural minucioso e perfecionista desta música que vive para ambientes de escuridão. Os convidados só ajudam à coisa: a voz maravilhosa de Afonso Cabral ofereceu-nos uma perspetiva muito emocional na primeira parte de “Hey Bo”, antes da sua explosão em hino de dança, Selma Uamusse deixou-nos a pedir por mais pela forma como nos conquistou em “Ngoma Nwana”, Sara Tavares, mesmo que em formato virtual (tal como Ekstra Bonus em “Ven”), continua a arrebatar-nos o coração com a sua participação na fantástica “Minina Di Céu”.

Falar do espectáculo ao vivo de Requiem for Empathy implica também falar da parceria entre Gui Tomé Ribeiro – agora vocalista “oficial” de Moullinex – e Luís Clara Gomes, uma que tem colhido os frutos da sua simbiose. Em Flora, o membro dos Salto e dos Guanabara ajudou à festa com a sua constante energia em palco, mas é com Requiem for Empathy que a sua importância para o projecto Moullinex se revela. A sua voz angélica preenche as texturas de faixas como “Inner Child” ou “Running in the Dark” – um highlight do disco e do concerto – e de colaborações como “Pacífico”, tocada como expansão deste universo de Requiem for Empathy. No final, quando tudo parecia terminado, a bola de espelhos acendeu-se mais uma vez para um encore merecido e em total êxtase com “Take My Pain Away” (com direito a keytar!), uma das canções mais gravitacionais de Moullinex – foi mesmo para fechar em grande o segundo acto e a secção concertos deste Discodrama.



A restante noite desenrolou-se em formato de DJ set, com Anna Prior, baterista dos Metronomy, Justin Strauss e Xinobi a colmatarem o amor pela pista de dança que, na realidade, é como uma super cola que nunca seca. Reaviva-se sempre quando a batida surge, quando o groove perfeito entra no espaço certo, quando os sintetizadores caem sobre nós como uma cascata efémera de sonhos, aparentemente infinita, tal como a pista de dança em que nos encontramos. 

Se Luís Gomes tinha o objectivo de transformar o Coliseu numa pista de dança onde toda a gente era bem-vinda… conseguiu. E com toda a destreza de alguém que, apesar do percurso aclamado, ainda tem mais porções criativas por desbloquear. Esperemos que a sua música e todos os seus outlets criativos continuem a preencher os nossos corpos durante largos anos e, felizmente, não somos os únicos a querer isso. Há toda uma grande família em torno de Moullinex e do universo Discotexas, e todos querem participar na construção do que ainda está para vir – em comunhão, claro.


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