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Fotografia: Hugo Lima
Publicado a: 08/09/2022

Ecos na água de jazz, rap, punk, rock e por aí fora.

Recortes e recordações do Vodafone Paredes de Coura 2022

Fotografia: Hugo Lima
Publicado a: 08/09/2022

Andámos pela praia fluvial do Taboão para a mais recente edição do Vodafone Paredes de Coura e ouvimos muita música de diferentes grupos e artistas (uns a começar, outros a meio do percurso e outros já com muitos quilómetros nas pernas). Também nos reencontrámos com projectos acarinhados por nós, como BADBADNOTGOOD, The Comet Is Coming, Yves Tumor, entre outros, e foi muito bom regressarmos a um festival que foi adiado durante dois anos seguidos. Para além disso, falámos ainda com os Surprise Chef, uma banda promissora e vinda de Melbourne, Austrália, acampámos, mergulhámos no rio, mas, acima de tudo, escutámos sons (naturais ou não) que nos fascinaram e prenderam. O que vão ler a seguir não vai a todas nem tenta captar na perfeição o que por lá se passou, é mais um conjunto de fotografias analógicas espalhadas sem ordem numa cama.

Comecemos por um nome que não é assim tão comum por estas páginas. A experiência Mão Morta é algo de diferente: em Coura, o concerto teve uma história, uma narrativa tão visível que não foge à marca de água deste grupo que é a epítome do bom rock feito em Portugal. A distópica psicadelia presente na estética sonora é tão submersiva que o espectáculo deixou de o ser para se tornar numa jornada narrada por Adolfo Luxúria Canibal, Vasco Vaz, Rafael Machado, Ruca Lacerda, Rui Leal e Miguel Pedro na bateria, a formação que veio apresentar No Fim Era o Frio: uma narrativa que coloca em perspectiva os conceitos de aquecimento global ou subida das águas do mar e a forma como estes servem para questionar os paradigmas do quotidiano, como explicou Adolfo Luxúria Canibal. Um concerto estimulante trazido por esta banda bracarense cuja história se entrelaça com a música portuguesa. Se existia ideia de que não havia futuro para o rock em Portugal, aquilo que foi apresentado no palco do Vodafone Paredes de Coura é a prova de que o género ainda tem muito de novo para oferecer no nosso país. Escusado será rematar que o público mergulhou na história e ideias de Adolfo e deixou-se levar pela presença contagiante do vocalista em palco. “Nós somos os cabrões dos…”, perguntava Adolfo no final. “Mão Morta”, respondia o público em uníssono. Esplêndido.



Cinco anos depois da sua última vez no Minho, neste mesmo festival, os BADBADNOTGOOD deram-nos como presente de reencontro um concerto com jazz que é dançável ao mesmo tempo que também nos dá uma jornada visual espectacular em filme. Uma nova escola de jazz que junta tanto os metal heads como os hip hop heads neste discurso fresco dos jovens que fazem jazz em 2022. A bateria fazia as cabeças balancearem e as mãos viam-se a acompanhar melodia num concerto em que se viu e ouviu de tudo, quase cronologicamente: nostalgia, homenagens, shoutouts e, principalmente, canções incríveis. Talvez o público não estivesse pronto para o inglês de Alexander Sowinski, mas, quando o baterista pediu para a plateia se baixar juntamente com a música, a tarefa foi acatada. “Shout-out to my boy Kaytranada”, atirou antes de começarem a tocar “Lavender”, onde Snoop Dogg também aparece.  O concerto encerrou com uma merecida homenagem a MF DOOM — uma grande influência de BBNG e outra tanta música que anda por aí. 

A seguir a termos conversado com Surprise Chef, restava apena ouvirmos um pouco da música que nos tinham para apresentar, em antevisão do disco que nos vão mostrar, na sua totalidade, em Outubro. O resultado foi um concerto promissor, e as influências estavam lá todas no sítio — jazz, reggae, soul, tudo mesclado numa entrega muito autoral. No final, os músicos escolheram tirar uma fotografia onde mostravam o público e disseram que um dia esperariam “fazer muito dinheiro de música soul apenas instrumental”. Nós aqui deste lado dizemos que talvez seja possível e muito provavelmente será. Foi aquele que deixou mais água na boca (e promessas grandiosas de um futuro auspicioso).

O mesmo podemos dizer dos The Comet Is Coming. Uma apresentação minimalista, onde os instrumentos eram a chave para a porta de entrada para Hyper-Dimensional Extension Beam, o próximo disco do trio de Danalogue (e os seus sintetizadores poderosos), Shabaka Hutchings (o saxofonista que também encabeça os Sons of Kemet) e Betamax (o baterista que nos presenteou a certa altura com um solo fluídissimo — e aqui, mesmo não sendo uma competição, metemos directamente em comparação com aquele que nos havia sido entregue por BADBADNOTGOOD no dia anterior). E de repente estamos em Turnstile. Não era difícil prever, mas vimos um recinto virado do avesso. Escusado será dizer que vimos o perfeito exemplo de uma banda repleta de estrelas do hardcore punk. A eletricidade era contagiante (nas vozes, nas guitarras, nas baterias) e quase tudo era distorção. Os abanares de cabeça de The Comet Is Coming transformaram-se em danças frenéticas, empurrões e saltos, pelo menos nas filas da frente. Se em 2015 os Turnstile tinham tocado num pequeno club de Lisboa, em 2022 o lugar que ocuparam no Palco Vodafone foi mais do que merecido. “I wanna thank you for letting me be myself” foram as últimas palavras a serem cantadas por Brendan Yates.



Gostam de Jazz Na Relva? Foi nesse palco que ouvimos Jasmim e Dela Marmy, dois artistas que se complementaram pela leveza que acompanhava bem o estar-se à beira-rio. Voltando ao recinto, a forma manteve-se alta no palco principal com a voz da britânica Arlo Parks, esta promissora cantora cujo álbum de estreia atingiu bons lugares nas tabelas do Reino Unido e obteve nomeações para vários prémios musicais. O concerto deixou-nos dançar enquanto éramos guiados pela doce voz de Parks, que nos apresentava o disco Collapsed in Sunbeams e nos fazia recordar alguns dos seus trabalhos anteriores. Despediu-se de repente, mas deixou-nos a querer ouvir mais daquela doçura.

Kelly Lee Owens veio ainda mais de cima, do País de Gales e, neste caso, não foi a voz que a trouxe ali, foi a sua capacidade estética e criativa para conjugar música electrónica e conceptualizá-la juntamente com expressividade tridimensional — vimos isso, por exemplo, no vídeo que acompanhou o concerto. Existiram críticas negativas que defendiam a ideia de que o concerto não fora apropriado para aquele palco, mas bastava olhar para a frente, para a esquerda, para a direita e para trás para se testemunhar que havia muito (mas mesmo muito) pouca gente parada. Quase toda a plateia dançava ao som desta produtora que nos apresentou um live act que conjugava no seu alinhamento trabalhos de Inner Songs (2020) e LP.8 (2022). Nem era suposto estar naquele palco àquela hora, mas Kelly esteve claramente à altura do desafio provocado pela mudança.

Último dia e Omie Wise, João Mortágua Math Trio, La Femme, Yves Tumor & Its Band, slowthai, Tommy Cash na retina. Todos eles nos deram uma experiência para contar: os primeiros dois numa tarde repleta de jazz e mergulhos — e alguns dos mesmos traços experimentais espaciais que nos levaram em crescendos jazzísticos e quase psicadélicos. A banda francesa deu-nos um pouco da sensualidade musical desse país com uma estética que podíamos encontrar num filme francófono dos anos 70 num concerto sincronizado em que uma bola insuflável servia de exemplo para o envolvimento entre o público e a banda. A bola ia para o palco, os músicos chutavam-na de volta e assim foi ao longo do espectáculo.

E, *cara triste*, Princess Nokia subia a palco para um concerto que ficou um pouco aquém das expectativas. Talvez tenha sido problema da produção de trap, mas a banda sonora que acompanhava a cantora não estava ao nível mínimo do que se exige: existiam demasiados momentos mortos entre o 808 e o regresso da voz à música. Tocou muitas das músicas que a fizeram tornar-se grande, mas isso não chegou. Muda-se para *cara feliz*: Yves Tumor e a sua banda apresentaram-nos Heaven to a Tortured Mind. Um concerto em que o músico, que se vestiu como uma típica rockstar norte-americana, nos levou pelo seu trabalho mais recente enquanto era acompanhado pelo público, principalmente jovem, no recitar das letras do álbum que foge um pouco ao trabalho que fazia há alguns anos e que reflecte a sua capacidade de agarrar num género musical e estudá-lo de forma a torná-lo seu. Uma colagem de glam, rock psicadélico, krautrock, britpop, soul e noise resultam em algo que fica na memória — e isto aplica-se tanto ao estúdio como ao vivo.

Em slowthai também existe essa mistura e, quando subiu a palco, temia-se que incorresse no mesmo erro de Nokia, no que toca a 808s, mas as suas influências de rock e punk rock safaram-no bem e fizeram o público dançar ao som de músicas como “Doorman” ou “Psycho” com Denzel Curry.  Sozinho no palco, o autor de TYRON conseguiu manter-nos interessados e cativados, terminando com “Barbie Girl” — sim, essa mesmo –, que até podia ter sido uma referência a Princess Nokia, cujo DJ havia passado essa música enquanto esperávamos que subisse a palco, mas que, pelos relatos de outras datas, podemos confirmar ser só uma coincidência. Eventualmente, umas cuecas foram parar ao palco. O músico apanhou e disse, “vou deixar aqui para quem apanhar” ou “sabem que eu já sou pai de filhos, certo?”. Nem charros vindos do público aceitou…

Finalmente… Tommy Cash. O estónio deu continuidade aos 808s mais sonantes, um factor bastante positivo em específico para aquela hora e para aquele palco. Também existe uma grande influência de rave ou eurodance na música, o que permitiu que quem ouvisse não só cantasse como também dançasse algumas músicas como “Winaloto”, “Who”, “Sdubid”, entre outras.



Um festival que merece o seu respeito — por ser uma estrutura tão grande e lidar com tantos artistas internacionais — mas que peca por algumas falhas de organização e distribuição de informação, assim como de representatividade feminina, principalmente no que toca a artistas portugueses — e, sim, voltamos a falar do dia dedicado ao talento nacional. Uma delas era Rita Vian, no Palco Vodafone FM, onde até sob alguns pingos de chuva víamos uma multidão que não parecia terminar. Foi, garantimos, um dos melhores que vimos nesse dia: testemunhámos a prova viva de que a voz continua a ser um factor importantíssimo em 2022, numa apresentação deste filho bastardo do fado que é o culminar de uma fusão entre reminiscências desse género e da música electrónica. A mostra do EP CAOS’A foi muito bem recebida em Paredes de Coura e conseguíamos sentir que muitos dos presentes acompanhavam algumas das letras, mas a música que levou o público a também demonstrar as suas qualidades de desfadista foi “Purga”.

Também não é fácil perceber por onde ir, onde obter comida… E, especialmente, não parece um festival que esteja preparado para pessoas com deficiência motora. Pode ter sido falta de atenção, assumimos aqui a nossa quota-parte, mas os locais escolhidos não pareciam pensados para esta parte da comunidade. Os acessos não estão optimizados para as pessoas que necessitam de cadeiras de rodas, os locais para carregar os telemóveis tinham escadarias, as subidas eram demasiado íngremes… Questões que talvez merecessem algum reparo.

O Vodafone Paredes de Coura é, obviamente, um festival importantíssimo para a zona, assim como para a agenda nacional, e, em 2022, foi novamente um sucesso. É um evento que, apesar de tudo, acaba por cobrir vários géneros musicais e ser direccionado para vários públicos, apresentando-nos um retrato heterogéneo e promissor do que se faz (e ouve) por esse mundo fora hoje em dia.


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