LP / CD / Digital

Conway The Machine

From King To A GOD

Griselda Records / Drumwork / EMPIRE / 2020

Texto de Paulo Pena

Publicado a: 07/01/2021

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Daringer estendeu a passadeira vermelha em “From King” para o início da consagração de Conway The Machine. Reis há muitos, deuses nem por isso, mesmo no politeísmo do hip hop. Assim, Conway entra triunfante nos segundos iniciais da primeira faixa, apresentando o seu terceiro projecto num ano em que se congratula quem teve a “coragem” de lançar um. From King To A GOD, lançado a 11 de Setembro de 2020 (data que, especialmente nos Estados Unidos da América, não passa despercebida) — e sucedendo a No One Mourns The Wicked, com a lenda anónima Big Ghost Ltd, e LULU, com The Alchemist (que teve também um ano inacreditavelmente preenchido). É que as contas em Buffalo são outras – segundo as leis das esquinas nova-iorquinas, o produto multiplica-se sempre por três. Foi assim que a tríade régia (ou divina, por esta altura), começou a fazer render as suas barras. Mas, hoje, as barras são outras, e Conway The Machine, Westside GunnBenny The Butcher respondem agora em nome de Griselda, um dos nomes mais respeitados e cobiçados no rap moderno.

A repetir a dose tripla em 2019 (repartida em Eif 2: Eat What U KillEverybody Is F.O.O.D. 3 Look What I Became), e com o mesmo saldo de Westside Gunn em 2020, que deu cartas (e trunfos) com Pray For ParisFly God Is An Awesome God 2 WHO MADE THE SUNSHINE, a “máquina” fecha a contabilidade anual já com previsões orçamentais para 2021: ao que tudo indica, God Don’t Make Mistakes será o próximo disco do rapper de Nova Iorque, apontado para dia 12 de Fevereiro, a assinalar a sua estreia pela Shady Records. E como se estes trabalhos não fossem já suficientes, o MC contribuiu ainda em mais de uma dezena de álbuns de primeira linha (tais como AlfredoThe AllegoryThe L.I.B.R.A., The Balancing Act, ou nos dos seus parceiros do costume, entre outros…), com, já se sabe, versos candidatos a melhores do ano. É com essa deixa, aliás, que entra, triunfante, repita-se, em “From King” – “So many verses of the year that I’ve written, I’m feelin’ jaded”. E insiste nessa afirmação ao longo do LP. Não obstante a validade dessa determinada afirmação, ironicamente, o verso do disco (e, por isso, automaticamente sério candidato a verso do ano) pertence a Method Man – o veterano rapper que brinca com palavras sem usar “palavrões” – no single “Lemon”, por cima de um instrumental tipicamente “Griselda-esque”, dominado pelos malabarismos de “C and M”. 

Não dá para fugir a Westside Gunn e Benny The Butcher (que encerrou o desfile anual destes Fashion Rebels com Burden Of Proof), quando se fala de Conway The Machine. Há laços de sangue a envolver este trio: Westside é meio-irmão de Conway e primo de Benny. Juntos são mais fortes, mais vorazes, mais assustadores. O domínio Griselda é, actualmente, um fenómeno incontornável, contagiante, inexplicável até, de certa forma. Invadiram as ruas, literalmente – figuraram isolada e simultaneamente em outdoors na Times Square – e definiram as próprias regras para ganhar o jogo. Estes goodfellas levam-na à maneira deles; em Buffalo o ritmo é outro. E se hoje impõem o “se não consegues vencê-los, junta-te a eles”, a verdade é que não precisaram dessas tácticas submissas para chegar ao topo, uma vez que, mesmo não havendo, aparentemente, espaço para eles nesse patamar cimeiro, estes bons rapazes trataram de o arranjar, sem cerimónias ou “com licenças” pelo meio. Vieram, viram, venceram.  



Porém, e porque é sobre Conway que aqui estamos a falar, o rapper de queixo deslocado e boca descaída para o lado esquerdo da face está finalmente a ser reconhecido como o porta-voz mais valioso dos três. Enquanto Westside pinta telas, colecciona jóias e exibe peças de roupa no seu rap vistoso, e Benny soma tijolos de rimas, eficazmente edificados e violentamente atirados, com uma fome de versos intimidante (basta ouvir os seus “ah”, que precedem ameaçadores “The Butcher comin’, nigga”), Conway é o elemento plus numa versão topo de gama; a caneta Montblanc nos cadernos sujos de sangue, álcool, droga, dinheiro; a mente ponderada por trás do instinto criminoso que corre nas veias de cada um; a profundidade que emerge no meio da artificialidade, ainda que irrepreensivelmente retratada; a diferença entre a qualidade acima da média e a excelência. 

A construção lírica de Conway é singular. A “máquina” escreve guiões de filmes autobiográficos, à volta de rimas tão técnicas quanto expressivas. A contar uma história, o artista encontra espaço para mostrar força e demonstrar fragilidade; para enrolar jogos de palavras em segundos sentidos, acabando em punchlines directas; para dizer que é o melhor a fazer o que faz, e para provar por que razão o diz. A entrega, apesar das dificuldades físicas provocadas por ferimentos balísticos, não fica aquém do calibre das rimas. A sua face direita, tal qual uma bomba de ar, evacua versos comprimidos dentro do peito a várias velocidades. Nem a ver para crer parece possível. Mas Conway não conhece impossíveis. E From King To A GOD almeja esses céus sem limite. 

Em 12 faixas (a versão deluxe ainda acrescentou um momento digno de nota com produção de Roc Marci), o atirador lírico propôs-se a derrubar todos os pinos num só lançamento. Liricamente, é o mesmo Conway de sempre; é difícil superar-se quando se anda perto da perfeição e, nesse campo, o MC acumula argumentos espalhados por trabalhos vários. No entanto, faltava ‘O’ trabalho, o álbum indiscutível que chegasse a outras massas. No gangsta rap, Griselda é a nova pop; estão na moda, passaram de favoritos dos nossos favoritos a, efectivamente, nossos favoritos. Esta era a altura ideal para Conway lançar esse álbum com “A” maiúsculo. E assim o fez. 



FKTG difere dos restantes projectos do rapper norte-americano, principalmente por apontar para outros alvos. A mira, essa, está fixa: a escrita não deixa de ser a missão crucial. Contudo, Con’ atreve-se a explorar outras vertentes. A variedade na produção, promovida por outras divindades das batidas, tais como The Alchemist, DJ PremierHavoc ou Murda Beatz, convidam a dar esses passos fora de pé. Em “Seen Everything But Jesus” ouvimos um Conway a cantar (mesmo com desafinações pelo meio, e com Freddie Gibbs a corrigi-las ao repetir o refrão) em tom de confissão, plenamente consciente de tudo o que fez para chegar onde chegou. Em “Anza”, balança em flows incomuns no seu catálogo, indo ao encontro do registo de Armani Caesar, e não o contrário, em cima de um instrumental tudo menos “Conway-esque”. 

Por outro lado, e se o rap do rei que passou a Deus pode parecer, por vezes, egocêntrico, a presença de DJ Shay contrasta com essa centralidade temática do disco. Na verdade, apesar das 12 faixas em que, na maior parte do tempo, Conway diz que fez isto, que tem aquilo e que é aqueloutro, os dois interlúdios protagonizados pela voz do falecido DJ, com palavras – ”Words From Shay” – dirigidas (indirectamente), mais uma vez, ao rapper, dizem, porém, muito mais sobre Shay do que Shay diz sobre o amigo. E essa tónica é transversal ao longa-duração. Repetem-se as homenagens, dedicatórias e manifestações de dor e saudade de Conway para aqueles que perderam a vida nas vidas que Conway tão bem descreve para nosso fascínio. Como aconteceu em “The Cow” (faixa incluída na mixtape Hitler Wears Hermes 4, de Westside Gunn, e apresentada no Tiny Desk (Home) Concert numa arrepiante performance), entregou-se às emoções, desta vez em diversos momentos do álbum.  

Por outras (e simplificadas) palavras, arriscou. E como seria de esperar, acertou praticamente em cheio. Se há umas quantas balas perdidas pelo meio? Pois claro. Disparou às cegas em novas cabines de tiro. Ainda assim, na câmara das rimas continua sem falhar uma, certeiro e letal.  Nesse sentido, para passar de rei a deus só precisava que o vissem como tal. Os poderes sempre os teve. É esse o estandarte que carrega em FKTG, e é essa a consagração, sob a forma de disco inequivocamente assumido como obra apurada para as qualificações dos clássicos, que faltava a Conway The Machine. Agora sim, absolutismo garantido. 


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