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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/05/2024

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Abril 2024

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/05/2024

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo, através das visões gélidas do trap ou do drill.


[RiTchie] Triple Digits [112]

RiTchie era Ritchie with a T nos Injury Reserve, onde, com o produtor Parker Corey e o também rapper Stepa J. Groggs (que descanse em paz), explodiu na cena do hip hop underground, criando para eles uma via única, misturando uma sensibilidade particular para a experimentação instrumental com rimas explosivas, refrões orelhudos e uma atenção à vida interior de cada um dos membros que ficará na nossa memória. O grupo chegou ao seu fim há pouco tempo, com Parker Corey e o próprio RiTchie a adotarem o nome de By Storm a partir do ano passado. 

Este Triple Digits [112] continua, de certa forma, o trabalho que os Injury Reserve começaram, assumindo riscos na estética dos beats — o próprio rapper tem mão na maioria dos instrumentais, com ajudas de Parker Corey, melik e J. Fisher. Há pouco tempo para respirar entre os poderosos graves que vão pontilhando as faixas. Talvez seja uma boa comparação com o significado dos tais “triple digits” — este disco representa o Arizona orgulhosamente, e esses dígitos referem-se, nem mais nem menos, ao número de graus fahrenheit que são costumários no estado árido e desértico. A emocionalidade da vida interior do rapper continua presente e é capaz de ser a sensação protagonista deste disco — característica definidora do trabalho que temos vindo a ouvir desde o início dos Injury Reserve — mas a particularidade na entrega de RiTchie está na facilidade com que o rapper e produtor conta as suas histórias, as vozes que adapta para transparecer diferentes emoções, as perspetivas que consegue tomar para se fazer entender. 

O álbum tem pouco mais de meia hora e sentimos que mais meia hora não lhe fazia nada mal. De qualquer maneira, de acordo com o seu autor, este é apenas um aperitivo para o primeiro disco de By Storm. Já estamos com água na boca.


[Apathy] Connecticut Casual: Chapter 2

Apathy faz 30 anos de carreira de rapper este ano. São muitos anos a virar punchlines. Connecticut Casual: Chapter 2 é uma sequela (desculpem o oxímoro) do primeiro volume, saído em 2014, e compõe o seu 9º disco a solo, somando mais uma edição à sua discografia que já conta com mais de 31 projetos, entre mixtapes, compilações, colaborações com Celph Titled, os Army of the Pharaohs e muitos mais. 

O MC da Costa Este continua a fazer a sua jornada com um boom bap daquele mesmo clássico, que soa a anos noventa, que era rodado em DJ sets escuros e fumarentos, com batidas a tresandar a reverb e perfumados de samples de jazz. Faixas longas, a tocarem os 4 minutos, com um mínimo de 40 barras pontiagudas em cada uma delas, daquelas em que se sente o peso da experiência da caneta calejada e uma língua bem afiada. Com elas ilustra as suas vivências, reinterpreta o folclore da região para as suas próprias histórias, ajusta o braggadocious para pintar novos quadros e desenrola o seu cérebro numa lista de canções que representa um hip hop que nunca morreu nem nunca vai morrer. Casualmente intemporal.


[BbyMutha] sleep paralysis

Já há muito tempo que BbyMutha decidiu que era tempo de falar a sério. A rapper do Tennessee sempre se apresentou como alguém que se recusa em deixar vergar por qualquer obrigação social, com o conceito de cautela a ser completamente desconhecido na sua música. Em sleep paralysis, o seu segundo álbum “oficial”, essa cautela foi arremessada pela janela e os caminhos que se abrem para a auto-declamada self-made woman são inúmeros. 

Escolhendo o trajeto menos usado e mais difícil, envereda por beats arrasadoras, tendendo para uma eletrónica acelerada e suja, com aromas de drum and bass, dancehall, phonk ou até EDM. O álbum foi escrito em Londres, contratando-se uma mão cheia de produtores do velho continente ao lado de colaboradores mais próximos a ela para uma sequência de instrumentais pesados, intensos, que preenchem todos os recantos da sala. E a vocalista encosta-se facilmente a estes sons completamente sintéticos quando a sua tradição do hip hop sulista já usa e abusa de 808s devastadores. Esta mescla de géneros acaba por ser um jackpot. Os BPMs aumentam às dezenas e a flow crepitante e o tom provocante da voz de Britney Moore adaptam-se naturalmente a estas diferentes sonoridades, como se ela tivesse nascido para isto.

As rimas são exatamente o que esperaríamos de uma das vozes mais vaidosas do hip hop atual — é facilmente agressiva, bélica, conflituosa, pois claramente está aqui para obliterar toda a competição, mas também não se tem de esforçar para ser orgulhosa, vibrante e empoderada de todas as maneiras possíveis — liricamente, financeiramente, sexualmente e até romanticamente. BbyMutha tem mais swag que nós, fuma melhor que nós, os seus parceiros são demasiado bonitos, e deixa-nos com a certeza de que ninguém a conseguirá matar. 


[sagun & AKTHESAVIOR] u r not alone

u r not alone é mais um belo exemplo da nova escola do hip hop que se liga ao esoterismo, que adota melodias mais sensíveis, conservando-se num psicadelismo mais introspetivo e ligado à autoreflexão. sagun, produtor e beatmaker nepalês com uma propensão a um lo-fi harmónico e instrumentais calmos, roça o minimalismo na escolha dos timbres, mas sem se negar à construção de ambientes sonoros ricos quando se sentem necessários, cujos trilhos o rapper nova-iorquino AKTHESAVIOR parece ser natural a percorrer com as suas rimas. 

A agressividade natural que se cola a muitos dos temas usados pelos rappers ainda existe, sim, e nunca se consegue afastar o belicismo entre pares que se ouve desde a génese do género, mas parece que só é materializada para contextualizar todas as brutalidades por que todos os humanos passam durante a vida. Vocifera-se um clamor por paz, pela união, por comunidade, pela responsabilização individual e pelo empoderamento de cada indivíduo; fazem-se questões sobre o propósito da dor, sobre a veracidade das amizades, sobre o peso dos vícios. Os convidados escolhidos para o disco também já trazem esses lemas consigo: Mick jenkins, Pink Siifu e Erick the Architect, entre outros, partilham desta visão quase religiosa, clerical, de tentar perspetivar um mundo melhor.

Esta colaboração parece ter sido feita nos céus, tal é a rapidez com que a duração do álbum vai correndo. E se são fãs daquelas histórias que os Flatbush Zombies, os Pro Era, ou os The Underachievers costumam contar, sejam servidos de um bocadinho deste disco. Não ficarão sozinhos.

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