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Fotografia: João Padinha / Everything Is New
Publicado a: 19/05/2025

Suor, nódoas negras e muito fuzz.

A imolação total dos King Gizzard & The Lizard no Coliseu dos Recreios

Fotografia: João Padinha / Everything Is New
Publicado a: 19/05/2025

Digamos o óbvio: os King Gizzard & The Lizard Wizard são, muito provavelmente, a melhor banda de rock do mundo. São estudiosos do género, músicos do caralhete. Operam como uma banda “à antiga” — 27 discos (e mais um a caminho em breve) em 15 anos de atividade revela isso mesmo. São weirdos que fazem algum do rock mais excitante do planeta, rock capaz de albergar tantos corpos, influenciar tantas mentes (basta ouvir as 9001 bandas de stoner rock nortenho para perceber isto), na direção de um coletivo que precisa desta força: a das bandas, a de bandas como os King Gizzard.

Há pouco mais de uma década, em 2014, os King Gizzard tocaram pela primeira vez em Portugal. Na edição desse ano do Vodafone Mexefest, apresentaram I’m In Your Mind Fuzz, espetacular disco de rock psicadélico que serviu de primeiro contacto de muitos com a música dos australianos. Dois anos antes, quando se estrearam com o promissor 12 Bar Bruise, os King Gizzard já prometiam que o seu rock de garagem carregado de fuzz ia ser muito mais do que isso. Dois anos depois de Im In Your Mind Fuzz, as aprendizagens desse álbum serviram para erguer Nonagon Infinity, álbum que definitivamente posicionou os King Gizzard como uma banda fenomenal prestes a erguer-se como uma banda grande. Como não? Os refrões já estavam prontos a serem entoados em arenas, canções capazes de estimular todo e qualquer sacrifício que podia acontecer no seio de uma sala como a do Coliseu dos Recreios. Deste domingo (18 de Maio) até terça-feira (20 de Maio), é este o local onde os King Gizzard desafiam o seu público para o primeiro verdadeiro mano-a-mano em Portugal. Depois de anos a tocarem em festivais, finalmente o tão esperado primeiro concerto em nome próprio em terras portuguesas — e são logo três de uma rajada.

Se o primeiro concerto em nome próprio dos King Gizzard em Portugal prometia bastante, a banda fez de tudo para entregar aquilo que lhe era esperado: ire “além dos limites”, como afirmaram à Blitz, partirem tudo e mais alguma coisa. Sair sem nódoas negras deste evento era uma derrota. Até porque os King Gizzard, depois de deixarem os maravilhosos Etran de L’Aïr aquecer as hostes (o tishoumaren do conjunto oriundo do Níger deixou as nossas ancas bem oleadas), nem perderam tempo a querer rachar o Coliseu ao meio. Logo a abrir, envergaram pelas suas aventuras no metal e no thrash metal de “Mars for the Rich” (canção de 2019 que soa ainda mais urgente hoje), “Converge” e “Witchcraft”, estas duas últimas retiradas do fantástico PetroDragonic Apocalypse de 2023. Três malhas pesadíssimas onde o público encontrou refúgio e libertação, onde o crowdsurf começou e o moshpit se abriu. E lá para dentro fomos nós, esfomeados por aquele sentimento de união, de corpos suados a embaterem uns nos outros. Em plena consciência, sabíamos que era ali onde devíamos estar. 

Stu Mackenzie (voz, guitarra, uma catrefada de outros instrumentos em estúdio, autor de um dos melhores “woo!” da história), Joey Walker (guitarra, voz), Lucas Harwood (baixo), Michael Cavanagh (bateria), Ambrose Kenny-Smith (voz, sintetizador, harmónica, saxofone) e Cook Craig (guitarra) sabem que o seu público são um monte de freaks que os veneram pela sua capacidade de fazerem discos como mais nenhuma banda de rock hoje os faz. O seu público vai para o concerto vestido de mágico, levam cartazes, gritam “GILA” antes da música começar (para algum desapontamento, nesta primeira noite, não houve “Gila Monster”), sabem a lore toda do universo do grupo. Os King Gizzard, por outro lado, quando tocam, possuem uma química única, resultante de terem passado anos e anos a experimentarem com os limites do que música rock pode ser. Em estúdio, debitam ideias, tocam os seus instrumentos, e deixam a magia acontecer. Explorar a discografia da banda pela primeira vez é como entrar numa loja de doces. Muito para escolher, complicado saber por onde começar. As faces deste grupo parecem infindáveis porque o rock assim deve ser: infinito, cheio de possibilidades. Há discos mais eletrónicos, outros que vão até ao boogie e aos blues, outros que são um loop eterno de rock puro e duro. A base para tudo, claro, é um certo psicadelismo, fruto da devoção que a banda sente pelo rock do final da década de 60 e do início da década de 70. 

No Coliseu, os King Gizzard operaram no limite da tensão. Em momentos, conferiram espaço para respirar a um público que precisava, mas que clamava por ainda mais jarda. Nesses, embarcaram por jams espaciais, psicadélicas, capazes de fazer os grandes do género corarem. Depois, claro, o rock. “Ice V” ao vivo soou magistral; a combinação de “Gamma Knife” + “People Vultures” explodiu como dinamite no Coliseu num dos grandes momentos da noite para os aficionados do Gizzverse. Em cima de palco, eles não perdoaram. Provocaram, arreliaram, excitaram-nos com tudo o que tinham. Gostamos. O restante público também. Suspiro. Recuperamos o fôlego. Seguiram-se canções mais calminhas a culminarem na magnífica balada de “Slow Jam 1”, canção que os King Gizzard tocaram em 2014 na sua primeira passagem por Portugal.

Por esta altura, superlativos já faltavam para descrever a catarse que os King Gizzard ofereceram a um público que clamava por este momento há anos. Depois, claro, o que se passava lá fora. Um país a arder, um país onde o contrato social finalmente se esvaziou, um país onde as soluções só podem apontar numa direção: reorganizar o coletivo, erguer bandeiras e bandas rumo a uma nova forma de organização, um novo sistema, de libertação coletiva dos povos. Num momento do seu concerto, os King Gizzard, cuja música denúncia abertamente a iminente catástrofe climática alimentada, por exemplo, por fenómenos como o genocídio na Palestina às mãos do regime sionista de Israel, relembraram onde se posicionam, onde a sua música se posiciona — caso não tenham percebido os leitmotifs das canções à primeira. “Free Palestine!”, disse Stu, para grande furor daquelas pessoas que, afinal, parecem entender o caminho. Como levar esse caminho ao resto? Fica a pergunta no ar — em conjunto, temos de delinear um conjunto de respostas.

Contudo, os australianos ainda tinham mais qualquer coisinha para dar, para nos fazer suar ainda mais um bocado, para nos deixarem ainda com mais nódoas negras — nódoas negras que irão sarar, sim, mas que servirão durante alguns dias como memória desta enorme, enorme actuação. Primeiro, uma versão pesada de “Am I In Heaven”? — de facto, durante estas mais de duas horas de concerto, estivemos mesmo no céu, na terra prometida. De seguida, a tensão. Solo de bateria, Stu a rapar o cabelo em palco com a ajuda de um devoto do público, a ânsia no ar perante os últimos minutos do espectáculo. Eventualmente, explodiu um riffzão — era hora de “Self-Immolate”. Corpos a esbarrar uns contra os outros, ritmos avassaladores a serem tocados em palco, riffs para dar e vender, a loucura total. Se morrêssemos ali, com certeza morreríamos felizes, com a consciência limpa de que, ao menos, não íamos ver o monstro derradeiro a erguer-se dos mortos e a consumir o que resta do coletivo. Ainda faltam duas noites disto, duas noites para atingirmos esse clímax derradeiro. Não falhem se conseguirem. A passagem dos King Gizzard & The Lizard Wizard por Portugal é, sem dúvida, a jornada de concertos do ano.


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