São 21h15 e as pessoas já começam a entrar no Teatro Municipal de Ourém. A atmosfera já está densa com o habitual fumo de palco e há uma certa eletricidade no ar. A demografia tende para uma faixa etária mais jovem e parece haver um contingente bem forte de apoio local para o menino de ouro de Ourém. Lentamente, todas as cadeiras vão sendo ocupadas — sim, estamos sentados para assistir a mais uma apoteose do hip hop em Portugal. Não é todos os dias que alguém que sempre se orgulhou de ser de Ourém se pode apresentar à frente dos seus, da sua família e dos seus amigos, diretamente no lugar onde cresceu. E só por isso, 16 de Março de 2024 é uma daquelas datas que xtinto dificilmente esquecerá.
Cortina fechada. Ouvem-se os primeiros acordes do tempestuoso instrumental de “Katrina”. Mesmo depois do aviso de não se poder recolher imagens, o que se vêem levantados são inúmeros telemóveis a quererem memorizar a entrada em palco de Francisco Santos. Apresenta-se em palco com uma banda atrás de si, composta inicialmente por João Mascote na bateria, Billy Verdasca na flauta transversal e nos backing vocals, e Guilherme Simões nas teclas.
A aura que emite um rapper em palco para um público sentado é intrigante. Mas se já se andava há semanas à espera deste momento, parece-nos ter aumentando ainda mais a sensação que estávamos a assistir ao começo de algo muito, mas muito, especial. A primeira ovação do público é ensurdecedora e, ao seu término, segue-se “Pacemaker”. Reparamos logo de início que o som está maravilhoso — a banda está perfeita, o equilíbrio entre instrumental e vocais está muito bem balanceado, e a própria voz de xtinto está imaculada. O flow não treme, e as punchlines não vacilam. Continuamos com Latência e ouvimos “Loop”, que já tem algum coro da audiência a responder ao pedido do rapper para uma colaboração, mas a parca adesão ao “dueto” e a acústica natural da sala não permitiram que reverberasse completamente. De qualquer maneira, a relação entre artista e o seu público existe e é palpável logo de início.
O primeiro interlúdio do concerto é feito para Xico dizer olá à sua família (em peso, toda nas primeiras filas do teatro) e oferecer uns in-ears à avó, pois receia que ela não o oiça bem. É quando se juntam mais dois músicos à banda: Samuel Louro, na guitarra, e Guilherme Eugénio, no baixo. O grupo cresce, pois o concerto segue para “Quentin Miller”, que em acústico fica um clássico imediato — deixamos aqui o nosso pedido para que ela seja gravada e editada. Voltamos a Latência para ouvir “Android”, que agora sim, tem um coro do público muito audível, também devido ao instrumental menos intenso. O hip hop está vivo e o Teatro ouve-se.
As luzes descem e agora xtinto está sentado em palco, ao lado de Lopez, que vem apresentar a sua “Voltar”. Apostamos que este momento tenha sido muito especial para os dois: de um lado, Francisco Santos já cá anda a fazer música há muito tempo, e sempre fez questão de não esquecer com quem cresceu, por isso, poder estender esta oportunidade aos seus é algo a marcar; do outro, um newcomer a ter a oportunidade de declamar alguns dos seus versos perante uma sala lotada.
Dedica “Saia”, faixa de Desghosts & Arrayolos, de Stereossauro, à sua mãe, que gosta muito da música, e deixamos nesta reportagem a nota para o falsetto incrível no final da música. Já sabemos bem que xtinto não é só rapper nem se deixar isolar no hip hop, tem-se preparado a si próprio e à sua audiência para se poder exprimir artisticamente da maneira que quer, seja essa expressão a rimar, a cantar ou até a harmonizar em qualquer tema. Este segmento mais emocional continua com uma outra convidada — Pikika, cantora com a qual colaborou na faixa “Com Um Brilhozinho Nos Olhos” para o projeto SG Gigante, que homenageou Sérgio Godinho.
A este ponto, porque não juntar um saxofone à mistura? É Tomás Martin, mais um ouriense, a cargo do sopro numa viagem de volta a 2015, para ouvirmos “4’33 à John Cage” — e a este ponto, todo o ouvinte OG de xtinto já está em estado de êxtase. Ainda vamos a menos de metade. Os props são enviados para o Zé Raul, tal como devem, e os locais sabem bem que é para lá que vão depois do concerto. Sem paragens para respirar, seguimos com “Iglo”. Já estamos à espera de tudo a este ponto, mas não esperávamos a entrada de Mike El Nite em palco para rimar o seu verso. O iglo está bem confortável com a quantidade de amigos cá dentro. E correndo o risco de recorrer a uma comparação injusta (não acreditamos que o seja), se Slow J rebentou com as costuras há semana e pouco, em Ourém recusa-se a deixar que elas voltem a ser cosidas. A fasquia continua a ser elevada com “Tontura”, e se as expectativas já tinham sido superadas várias vezes, elas continuam a ser obliteradas quando o próprio Wugori entra em palco para “cuspir” o seu verso. Não há travões no comboio de hip hop que parou em Ourém. Até a tia de Xico Santos está a gostar e nós sabemos, porque ele fez questão de perguntar.
Os ânimos acalmam com “Lábios do Mar”, dedicada à sua amada, com quem partilha um dos “olás” mais carinhosos já escutados no planeta, e o coração de toda a gente explode em apreciação do amor. Mas nem essa explosão deixa o concerto esmorecer — pelo contrário. E nem o humor faltou. Há uma pequena pausa em que o artista nos elucida sobre um problema de saúde ótica, pois aprendeu, depois de uma visita confusa ao oftalmologista, que tem uma deformação nas córneas: “Já me tinham dito que era maluco dos cornos, agora deformado das córneas foi a primeira vez.”
“Sei Lá” é um original de Dez, um dos parças de sempre de Francisco, e certamente não iria faltar aqui. Continua a Odisseia, e a Andromeda vive em palco com “Íntimo”, mais uma de 2015. Nunca morreu, aliás, com “Sangue Novo” a fazer-se ecoar em palco nas vozes dos dois poetas de Ourém, que discutem entre si quem será o melhor rapper da zona. De acordo com cada um, é o outro. Toda a gente sabe esta e o teatro está bem cheio. É só preciso uma nota para a audiência se exaltar com “ébano”. Atuar esta ao vivo não deve ser pêra doce, mas a voz aguenta e os pulmões são de ferro. O bradar do verso final é a derradeira prova de que estamos perante um dos novos nomes intemporais do hip hop tuga. E não só.
A viagem continua seguindo com “Pontas”; “Berço”, com Bia Maria em palco, mais um talento da região, e a lista de convidados do concerto já começa a parecer blockbuster da música alternativa portuguesa. Já em palco, Ourém é representado por todos os intervenientes da banda, com um apelo do rapper para se combater a descentralização cultural; “Marfim” completa o ciclo de “ébano” e promove mais um momento de simbiose entre músicos e audiência; e “Pentagrama”, com um belíssimo solo de flauta transversal de Billy Verdasca.
O concerto vai chegando ao seu final, com agradecimentos ao público, à banda, à audiência, à sua equipa, ao teatro e a muitos outros que Xico sente que se esqueceu. “Cadáver” fecha o espetáculo, mas a sensação que fica é de uma vivacidade irrecusável. Como encore, “éden” obriga o público a erguer-se, e João Maia Ferreira (antigamente conhecido como benji price) é o último convidado a abençoar o palco do Teatro Municipal de Ourém — a escala é mais pequena, mas o sentimento é capaz de ser proporcional ao que aconteceu no MEO Arena no início do mês. Este concerto ficará, sem qualquer dúvida, como marca na história do hip hop tuga, no começo idealizado de uma descentralização da cultura em Portugal, como num sonho concretizado. Afinal de contas, o menino de ouro de Ourém tinha dito, há cerca de um ano, que o seu desejo maior era esgotar aquela sala de espetáculos da sua terra-mãe. Parece que há sonhos que realmente se concretizam.