Dois anos depois de erguer o ambicioso Bairro da Ponte, Stereossauro continua a procurar a criação colaborativa (retirando o sampling intensivo da equação): se em 2019 reuniu com Camané, Carlos do Carmo, Slow J, Papillon, Plutonio, Ana Moura, Capicua, Dino D’Santiago, Chullage ou NERVE, em Desghosts & Arrayolos, um álbum duplo, não descurou completamente a fórmula que sabe ser a vencedora desde a remistura de “Verdes Anos”, mas decidiu dar-lhe um twist com a chamada de nomes que vão de xtinto, Manel Cruz e Selma Uamusse a João Pedro Pais, Marisa Liz e Aurea.
Antes da apresentação do terceiro longa-duração em Lisboa, que acontece este sábado, dia 6 de Novembro, no Capitólio, o membro dos Beatbombers explica, em conversa com o Rimas e Batidas, a dualidade que existe no seu mais recente disco, fala em específico sobre a criação de “Saia” e esclarece o porquê de ter tomado a decisão de criar os seus próprios samples em vez de andar à procura de matéria para samplar.
Indo directos ao título: que Desghosts & Arrayolos são estes? O Bairro da Ponte parecia uma maneira de falar do tradicional, mas os Desghosts & Arrayolos aponta mais para uma linguagem millennial, por assim dizer.
É um disco duplo com dois moods diferentes: um mais happy e mais pop e outro mais dark e deep. Integra situações que não tinha abordado antes e que me motivaram para continuar a explorar diferentes caminhos sónicos para mim. Gosto muito de arranjar “novos” desafios e novos temas para pensar. Neste disco duplo, mantenho muito da linguagem que já vem do Bairro da Ponte e que já faz parte do meu ADN, mas com outros métodos e direcções. O que procurei neste disco foi a dualidade entre pop e heavy. Precisa de haver escuridão para teres luz e essa dualidade que se complementa é algo que não tinha abordado em discos anteriores.
Se os primeiros singles já apontavam para aí, o restante disco acabou por confirmar que este seria o mais radiofónico de todos os teus trabalhos. A pandemia teve algum impacto nessa direcção? Não pensares tanto nos possíveis concertos encaminhou-te mais para uma certa necessidade de ir para canções que encaixassem nas rádios?
O disco não se resume a isso. Estamos a falar de um disco duplo, com dois moods diferentes. Creio que essa pergunta pode aplicar-se ao disco Arrayolos que, sim, é mais pop mas não ao Desghosts que tem um tom muito diferente sendo que o que referes na pergunta, para mim, nunca foi uma condicionante para fazer música. A pandemia não me influenciou dessa forma, teve o seu impacto em muitos aspectos das nossas vidas mas não em que direcção musical vou seguir.
Ninguém consegue prever se uma música vai ter mais ou menos sucesso junto do público ou se entra ou não em playlists de rádio. Pensar nisso ou condicionar o teu trabalho em função dessa ideia é algo que não vale a pena. Claro que se existirem temas que vão para playlists de rádio tanto melhor, óptimo, mas será sempre um bónus e não um objectivo para criar.
Alguma curiosidade com a faixa que criaste com o xtinto e em co-produção com o benji price. Quando é que te deparaste com a música do xtinto e o que é que te puxou para trabalhares com ele? E como é que decidiste que tipo de registo fazer com ele, já que poderias muito bem para ter ido mais para algo como o “Ingrato”, por exemplo.
O xtinto chamou-me logo a atenção com os primeiros sons dele que foram surgindo na net. Gostei logo muito da voz, letras e delivery e rapidamente o contactei e começámos a trocar ideias. Fui-lhe enviando beats e ele próprio me foi pedindo sempre beats com várias vibes diferentes. Ele tem um gosto muito eclético também.
Este acabou por ser um dos beats em que ele pegou primeiro e, mal me mostrou a letra, fiquei rendido, adorei pura e simplesmente. Entretanto, ele mostrou ao benji o que estávamos a fazer, ele curtiu e disse logo que queria experimentar uns drums diferentes e umas cenas no beat e aí a coisa encaixou na vibe certo. Foi bué produtivo trabalharmos todos em conjunto, toda a gente acrescentou muito, foi mesmo altamente trabalhar com eles.
Obviamente que não deves ter ponderado isso, mas teres nomes como Aurea, João Pedro Pais ou Marisa Liz poderão afastar alguns dos teus fãs mais antigos e ligados ao hip hop e à electrónica. Também quiseste abanar um bocado as expectativas que as pessoas pudessem ter quando avançaste com essas colaborações?
Espero não afastar ninguém, até muito pelo contrário, eu tenho uma perspectiva inclusiva e esses preconceitos, muitas vezes, até partem mais da crítica de arte do que do público em si.
Eu adorei trabalhar com todos eles. São artistas com vozes incríveis e muito generosos e aventureiros até porque saíram muito mais da sua zona de conforto do que eu. Não é expectável, por exemplo, ouvir João Pedro Pais num tema dark cheio de 808s. Aprendi muito com todos eles e voltava a fazer músicas novas com eles num piscar de olhos, foi uma honra.
Estamos em 2021 e os estilos musicais não estão fechados em frasquinhos separados uns dos outros. Quem ouve hip hop ouve muito mais coisas também. Um dos meus heróis musicais é o Rick Rubin e o catálogo dele vai, como sabes, de LL Cool J a Tom Petty passando por mil outras vibes pelo meio.
No comunicado que nos enviaram fizeram questão de realçar que, ao contrário, do seu antecessor, que foi criado à base de muitos samples, este só tem um. O que é que provocou esta mudança no teu modus operandi? O Stereossauro instrumentista decidiu criar os seus próprios samples e não andar à procura de música para samplar?
Sim, foi isso mesmo. É a tal vontade de procurar caminhos novos para me motivar a trabalhar, de sair da minha zona de conforto. E passei algum tempo a explorar maneiras de produzir texturas que tivessem feeling de samples mas com instrumentos ou vsts gravados por mim, tipo fazer a minha própria biblioteca de sons, e em vários temas tive outras pessoas que gravaram instrumentos: o New Max gravou bué cenas na malha dele, o Manel Cruz também, no caso da guitarra portuguesa é quase tudo gravado pelo Ricardo Gordo, violinos da Ianina Khmelik, sopros do João Seco e Samuel Silva, o Nuno Oliveira gravou drums para o tema com a Aurea e foi a primeira vez que alguém me gravou drums para uma música, até agora tinha sempre feito com samples e drum machines.
Para ti, qual foi a música mais desafiante de se terminar neste disco? A com a Selma Uamusse é capaz de ser a mais diferente de tudo o que já tinhas feito até aqui.
Esse tema com a Selma correu super bem e ela é daquelas pessoas que fazem parecer tudo mais fácil. Eu já tinha o beat e ela fez a letra e melodias de voz.
Se calhar, os temas mais difíceis de terminar foram os que eu escrevi a letra sozinho. Isso continua a ser algo que não me sai tão facilmente como a parte instrumental mas depois de ter a letra e melodia corre bem. Por exemplo, no caso da música com a Mitó eu demorei um bocado a acabar a letra e o beat, mas depois ela gravou e interpretou num instante e deu vida à canção. Gosto muito da voz dela e os Naifa são, sem dúvida, uma influência. Adorei escrever essa música para ela.
Para alguém que está tão atento à música portuguesa e aos seus velhos e novos talentos, quem é que têm sido os artistas que têm mexido contigo ultimamente? E porquê?
O xtinto, a mema., a garota não, todos eles têm aquele efeito “serotonina” no meu cérebro. Gosto de ouvir a música deles e a consistência do trabalho deles faz com que estejam presentes na minha memória. Há mais, certamente, mas é difícil estar atento a tudo e se calhar não estou assim tão atento como parece. Há imensas coisas que me escapam e não conseguimos investigar tudo ou clicar em todos os links.
Vais ter a primeira apresentação em Lisboa. Quais são as expectativas? O formato (com banda) vai ser o mesmo do Bairro da Ponte?
Sim, é a mesma formação do Bairro da Ponte: o DJ Ride, Nuno Oliveira e Bruno Fiandeiro. Esses concertos correram muito bem e fortalecemos a nossa sonoridade enquanto banda. Formamos uma equipa com boa vibe.
O vídeo vai continuar a ter um papel importante ao vivo e usámos o que aprendemos para construir este novo espectáculo com novos conteúdos. Estamos todos com expectativas de ir festejar. Estamos todos com muita vontade de tocar e de ir ver outros concertos também.
No dia 6 de novembro vamos ter muitos vocalistas convidados e isso vai fazer deste um concerto muito especial, pois raramente conseguimos juntar tantas pessoas com agendas diferentes e esta noite só vai acontecer graças à imensa boa vontade delas. Não podia estar mais agradecido à Aurea, Blaya, Carlão, Chullage, Manel Cruz, Marisa Liz, MC Zuka, Sara Correia, Selma Uamusse e xtinto.
Neste concerto, vamos focar-nos essencialmente no disco novo mas vamos matar saudades de três ou quatro temas do Bairro da Ponte que são incontornáveis e que têm muita vida ainda.