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Publicado a: 17/11/2018

De Telectu a Mind da Gap, passando pela SOOPA, uma exposição que retrata “cinco décadas de inquietação musical no Porto”

Publicado a: 17/11/2018

[TEXTO] Rui Correia [FOTOS] José Rui Correia

Desde 7 de Setembro que está patente a exposição Musonautas, Visões & Avarias na Galeria Municipal do Porto com um vasto espólio discográfico e de objectos identificativos das diferentes práticas musicais surgidas na Invicta entre 1960 e 2010. O público terá a última oportunidade de visitar até amanhã, 18 de Novembro, uma retrospectiva de cinco décadas de inquietação musical portuense nas suas mais variadas expressões e aventuras sonoras.

Mas foquemo-nos no mapeamento de projectos conectados aos universos do hip hop e da electrónica com a ajuda de Pedro Tenreiro. O DJ e divulgador musical, que actualmente assina um programa na Antena 3, foi “desafiado por Paulo Vinhas [curador da exposição e gerente da Matéria Prima] para apoiar na investigação e curadoria das expressões da música popular urbana nestas cinco décadas, dos primórdios do rock ao hip hop ou música de dança electrónica, passando pelo jazz e pela pop.”

Seguindo a ordem cronológica da exposição, “a electrónica começa a ser usada na viragem dos anos 60 para os 70. Os Pop Five Music Incorporated usaram o Mellotron, os Smoog estrearam o Mini Moog que, numa das fotos expostas, é mostrado pelo Miguel Graça Moura ao Filipe Pires, pioneiro da música electroacústica, tal como foi Álvaro Salazar”. Nos anos 70 encontramos também as obras emblemáticas do compositor Cândido Lima – Oceanos e A-MÉR-ES (1978 e 1979, respectivamente) – que introduziram pela primeira vez na música portuguesa cruzamentos entre elementos como o computador, a electroacústica e a orquestra. Com a criação do Grupo Música Nova em 1973, o artista teve um papel relevante na divulgação em Portugal da música contemporânea. Está exposta, aliás, uma longa partitura musical de Polígonos em Som e Azul, uma obra com que o grupo pretendeu traduzir quadros da pintora Vieira da Silva em termos sonoros.

 



A partir da década de 80 existem mais desenvolvimentos musicais baseados em elementos electrónicos. É o caso do trabalho vanguardista elaborado pelos Telectu, duo formado por Vítor Rua e Jorge Lima Barreto, que só nessa década editaram dez discos e de onde se destaca na exposição, por exemplo, o grafismo adoptado no disco Belzebu de 1983. E também dos Repórter Estrábico, formados em 1985, e que se estrearame nas edições em 1991 com Uno Dos. Como é referido em placa expositiva “foram pioneiros em muitas das técnicas de produção contemporâneas, como o sampling ou a programação rítmica, herdeira de novas linguagens de música de dança”. Pedro Tenreiro acrescenta que os Repórter Estrábico “viriam a emprestar um [sampler] aos Da Wreckas, a primeira encarnação dos Mind da Gap. O rap teve aqui o seu pontapé de saída.”

Nos anos 90, o sampling passou a ser uma técnica mais comum na música, seja nos trabalhos da banda Stealing Orchestra, que se iniciou em 1997, mas sobretudo nos projectos que nasceram da cultura hip hop e de onde se destacam os Mind da Gap que editaram o seu primeiro disco Sem Cerimónias, precisamente nesse ano. Deles podemos encontrar um mar imenso de objectos encapsulados numa das designadas ilhas (montras expositivas), constantemente a rodar música, que lhes é dedicada: um disco de prata, representativo da venda de 10 mil exemplares do álbum Suspeitos do Costume (2001), letras escritas e reescritas em papéis por Ace e Presto, uma MPC de Serial, cartazes de eventos, material promocional, t-shirts, entre tantos outros.

Tenreiro salienta ainda que “a partir dos anos 90, quase todos os géneros musicais tiveram expressão na cidade. Ao rock e à pop vigentes, acrescentou-se o acid jazz dos primeiros tempos do Pedro Abrunhosa e dos Bandemónio ou dos Clã, o hip hop dos Mind da Gap ou dos Dealema e muitas outras vertentes que vão da electrónica experimental à música de dança, passando pela improvisada, algo que explodiu no novo milénio, quer pela democratização ao acesso das novas tecnologias de gravação, quer pelo incremento dos movimentos colaborativos e dos espaços onde se puderam exprimir.”

 



Do que foi proferido anteriormente, encontramos evidências desses movimentos expostos em vários locais da galeria, mas especificamente concentradas em duas ilhas que se sucedem à dos Mind da Gap. Num espaço separado pelo visionamento de vídeos, de um lado, vemos mencionada “uma comunidade expansiva de músicos e artistas sediada no Porto”: SOOPA, fundada em 1999 por Jonathan Uliel Saldanha e Filipe Silva – ambos membros dos HHY & The Macumbas –, responsáveis há cerca de 20 anos pelo desenvolvimento de uma actividade idiossincrática focada principalmente na criação e edição de música. Este núcleo de músicos do Porto com associações a outros colectivos, como o projecto transnacional Mécanosphère e a editora norte-americana Radon, potenciou o surgimento de um vastíssimo leque de trabalhos de música experimental e permitiu a colaboração com outras figuras internacionais de relevo como Damo Suzuki (Can), Massimo Pupilo (Zu), Carlos Zingaro ou Mark Stewart (Pop Group); do outro lado, assistimos ao aparecimento emergente nos anos 2000 de “um movimento musical baseado em associações espontâneas entre músicos e colectivos, na intersecção livre de idiomas musicais (free jazz, noise, composição electroacústica, heavy metal, punk, rock industrial, entre outras excentricidades)”, como é o caso da associação cultural Sonoscopia, criada pelo compositor e percussionista Gustavo Costa e o contrabaixista e construtor de instrumentos Henrique Fernandes.

Caminhamos um pouco mais à frente. Entre menções aos meios de comunicação como as rádios livres do Porto, de onde se destaca a XFM, fanzines e revistas de música, como a Memória do Elefante (1971 a 1974), com vislumbres da censura que lhe era imposta em regime de ditadura, chegamos à recta final. Uma parede pintada a negro desvenda uma rede neuronal gigante com as conexões da música portuense ao longo de cinquenta anos. Do rap identificam-se nomes como Fidbek, Keso, Crewcial, Mind da Gap, Dealema, Matozoo ou Barrako 27. Da electrónica vigoram Mute Life Dept, PZ, Ghuna X, Mécanosphère, Telectu, Tropa Macaca ou :papercutz.  Alguns espaços vazios encontrados na parede poderão simbolizar ligações perdidas e demais projectos ainda por identificar, tal é o universo da música criada no período em questão.

Este espaço expositivo promete alimentar o conhecimento do público ao longo de horas e cada peça é parte essencial para explicar a música do Porto. Pedro Tenreiro, um dos colaboradores da equipa multidisciplinar que trabalhou na exposição explica que algo que os orgulha “é a densidade com que conseguiram retratar estas cinco décadas de criação musical na cidade.”. E conclui que “todos os objectos foram para nós importantes. Os simples recortes de jornais, os graficamente surpreendentes cartazes de quase todas as décadas, a foto do Discípulo do Demónio a tocar num barco a caminho da Guerra Colonial, o caderno de Álvaro Salazar (aberto na página em que o sumário da aula de 26 de Abril de 1974 é “Faltei”), os Repórter Estrábico em plasticina do António Olaio, os desenhos do Julião Sarmento para a capa dos Zany Dislexic Band, aquela parede cheia de discos, todas as ilhas, entre as quais a do Manel Cruz, concebida e montada pelo próprio. Tudo, mas mesmo tudo, é importante para se contar uma parte da história desta cidade. “

Para lá da inquietude de uma cidade “permeável a todos os géneros musicais” como diz Paulo Vinhas no prospecto da exposição, é difícil definir a sua marca identitária. Mas Pedro Tenreiro remata com a noção de que “que estando a trezentos quilómetros do centro de decisão mediático do nosso país, algo que se tem vindo a acentuar nos últimos anos, os músicos desta cidade têm que dar o litro para serem reconhecidos e serem muito obstinados para conseguirem fazer da criação uma forma de vida, ao mesmo tempo que se dispersam menos em actividade promocional e isso, de uma forma ou de outra, deve-se se reflectir na sua música.”

 


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